sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Quero, gosto ou talvez não

Tenho fome da minha boca nos sulcos apertados e labirínticos das tuas famosas covinhas, no lusco-fusco onde as encontro.

Um lugar doce e esquecido que, talvez por ser obscuro e discreto, possa escapar aos olhares gulosos das outras, daquelas que te devoram em espírito ou de quem te petisca, de forma sub-reptícia, com aparente inocência e dedicação, ao de leve, em breves passagens… potencialmente perigosas.

Eu gosto de covinhas mas vou com pés de lã, para não acordar o trauma antigo, o medo das mulheres predadoras e o desejo enorme de liberdade, sem compromissos nem dependências emocionais. Faço-o sem pés, claro! É com a boca sôfrega ou com os dedos curiosos. 

Mas elas, sabendo que podem estar em risco se fizerem muito barulho por nada, pisam o chão sem tocar nelas, voando leves e inofensivas … pairando para te agradar. Acenando que sim às tuas recusas de algo mais… sabem que o doce tem ingredientes proibidos, não lhes tocam e fingem gostar. Só podem ser o que podem ser - nem monogâmicas nem dependentes …

Fingem passagens breves e descomprometidas, fingem que o salto para a cueca não tem grande significado. Dão beijos sérios, que apelidamos de vulgares holiwoodescos.

E as catatuas sobrevoam a casa com varanda e mar , quais gaivotas bonitas mas perigosas, avisando sempre com cuidado que estão de passagem e que mal passe a chuva arribam para longe e o Marinheiro não as verá para lá do horizonte. Ficará só, como diz que gosta mas não quer, gozando a paz do mar que se põe no fim da tarde, no horizonte , libertando-se do pó do afecto que algumas delas, por vezes deixam… suprindo o vazio e o silêncio, pelo prazer da espera de dias mais quentes em que virão refrescar o deserto. Logo, não se trata de vazio nem de solidão porque há sempre a promessa do regresso de mais calor, mais vozes, mais humanidade cheia …

É na esperança da espera, sentado quieto e indiferente, que está o segredo de uma vida-realidade cheia de mulheres, de coração com algo mais para dar…  

Lá no fundo ele sabe que, num porto seguro, há quem conheça as covinhas e delas extraia ouro.

Uma operação mineira desinteressada no metal nobre, porque mais nobre é o sentimento que a leva a garimpar … sempre mais fundo essa cova de prazer. 

Qual belo adormecido em fria solidão, talvez um dia seja acordado por quem se mostra “esquisita” mas pode ficar mais afoita e pode atacar em salto esfuziante … arrancando a roupa à dentada, com gritos e alegria. Ou talvez seja por outra, que em denguices de palavras numa língua  com açúcar, lhe deixe a roupa quieta mas lhe lambuze a mente, lhe encha a barriga com doces que colam … numa falsa peça de poesia soando a espiritual amor. Um perigo semelhante e pegajante. 

Exigência de fidelidade absoluta talvez caia por terra e ceda ..  caindo pontualmente na tentação da carne. É fácil aceitares e ires na onda da sua fome de dieta interrompida…

Porventura, no fim destas rodadas sucessivas de motivações  diferentes e assustadoras (todas legítimas) … sobram as covinhas a gritar por mim.

Descoberta para recreio pessoal e para ser partilhado. Talvez seja difícil partilhar esse gozo astrofélico. Incompreensível ! Donde vem o sabor - dos astros que se combinaram assim… A marmelada sabe sempre a marmelo e queres goiabada de vês em quanto. É um samba que anseias, intercaladamente com outras musicas, até talvez um samba do Cacém.  Para alegrar e diversificar tudo vale, para dar a virtual sensação de liberdade, de escolha e variação.

As covinhas podem esperar e adormecer … até uns lábios com fome as atacarem, roubando-as à pasmaceira ou ao gosto que as passantes alegres e estimulantes cobrem de indiferença sem nelas reparar.

Guarda-as bem… que eu trato de te fazer esquecer a prática de Copacabana e as viagens de mão dada numa excitante perspetiva de haver uma noite e uma cama intransponível…o sangue a ferver, a devaneios esperançosos… muita pica… e nada!

Não é preciso muito para eu forrar as covinhas que vou lamber, escavar e entontecer não tarda nada .É tudo tão simples, tão calmo e saboroso, a excitação nasce na terra … tal como as couves nascem no chão.

Ir às covas ou às couves é quase a mesma coisa.

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Porque se ama a imperfeição?



Mesmo sabendo que a perfeição não existe e que sobretudo os humanos estão cheios de imperfeições visíveis, a todo o tempo, aos nossos olhos - treinados para avaliar, para pontuar e comparar tudo com ideais de beleza, bondade, amor perfeito e inteligência - reagem com desilusão ao confronto do ideal/desejado com a realidade defeituosa, irritantemente desadaptada da expetativa.

Quem aguenta desilusões e imperfeições no ser amado ou nos filhos queridos? Aguentar aguenta, mas fica triste.

Haverá heróis - seres superiores ou frios indiferentes - que tudo aceitam e se contentam com o que a vida lhes dá… conformam-se e adaptam-se. São mais felizes, esses…

Conseguem viver um dia de cada vez com alegria e tirar partido do melhor que o seu semelhante mais próximo lhe proporciona.

Não reclamam. Sorriem e vivem. 

E talvez seja essa a grande sabedoria.

Porque todos os dias contêm um potencial de pequenos momentos felizes e trazem em si a esperança de um futuro melhor, com gente melhor … mais perfeita.

Um caminho alcatruado, sem buracos nem pedregulhos a atrapalhar … um rumo linear e seguro, numa paisagem amorosa magnífica… 

Como se essa paisagem existisse na natureza e não fosse tão só construção humana.

 As pequenas desilusões diárias, recorrentes e implicantes devem ser aceites como um chuvisco que cai sem ser esperado num dia que, por azar, saímos de casa sem chapéu. Dizemos: que chatice! Deixa-me abrigar no toldo do café… há-de passar…

E no dia seguinte já não nos lembramos deste pequeno contratempo.

Se eu pudesse viver assim, tão descontraidamente os engulhos amorosos ou a falta de afecto que atrapalham as expetativas … seria bem melhor.

Esforçar-me-ei por amar a imperfeição porque só a verdade é libertadora. E o mundo, os homens, a natureza são imperfeitos face aos ideias racionais ou românticos , mas são perfeitos na sua diversidade.

Liberdade é assumir, dizendo alto o que se pensa sobre o bem e ou sobre mal, é estar cá para apanhar os cacos dos erros e para louvar as glórias dos êxitos. Dizer que se ama - sem adjetivar a perfeição ou a falta dela - é um acto de autonomia, libertação, leveza e alegria! 

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Tempo

Pensamos sempre que não temos tempo.

Andamos depressa demais. Queremos ir sempre a correr para não perder tempo. Então, partimos coisas… despedaçadas na correria irrefletida.

Partimos, perdemos e amachucamos as coisas, as pessoas … e o tempo.

Há sempre um tempo e um espaço para se estar, pode ser bom ou mau, certo ou errado, bem ou mal acompanhado… ou ser um tempo assim-assim de indiferença.

Hoje estou aqui num tempo-espaço que não sei qualificar, nem interessa. 

Só o amor ou os seus momentos fugazes, quiçá falsos, não tem métrica.

Esses pedacitos de tempo-espaço - especiais e raros - localizam-se algures num sítio sem nome, numa esfera intemporal: onde se flutua, pés longe do chão, mente presente, coração demente. Sem racionalidade, nem lógica. Vive-se, apenas… e, por vezes, ao recordar momentos bons, pensamos que os podemos repetir … iguaizinhos. Não é possível!

Aconteceu-me cair nessa ilusão. Foi assim:

Era o mesmo lugar, o vento habitual batia-me na cara, ainda era quente, tal como naquele outro verão que recordava. O mesmo vestido multicolor de ombros descobertos, largo, esvoaçante. Daqueles que não aquecem mas compõem uma nudez de praia, sobre um corpo que arrefece no rodopio do vento do fim da tarde. 

Um dia feliz tal, cheio de cor como o toque de arco-íris nas cores degradé do vestido. Uma esplanada catita fixada na foto de igual cara.

O mesmo vestido, o mesmo lugar não fazem do momento um dom igual. 

Nada se repete na materialidade do espaço-tempo, a terra roda … e com ela a vida, a magia das emoções irrepetíveis.

Só o sentimento tem o condão de flutuar como o vestido, de se desmaterializar como o vento e de ser revivido na mente… mente doente, certamente, de quem sabe mas não quer saber que não é amado.

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Um homem


Belíssimo! 

Um homem … para olhar, para sentir com os olhos o que a carne pressente.

Gosto deste homem, feito metal verde, frio, duro, resistente, fiável.

Não tem carne nem pelo, não corre o risco de se desintegrar, a carne dissolver-se por exaustão, paixão ou rotina … adormecendo. Não explode, não voa.

Contudo, é um homem… e bastante sexy. Abre a fantasia a pensamentos coloridos…

Talvez lhe falte apenas os olhos verdes percustrantes do médico que hoje me apalpou as mamas, profissionalmente, claro. E diga-se, com todo o respeito, no exercício normal da sua função de radiologista , por uso na ecografia de rotina.

No fundo um homem quadrado de ferro esverdeado tão humano e apetitoso como o da imagem e, na prática, quase igual àquele mais “mole” e sedoso - que nos cabe em sorte, num dado momento numa dada hora da vida - não é mais do aquilo de que se precisa… talvez só lhe acrescentasse apenas os olhos humanos e verdes.

O amor é construção e fantasia, o império dos sentidos na versão abstrata prefere a arte pura de um escultura excepcional… o clamor na carne contudo talvez esteja mais confortável no sofá macio de um homem mais redondo, mais carnal e não metálico.

Trocar conforto por liberdade! Foi essa a minha opção recente!

Esta peça abstrata e limpa, encarna sem carne, a ideia imaginária e longínqua do ideal de perfeição e pureza que só a arte nos pode dar.

Um homem perfeito e sensual que o risco depurado de fantasia, apurou e gravou no gesso e no metal (acrílico, talvez) do artista, até ao limite do possível. Capaz de fazer o percurso do figurativo ao abstrato, com absoluta genialidade de traços.

Uma noite com este homem verde que Dorita Castelo Branco criou… criou para encher a solidão, para dar à noite vazia um torpor de desejo e de erotismo. Que a arte eleva até onde a mente nos permite ir. Obrigada Dorita !

sábado, 2 de outubro de 2021

Engenheiro Eletrotécnico

Mudei para este bairro há pouco tempo. É um lugar sossegado, construções maioritariamente novas, quase sem movimento automóvel, rua sem saída e pouco comércio. Boa construção, preço razoável, suposto ambiente classe média pacífica, aparente segurança, escolas para a filha … foi o que nos  atraiu para o novo lugar. 

Ao fim de alguns dias, a empregada ao estender a roupa, chamou a atenção da minha mulher para o estendal do andar de cima - uma longa fila de chinelos de quarto, daqueles de pano turco como há nos bons hotéis, impecavelmente brancos … que depois de contados e recontados pela Gravelina se conclui serem 40!

40 sapatinhos, 20 pessoas de quarto calçadas, num só dia … que se multiplicaram por semelhante número de pés e de pernas, de braços e abraços, nos dias seguintes.

Atento, mais preocupado do que perplexo, passei a ouvir o som rouco do elevador, desde o fim da tarde pela noite dentro…

Um sobe e desce catita e de curta duração, pensei: pés há certamente, tal como braços … mas talvez sem abraços. Porque um abraço leva tempo e outro pezinho espera a hora de calçar seu chinelinho, branco, lavado … que ali parece ser casa asseada e produtiva.

Sem saber muito bem o que fazer, mas pensado que uma filha pequena em idade escolar merecia o meu cuidado, uma casa com algum decoro, resolvi ir falar com um dos poucos vizinhos que conhecia e sabia ser um chefe da polícia da judiciária com alguma importância. Ele alinhou logo em atacar o assunto com a devida energia policial que a circunstância justificava. 

Sugeriu mandar um agente da polícia no dia seguinte, montar rondas… sei lá… divagou sobre estratégias… não era fácil provar uma situação ilegal… no fundo, a casa era particular, as pessoas livres de receber visitas… enfim… complicado. Mas havíamos de fazer qualquer coisa, estava comigo !

Eu disse: deixe lá, eu sou engenheiro eletrotécnico ! Amanhã falamos.

Ele sorriu, irônico…

Saí dali e fui à loja do chinês. Comprei duas câmaras de vídeo vigilância, muito rascas, o mais barato que havia.

Cheguei a casa e montei o escadote no átrio, espalhei o conteúdo da minha caixa de ferramentas, berbequim, martelo, cabos elétricos enrodilhados, chaves disto e daquilo. As pessoas passavam e cumprimentavam, olhavam para o estardalhaço, uma vizinha disse mesmo: Bom dia. Senhor Engenheiro!

A comadre do rés de chão ouviu e perguntou: 

- O vizinho é engenheiro?

- Sim, respondi, engenheiro eletrotécnico. 

- Ah, muito bem! Tão bem apessoado, só podia … (não percebi qual a relação entre uma coisa e outra, mas sorri).

Acabei de pregar uma das câmaras de vídeo no átrio. Quanto ao fio elétrico enfiei-o à balda no buraco que estava tamponado no alto da parede, nem me dei ao trabalho de concluir a instalação elétrica. Para quem estava de fora não percebia que estava desligado.

Fui à garagem, que tinha também acesso aos andares pelo elevador, e fiz o mesmo - preguei aldrabadamente a câmara do chinês.  

Depois fui a casa e terminei a tarefa mais elaborada - própria de um verdadeiro engenheiro (leia-se pessoa com muita criatividade e jeito de mãos, para além de bem apessoado, na opinião da vizinha…) - escrevi, em letras grandes, dois cartazes que colei por baixo das câmaras.

Diziam: Sorria que está a ser filmado ! 😀

A partir desse dia, passei a dormir descansado, o elevador num sossego, o prédio mergulhado num quase silêncio de lugar de boas famílias … sem chinelos no estendal.

Moral da história: um engenheiro eletrotécnico vale mais do que um polícia !



sábado, 11 de setembro de 2021

Amanhecer

 

O amanhecer de um lindo dia… de uma noite de amor!

Deslisaram suavemente nus, pele com pele, pela noite dentro… como se o tempo não fosse tempo e apenas o chão tremesse na quietude dos corpos satisfeitos.

Prolongada por um tempo infinito que lhes parecia eterno ( porque tudo é eterno enquanto dura, em especial no amor…) ficaram quietos e deslisantes, um no outro, ambos na noite escura . Cobertos/descobertos, a nudez era o manto fantástico da fantasia, tão real como fortuita, tão insegura com desejavelmente sólida… 

Sem pensar, envolvida na calidez da noite de verão sem roupa, tudo fluía sem o saberem… e também sem saberem a intimidade intimou-se com a força de uma doença pegajosa que se torna endêmica. E ao acordar não deram porque algo de novo aconteceu e que actos como estes são uns compromisso de intimidade glamorosa … que pode acabar. Nunca se sabe quão íntimo se pode chamar à força de um apego forte, sem selo de compromisso, sem visão exterior de amarras… mas que flui com conforto e com a força da união.

Se isto não é intimidade, o que é? Se não é parceria e fusão… pois eu diria que sim, é gratificante e sólido, confortável e desejado.

Amanhã será um dia com sol, assim o dizia há pouco o horizonte prometido, no seu tom de vermelho rosa com o sol a adormecer no mar ao fim na tarde.

Vai ser o amanhecer de uma linda noite, feita dia. 


quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Saudade

 


“ Saudade é solidão acompanhada, é quando o amor ainda não foi embora, mas o amado já... “

Saudade é aguardar a espera, é antecipar a vinda, é ter prazer no passado bem vivido (reduto de amor e ternura imaginados ou reais), é ter esperança de repetir no futuro os prazeres antigos  que um espera alegre trará. 
É um erro pensar que tudo se poderá repetir igual, numa forte fantasia emocional. É estupido pensar que o que é bom perdurará para sempre, que se rejuvenesce, que se engorda de melhorias amorosas, que se acende na paz calma de um amor que volta sempre… e igual. 
É melhor assim, manter a ilusão cega e ingênua…aquela que nós dá breves momentos de felicidade… mesmo que no poço fundo e atulhado do lixo emaranhado da ilusão perdida  damos como provavel que não será bem assim. Sabemos que o igual não existe , que a evolução das coisas, das pessoas e dos sentimentos muda. Mas esperamos ingenuamente a constância da vida, a repetição das alegrias passadas, o antes-vivido intenso.
E é bom que assim seja, a dor da perda - transitória ou definitiva - a que chamamos saudade , torna-se um doce-amargo saboreado com aceitação e beleza. Doi mas consola.
Ter saudade de alguém é a luz da memória grata e a esperança de um retorno possível, gratificante e recordatório. 
Se não for possível, fica a pena em forma de recordação. Fica o capital de ternura guardada…
Aquece a alma e dizemos para nós mesmo - Tenho saudades… mas se não voltamos a sentir o mesmo, se a paixão foi fortuita e o amor sólido perdeu a chama e não é ressuscitável… ao mesmo guardei na alma uma joia. A riqueza de quem já teve tudo num breve momento de luz e de paixão, ou a fortuna de que sei dizer com propriedade : valeu a pena ter chegado aqui de mochila cheia, confesso que houve quem me estimasse, guardarei saudade e ternura. Porque vou rica - se passaram na minha vida pessoas marcantes e marcadas por mim, posso dizer que vivi.
E de todos os homens, um longo capital de partilha íntima de afectos levo quando morrer. Vivi!
A saudade da ausência se transforma em Presença, já sei que terei saudade à mesma. Porque se reciclam velhas vivências com a doçura diáfana da recordação dos antigos… dos bons momentos , seus ou alheios.
Porque até os amargos se podem restaurar, adoçar , serão menos intensos, talvez, mas podem ser dotados românticos, efusivos, discretos ou calmos .  porque em cada beijo renovado, em cada carinho repartido há o gozo presente real e a imagem idolatrada de um passado glorioso que a saudade emoldura. 
Quem vive bem com o amor que a saudade passada transporta e sabe saborear a doçura presente, encontrou o segredo de uma calma vida feliz.
Sabedoria de velha que quer construir felicidade todos os dias, aos pedacinhos … aproveitados em cada migalha que encontra, repartindo-a com quem a rodeia e ama ( mesmo aqueles que o fazem sem saber)!

domingo, 25 de julho de 2021

Negação

A negação como forma de descompromisso!

Quem nega que sente, que ama, que se emociona, que chora, que anseia, que tem medo … enfim que é um ser humano com “alma”, seja lá isso o que for… não é gente!

Pelo menos, não é gente normal!

Ninguém pode ser tão amorfo do ponto de vista emocional que possa negar tudo isto, que possa atravessar fleumaticamente esta vida sem sentimentos e fraquezas. Deve ser triste ser totalmente indiferente aos prazeres da alegria, ao amor, ao aconchego da família, às emoções criadoras da tristeza, à dor da perda alheia e amiga…

Ninguém pode andar em frente com um rumo e com um sentido válido para a sua vida, se não souber distinguir o que lhe é bom ou é mau, o que lhe agrada e quer guardar e o que não lhe convém e descarta.

Ou seja, até pode fazer esta distinção mas apenas com o fim útil de obter prazer imediato e pontual, consumir e pronto, descartando o prazer futuro … desligando o hoje do amanhã… porque isso significaria continuidade e a continuidade significaria rotina e a rotina quando se instala cria raizes e as raizes podem virar compromisso e o compromisso é uma restrição à liberdade.

Quem racionaliza este esquema, sente que pode correr o risco de entrar num circulo vicioso, o qual se pode transformar em perigo de prisão. Logo para preservar a liberdade, decide que o melhor é cortar todas as folhas e as flores da árvore da vida - as partes bonitas e gratificantes - e prefere não deixar que a árvore floresça ou que as raizes se enterrem num chão sadio e fértil, porque quanto mais agarrada à terra a árvore ficar, mais preso ele fica. Quanto às flores, pensará talvez (com um piquinho de egoísmo) que importa olhá-las enquanto belas, de preferência cortadas e arrumadas numa linda jarra, onde fiquem quietas e caladas, até murcharem e serem substituídas por outras mais viçosas, mas igualmente presas e com os dias contados.

Nada de ter flores bravias ou bem cuidadas florescendo livremente no quintal, renovando a cada dia e estação do ano o seu vigor, o seu amor ao sol, a sua vida desabrochada para a dádiva. Uma dádiva natural, simples, brotada da natureza do solo que tudo cria - dos mais belos rebentos aos sentimentos, das sombras frescas ao sol quente da paixão. Tudo o que a natureza dá generosamente e de que as pessoas felizes, sábias e com sorte podem usufruir.

Fechado em casa com o coração prisioneiro do medo e do compromisso, não se vive plenamente. Há uma parte das flores da vida que escapa a quem se retrai e teme ser humano e sentir. Sentir de sentimento, pensar de pensamento, viver… coisa própria dos humanos. 

Para um cão, que também sente, tudo é mais simples... não fala, só olha nos olhos do seu dono e absorve o seu amor e proteção, devolvendo em dedicação e lealdade o que recebe.

O humano é mais complexo. Há que assumi-lo sem problemas, há que não ter medo de amar, de se emocionar … porque se tal não fizer, se se retrair… se se negar aos sentimentos e aos compromissos entre pares, às relações que os humanos estabelecem entre si, está a negar-se a ser gente … e virará planta ou animal. 

Compromissos são qualquer tipo de laços que se criam com os nossos semelhantes, são relações várias com direitos e obrigações, com dádivas e cedências, parcerias e atos solidários. Podem ser gerados na seio da família, junto dos amigos ou com amantes, com colegas ou vizinhos … na sociedade ou na pátria … ou até no clube de pesca a que se pertence …

Compromissos temos todos, todos os dias - lavar as mãos com álcool gel e dizer bom dia à menina da caixa, por exemplo. Julgo que ninguém normal se deve sentir diminuído na sua liberdade por isso.

Compromisso é gostar de quem nos quer bem, acompanha e aconchega a alma, nos sara as feridas ou dá de comer…

Compromisso é estar ligado, de boa vontade e com boa fé, livremente, preso apenas por laços, porque nós apertados ninguém quer.

A melhor forma de terminar um compromisso é assumir o fundamento do elo de afecto que o justifica e quebrá-lo. Não é negar a sua existência. 

A negação é uma especie cobardia, é não querer aceitar a responsabilidade (mesmo pequena) que qualquer acordo mesmo que informal, pode envolver. 

Uma negação, uma inexistência, um ato nulo… é como o branqueamento de capitais - lava-se, troca-se por outra coisa, dá-se outro nome… e deixa de existir.

Ou pelo menos deixa de existir na forma que tinha… e assim desaparece sem rasto, nem responsabilidade, sem pena e sem culpa.

Tanta brancura pode fazer bem aos capitais (de alguns) mas liga mal com sentimentos fortes, com afetos verdadeiros, que são vermelhos … não são brancos, nem neutros, nem descomprometidos.

E o afeto saudável e verdadeiro também não deve ser transparente, era bom que pudesse ser visível e colorido, não escondido nas sombras do medo.



quinta-feira, 22 de julho de 2021

Radar

 


Chamava-se Esperança. Se fosse um navio, estaria por certo na torre de comando no lugar do radar! 

Perscrutaria a noite escura, interrogando o desconhecido, vendo para além dele. 

Não teria medo do longínquo horizonte, perdido na escuridão, nem de navegar sem referências à vista no azul imenso, monótono e igual. Porque referências e certezas ela tinha-as, fora da vista de todos, mas presentes na sua bola de cristal que piscava luzinhas verdes e faíscas luminosas, num escuro menos escuro para quem acredita no destino e na tecnologia.

Ela não era o homem do leme… era mais do que isso era a mulher-radar, prodigioso instrumento de adivinhação do desconhecido.

Tinha o poder de descobrir o que mais ninguém via, sabia muito bem qual o seu rumo, que destino alcançar … lá longe, mesmo que a viagem fosse longa e difícil.

A mulher radar tinha uma espiritualidade sólida para enfrentar desafios com segurança. Se atravessara o Atlântico, se atracara na praia errada, qual bolandas de frágil canoa e mesmo assim conseguira sobreviver... então agora na proa do navio e vestida de radar seria ferozmente potente,

Porque conhecimento é poder e ela via o que os outros nem sabiam que existia. Podia antecipar perigos ou aproveitar oportunidades, consoante ditassem as leituras do radar.

A sua irmã menor era a sala das máquinas. Esta teria de se cingir ao laborioso exercício de afinar equipamentos, lubrificar maquinarias, manter o bicho a navegar, zelando pelo bem estar de todos os transportados, garantido que a navegação cumpria o seu rumo e chegaria ao lugar objetivo. Era uma, num todo coletivo, era a dona do espaço fundo das turbinas e motores. Indispensável ao funcionamento corrente e doméstico, era toda ela presente, toda ela real.

A Esperança Radar jogava mais longe, na fantasia alicerçada  num radar seguro. A sua força, aventureirismo e visão-radar lhe diziam para ter confiança no devir - por certo, o inimigo cairia derrotado pela sua doce determinação, pela clarividência radioscópica.

Ela era futuro infinito. A Sala era o presente finito … 

Era futuro porque apostava no que aí vem e não se conhece… procurava o longo prazo, deixando as lides domésticas atafulharem a cabeça da Sala que, um dia cansada, deixaria a turbina desenrascar-se por falta de óleo e partiria exausta, farta, desorientada à deriva nesse mar imenso e escuro onde pontuavam pequenos tubarões largados e vistos pela Radar.

Numa noite em que a lua deslisara para outro hemisfério e em que o breu ocupara o seu lugar,  Radar viu um desses tubarões  maiores no seu lindo óculo de radar faiscante e pensou: este é meu, só eu tenho o vislumbre de o topar! Só eu sei lidar com pesos pesados, comilões, grandões e poderosos como este - vou seduzi-lo! No recato da noite, com a ajuda das manobras do marujo do leme, sem dizer ao que ia, chegou-se mais perto do grande bicho e sem medo perguntou: Como te chamas? 

- Sou o Amor, o rei dos tubarões, encanto das sereias, como todos os peixes que me façam frente e domino os mares. Ao meu lado, verás o infinito, os extremos do universo, subirás aos céus, com um tremor de corpo pensarás estar a ter um vulcânico afundar na terra. 

E Radar largou tudo e atirou-se ao Atlântico, largou tudo porque para si o Amor tubarão era o mais alto patamar da existência, a ambição máxima, sonhada, idealizada e sublimada como o fim último da vida que sempre desejou... e que com esperança alcançaria, não fosse ela Esperança de nome.

Resolveu, num minuto, deixar de espreitar o desconhecido, deixou o navio seguir o seu rumo e foi atrás do troar do Amor. Ao contrário do que reza a história, não foram as sereias que atraíram o macho mas foi o Amor que atraiu a suposta sereia... e ela seguiu-o, na sofreguidão com que vivia, na busca incessante do Olimpo romântico do amor total. Mergulhou no seu vestido de noiva - não branco mas colorido com todas as cores do arco íris - mergulhou confiante num acordar maravilhoso à hora da aurora, numa madrugada radiosa ...

Mergulhou e perguntou mais uma vez ao tubarão: Quem és tu? Ele abriu muito a boca de dentes carnívoros e beijou-a, triturantemente regalado pelo sabor a fantasia... que se desfazia na sua boca, qual algodão doce... enquanto murmurava fundo e rouco: O amor não existe, é construção, idealização de mentes doentes e carentes... mas existe a vida que faz mexer as máquinas, levar as pessoas, laboriosamente pelo mar fora até a um destino terreno, viável, possível.

Na borda da amurada, Sala sorria ao horizonte que se vislumbrava rosado, ao nascer do sol. Sorria, pensando que a paga do trabalho duro nos fundos do navio seria ver terra, não tardava muito, ver a gente da sua terra, pousar no chão real do seu mundo real, cheio de coisas boas e más, mas solidamente de pés no chão dos afectos reais, sem beijos isotéricos e sem dentes de tubarão...

quarta-feira, 14 de julho de 2021

Mais momentos

 


Descobri há dias que tudo são momentos, mas apenas tudo o que importa, nos marca e fica na memória… pelos bons e maus motivos … 

Nem todos os bocados de tempo e de espaço que atravessamos são “momentos”. Apenas os importantes são dignos desse nome. E para mim os momentos verdadeiramente classificados como tal são aqueles que transportam amor ou desamor, os que são traumáticos por resultarem de doença, morte, perdas várias … tal como são aqueles que forem tidos por vitórias, conquistas sofridas e trabalhosas - com alegria e recompensa pelo bem feito a alguém.

Momentos, com nota de bons ou de maus, foram aqueles em que houve uma entrega total, empenhada e esperançosa da minha parte, com vista a fazer alguém feliz, para retirar para mim a felicidade consequente, aquela que resulta do prazer da dádiva… que é a expressão genuína de entre ajuda e solidariedade útil. Só essa me interessa. Não me consola completamente saber que me aproximo de alguém apenas pelo prazer que eu retiro da sua companhia… sem ter a certeza (ou a esperança) de que o retorno é recíproco. Se do outro lado o retorno for frio ou indiferente, bem posso eu dar tudo o que tenho que avaliarei como fracasso toda esta minha entrega.

Seja de amor, de amizade ou de simples ajuda pontual a qualquer ser humano carecido … todos precisamos de um muito obrigada implícito, de um olhar canino e mudo de reconhecimento. Eu, pelo menos, preciso de um espelho que me devolva, como imagem, a imagem que o outro (o meu interlocutor) tem de mim.

Preciso da opinião do outro sobre a minha pessoa, mesmo que seja transmitida sem palavras . Há tanta forma de transmitir sentimentos… só com o olhar, com pequenos toques físicos, com pequenos gestos de agrado, com apoio solidário nos momentos difíceis, com compreensão pelas minhas angústias e medos, mesmo quando parecem disparatados.

Preciso de um ombro permanentemente disponível para suportar as minhas lágrimas, para dançar comigo nas horas de alegria... para subir aos céus nos dias ainda mais alegres.

Preciso de compreensão e aceitação; sei que sou original e diferente (todos somos, aliás) mas eu tenho qualidades e defeitos um pouco fora do formato pequeno burguês a que se chama normalidade. E não devo ser criticada por isso. Espero dos amigos aceitação e tolerância. Espero que relevem as minhas faltas quando sou chata e que valorizem a minha “originalidade” e qualidades várias, que as tenho… sendo a maior o talento e o gosto de amar… o jeito para o fazer benzinho…com dedicação e entrega total… até ao limite último da intimidade profunda, partilhada a dois de preferência… porque se for a 3 ou a 4 haverá barreiras a essa partilha verdadeira.  Não que seja impossivel, mas é mais limitativo...porque para proteger a intimidade de um está-se a limitar a total abertura da intimidade de outrém. Os corpos partilham-se, os tempos também, os sentimentos não se partem aos bocados mas podem ser semelhantes...agora a intimidade total não se fatia... ou se tal acontece (como julgo que me acontece) alguém fica com fome por lhe caber uma fatia insuficientemente pequena.

A menos que o bolo seja repartido não equalitariamente... que o bolo da intimidade me seja dado a mim por inteiro e o resto dividido mais ou menos assim-assim.

Isto é um sonho meu, uma fantasia possível mas tão pouco provavel com sair a sorte grande... contudo, nem tudo o que é improvável é impossível!



sexta-feira, 2 de julho de 2021

Momentos


Momentos são pedaços de coisas aferidas pelas principais variáveis que nos regem - o espaço e o tempo. São curtos, marcantes, têm um núcleo de identidade própria que lhe dá um nome, uma natureza, um contexto, uma existência.
São diferentes de outros bocados de coisas que também ocupam tempo e espaço… mas que se diluíram nas rotinas indefinidas e amorfas. Iguais e pasmacentes… que por não deixarem rasto nem memória… não são percepcionados como momento.
Momento é por isso um átomo importante de Vida!
Colecionados por cada qual ao seu jeito, ao seu gosto, passado pelo filtro dos seus amores, dos seus traumas… 
Não são horas iguais a tantas outras… são a existência que deixou sumo. Aquele sumo que - espremidas as dores, as alegrias, o esforço e as insónias - ficou derramado à nossa volta como perene. Sobrou da merda da vida, sobrou depois de termos desprezado, distraídos, as cascas e as peles da fruta desperdiçada. Restou o sumo - doce ou amargo - mas promovido à nobre categoria de momento.
Um momento é este em que escrevo pela noite dentro… em paz e alegria… construído com as migalhas de amor que hoje me calharam em sorte que, no entanto e bem vistas as coisas, são apenas a que me foi dada como certa, adequada ou merecida… “ não é cova grande, é cova medida …” (J. Cabral de Melo Neto/Chico Buarque).

Não é uma queixa, nem um sopro de miserabilismo. Todos somos Severinos, na morte e na vida. Eu hoje não morri! 
Sinto-me um Severino feliz, afortunado, numa campa/cama pequena e pouco funda (não em tamanho, talvez em afecto) mas é a "parte que me cabe neste latifúndio"… 
Outras covas me rodeiam, outras mortes, outras vidas.
A felicidade possível é uma coleção de momentos bons, de sonhos doces, de beijos curtos e de ameaças de amores ainda mais curtos e transitórios…
É a sorte "qui me cabe neste latifúndio"…!
É o momento: hoje e agora. 
Um amor cheio, hoje, um destino desconhecido amanhã, uma morte certa. Tão severina quanto todas as outras… pouco importa .
Hoje existe um momento e é meu e é bom - escrever olhando o nevoeiro cerrar-se sobre o mar, às 3h da madrugada, quando a noite ainda não é madrugada, quando o momento não é nada para ninguém, mas é meu.
Uma soma de amor unipessoal, unilateral… medroso (mas não merdoso) se acrescenta à paz da escrita cumprida... só momento, único e marcado .
Não é mais uma hora de prazer, não é mais um desabafo passado a escrito - é o próprio momento que passei a escrito, que medalhei com a honra de ser o presente, o agora. O único que interessa e carrega a beatitude dos sentimentos doces e amargos que a minha vida ambivalente e saltitante percorre cada dia, qual carrossel.
Hoje é noite - um momento que amo. Hoje houve afeto um sentimento que amo. Hoje há um amigo, que quer ame quer não, corporiza o amor físico e a amizade psicológica que fazem deste momento - um Momento!
Aquele que fica na memória.
Aquele que se há-de misturar - num outro dia, num outro  escrito - com os momentos de raiva, de ciúme, de desalento de angústia, de carências várias… sempre na busca e na esperança de muitos, muitíssimos momentos  carregados da única coisa que vale a pena - a intimidade entre seres que se gostam, a amizade, a solidariedade, o respeito pela liberdade recíproca, a plenitude que só o amor que garanta tudo isto pode dar.

quarta-feira, 16 de junho de 2021

Poema incompleto


 Quem me dera fazer um poema bom!

Um poema útil.

Um poema capaz de ser lido, entendido, engolido até às entranhas por uma alma sequiosa de palavras e de conforto.

Quem me dera saber escrever pouco e dizer muito! 

De, com poucas palavras, gerar muitas ideias ou apenas uma ideia-mensagem que fizesse a diferença.

Uma palavra só, pode ser um poema se chegar ao destino certo, se for a tal… a certa. A que penetra e diz tudo, a que é nova pelo mundo que abre, a que permanece no tempo por ser de entendimento  universal…

Só os grandes o conseguiram, por isso nós as lembramos.

Por serem eternamente verdadeiras… “todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades…”

E sob este signo de “novas”, guarda-se todo um poema de expetativas e alegrias. Cabe lá tudo: um mundo fantástico de esperanças … um sol radiante e radioso que a expetativa da mudança comporta.

Alguém se lembra de uma mudança para pior quando lê o poema? Não!

Na mudança poética só pode estar a bem aventurança de um futuro melhor.

Alguém pensa na morte, na velhice e na doença quando lhe falam na mudança? Penso que não. Porque logo a seguir vêm as “novas qualidades”.

Um otimismo enganador certamente. Porque mudar é caminhar rumo a um destino em parte desconhecido (logo potencialmente nefasto) e em parte conhecido (há um final à nossa espera). Esta parte não tem de ser negativa. Final haverá certamente - vamos todos, um dia, para nenhures!

Mas, para quem acredita na poesia, será um final feliz. 

Aquele final em que a música do filme sobe de tom, nos envolve e transporta, em que fechando os olhos sentimos o valor do beijo que nos atinge. Poesia é a palavra que se envia, se escreve ou se sente sem escrita… é o beijo musical que penetra e humedece a alma .

Muitas almas se possível… porque há tanta solidão acompanhada por aí… a deixar-se ir… a precisar de um poema humano, de um toque animal, da palavra mudança-esperança..

Tanta gente que gostaria de ajudar , que vejo deixarem-se ficar para trás por inércia, porque sim, porque não sonham, porque não leem… não rimam, porque se esqueceram de saber amar.

Fora eu poeta, escreveria para elas - uma só palavra, ou poucas mais que rimando cantassem a música precisa, o poema capaz de ressuscitar mentes amolecidas pela tristeza sem causa.

Quem me dera saber fazer um poema … 

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Corredor

 


Um corredor tem muitas portas. Estou fechada num quarto. Confortavel é certo, mas de onde não posso sair quando me apetece. Talvez por inércia minha, talvez por conforto relativo, talvez porque é uma casa habitada por alguma companhia que me ajuda a combater a solidão... e assim, vou permanecendo no quarto fechada.

Não estou presa!

Sei que posso abrir a porta e sair. Olhar-me no espelho do átrio e perguntar a mim mesma: será que ainda tenho cara para enfrentar o mundo? Partir corredor fora e, quiçá, bater a outra porta ou procurar novos mundos, bem longe deste tipo de casas que tendem a ter muitos quartos que se assemelham a prisões?

Páro à frente do espelho e espero que ele me devolva a resposta. Sou gira? Alguém me irá acolher na porta do lado? Alguém me conhece o suficiente para conseguir avaliar a pérola escondida que reside no meio de mim, nacarada de amor para dar... carregada da felicidade suja do pó da indiferença, mas que bem polida pode voltar a brilhar?

 Para a idade não estou mal, claro... sou simpática, boa rapariga... gosto de ajudar, trabalhar a bem do próximo, gosto de me rodear de pessoas boas, gosto de mim (mas, de momento, sinto-me mal... a alma está meio engripada). 

Incongruências!

Fechada no quarto, vivendo na clandestinidade social, não me aguento por muito mais tempo. Ando fugida, no entanto,  não cometi nenhum crime. 

Sou livre (na teoria), tenho dinheiro, emprego, família, uma amostra de casa, ao menos é um tecto de abrigo... não passo fome, tenho saúde... não vivo na rua, ninguém me odeia... (acho)...mas talvez me desprezem, ou ignorem ou desrespeitem, o que não mereço.

Da injustica pode-se fugir.

Talvez seja isso o que eu preciso. Fugir deste corredor de quartos, porque provavelmente em nenhuma porta vou encontar quem me ame.

Se fosse por aí, corredor fora, teria de passar cada noite em seu quarto até acertar com um leito de conforto afetivo.

Não espero apaixonar-me, não peço tanto. Já tive a minha conta. Tive sorte e sei o que foi viver momentos grandes de paixão absoluta... são únícos, intensos,  totais... valem por uma vida.

Sei que são transitórios, de curta duração face à longevidade da vida.

Para mim, são o meu mais rico capital, os filhos também, mas  não estão neste contexto. Tenho a minha conta de amor bem vivido, em dose maior do que a maioria das pessoas, estou em crer.

Talvez seja presunção minha, mas sinto-me uma privilegiada nesse campo. Tive amor a sério, vivi!

Não dura sempre, o que não tem de ser uma tragédia.

Porque também sei que depois da paixãp, pode-se instalar o amor suave de uma parceria intima e boa.

A melhor herança que se pode ter de uma paixão é uma amizade de intimidade verdadeira e essa pode ser eterna...

Uma relação de afeto calmo e feliz devia ser possivel, sem grandes dramas, nem complicações,...  devia ser possivel.

Sobretudo no meu caso, em que não vislumbro que tivesse havido zangas nem problemas de maior, devia ser possível, garantir um lugar feliz de afecto... Devia, mas...

É no mas que está o busilis - foi-me recusada,  chumbada a possibilidade de existir qualquer tipologia de relação, que envolva comprometimento, qualquer forma de afeto com visibilidade pública. Não se trata de casamento, nem de união de facto, nem de namoro em casa partilhada. Tratar-se-ia, tão só, de uma relação de sã conjugalidade, com compromisso amoroso, enquanto durasse, com casas separadas e férias junto, com intimidade, no sentido mais amplo do termo, com uma parceria de entre-ajuda verdadeira, um ombro para chorar, por exemplo, um pôr do sol para ver em conjunto, um luar especial, sei lá...nada mais! Um nada de mais que para mim seria tudo!

Estabilizar num quadro confortável e amigo, com alguma segurança e algum tempo... seria para mim um modelo de vida aceitável. Não preciso de muito, apenas assumir uma relaçao de conjugalidade amorosa, de tipo informal, sem papeis, nem tecto comum, apenas gostava de poder passear à luz do dia, livremente, sem clandestinidade, ver amigos, sem tabús. Apenas gostava de partilhar amizades, conhecer alguns membros das familias respetivas... andar na rua de cabeça levantada, 

As outras que se escondam, que sejam discretas. Não me importa nada. que tenha uma cambalhota externa, de vez em quando, isso não me incomoda desde que esses casos não tragam atrás de si a expetativa de um compromisso sério. 

Mas julgo que já vou tarde para inverter a situação, o compromisso consolidou-se em relação a pelo menos um caso e não vai mudar. O pior é quando isso é motivo para eu ficar para trás. O pior é que a seguir à cama, à intimidade e às coisas rotineiras dos dias em comum, vem o terreno da dominância doméstica - a dominação territorial -  tão feminina - alastra na justa proporção do espaço e do tempo de cama. O pior é a suspeita de que essa expetativa e dominância cresça, à medida que as sementes poisam nos lençóis.

Não há cambalhalhotas grátis!

Não cambalhotas gratis, nem panos sujos de truques macacos que, um dia, não se venham a traduzir em amparo, em bengalas, penicos para despejar, lares para morrer...

Sou velha e a velhice trará, um dia, o total esquecimento das coisas boas do amor.

Só queria usufruir do pouco tempo que me resta, com paz, afcto e calma, sem a insegurança permanente de ter um cutelo em cima da cabeça ... Ele a dizer-me a toda a hora; pode cair-te sobre a cabeça e matar-te. O potencial matador não tem sentimentos nem escrúpulos em deixar cair o cutelo, se eu abrir demasiado a boca. Leia-se: se eu refilar...

De todos os meus defeitos, este é o pior: sou refilona, frontal e demasiado sensível para conseguir calar as dores da alma... que me torturam mais do que seria razoavel.

A minha salvação está em 2 alternativas totalemente opostas:

1) Ou me calo e aceito as desfeitas de cara alegre, à custa de engolir lexotans em vez de sapos vivos (não me parceem lá muito saborosos).

2) Ponho fim a esta vida - atiro-me da ponte, mergulho no mar com os bolsos cheios de Virginia Wolf.

Qualquer solução, lhe será indiferente: passa bem sem mim... sem ninguém, até.

A única a perder serei eu.. .talvez a minha filha note a minha falta... talvez o meu neto venha a gostar de mim.

Porque neste momento, a minha vida é um quarto trancado num corredor cheio de portas que não se vão abrir para mim.

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Francisca

 


Virei Francisca! Que na minha escala de valores significa ser uma amiga anódica e indiferenciada. 

Uma amiga sem conteúdo amoroso nem desejo sexual, apenas uma compincha. Baixei de estatuto : antes, eu  era ( ou sentia-me como tal) um elo de uma cadeia amorosa , respeitada e considerada num patamar decente , era Eu, sentia que era mulher amada, gostada, privilegiada, uma amiga especial que vivia embrulhada numa cápsula afetiva própria e especificamente desenhada para me agradar e para eu lhe agradar, uma pessoa respeitável a que ele destinava uma réstia de algum amor e que não era passível de ser confundível com amizade simples,  com condescendência para  com outras situações congêneres  que o rodeavam (assediavam).

Eu sentia-me diferente e melhor do que a concorrência. Apesar do equilíbrio nem sempre fácil e da originalidade da situação, sentia-me mais ou menos segura e conformada com situação. Porque me via num lugar de poder de supremacia relativa.

Este ponto sempre foi para mim importante - ser a mais querida e importante... o resto era poeira... companhia avulso e pouco marcantes. As outras eram seres sexualmente pouco interessantes, dispensáveis até,  ou pelo menos que ficavam aquém das minhas claras vantagens competitivas. Segundas linhas incapazes de me fazer sombra e que só eram chamadas para tapar buracos. Eu tenho consciência de que não posso nem devo estar sempre presente e que ele precisa de diversificar e divertir-se, quando eu não estou. Tenho família, trabalho e assuntos meus a resolver. Não vivendo juntos  é natural que não esteja sempre disponível e percebo que quem tem mais tempo e não tem dependências, possa ser recrutada para suplente com maior facilidade. 

Enquanto me senti amada e privilegiada, estava feliz e aguentei as pequenas chatices e rasteiras que ia encontrando pelo caminho..,

Houve momentos melhores e piores, sou rija mas o meu grau de tolerância tem fraquezas.

Agora já não sei! Sinto que a relação está em down grading. Tanto faz estar por aqui como não. Sou uma companhia indiferenciada. Ele tem melhor substituta... não diz que estou a mais ... mas na prática se não estivesse, não faria falta nenhuma.

O discurso oficial é que somos ambas iguais e dispensáveis. Amigas assexuadas para fazer companhia nos tempos vazios. Mais ou menos como um cão de companhia.

Temo que não seja bem assim e que ainda haja pica pela outra enquanto que eu seja só a chata de serviço...

Pensado bem, sou cobarde, não tenho coragem de partir ... de vez.

Acresce a tudo isto o manto horrível da clandestinidade... se sou livre, porquê andar escondida?

Não apresentar família e conviver com amigos, é tabu? Ele acha que isso seja visto como um compromisso. E que não quer!

Mas o compromisso existe sempre que há um relação de qualquer natureza. E os compromissos desfazem-se quando é preciso.

Não percebo qual o problema de uma relação amorosa (mesmo não formalizada de modo convencional) ser apresentada publicamente. Se lidamos com gente civilizada e aberta, é normal darmo-nos a conhecer... e quando a relação acaba, também é normal os outros saberem. 

Para os outros é indiferente, comentam, aceitam e esquecem.

O problema é apenas para os envolvidos. Uma rotura custa, pelo menos a uma das partes - à que foi mal tratada e é deixada para trás. 

Mas tudo se ultrapassa. E é melhor uma rotura clara, consensual e amistosa do que as meias tintas que só servem para criar uma angústia permanente, dolorosa e desgastante!

Estou a envelhecer... sinto que mais depressa do que quando era feliz. 

Vê-se no corpo mal amado. Nas rugas do desgosto. No amargo da boca que já não ri... como dantes... só reclama. Debita queixas azedas... porque o amigo que ama, não cuida, não respeita. Sinto-me azeda como leite não  bebido... coalhado de lágrimas e indecisões.. De ciúmes e de impotências. Sou totalmente incapaz de explicar ao menos o que sinto ou meus pontos de vista.  

Queria ser amada mas não posso exigir amor quando ele não existe para mim.  

Peço ao menos ser compreendida... ao menos, alguém que me ouça e me entenda - aquilo que desejo é tão pouco e tão difícil de obter. Sou muito sensível e mostro pouco, tenho tanta falta de  jeito. Sou tão elementar e naif que facilmente serei suplantada pela profissional da putice, aquela que se arvora em ter por profissão ser amante de homens mal casados.

Profissão muito nobre, porque há muitos homens a precisam de amor e carinho...

Aprovo esse tipo de obra de caridade e deve ser pago. Em espécie, em proteção futura, quiçá em casamento. É justo porque não há cambalhotas grátis ! 

Mas neste caso, dispensa-se tal profissional - nem ele é “casado”, nem está mal tratado. Opinião subjetiva, claro! Eu acho que o trato bem, com amor e carinho, eu acho-me perfeitamente competente para lhe dar prazer na cama. Se peco, será talvez por excesso, por overdose de amor e dedicação. Excesso talvez mal compreendido por quem tem poucas necessidades de afectos.

Pelo menos, é esse o discurso oficial... apesar de eu intuir que o carinho da concorrência é bem recebido e sexualmente consequente. Há uma dislexia nisto tudo que me ultrapassa...

O que está errado comigo, o que posso fazer para melhorar a minha vida e a dele?

Que caminho seguir?


terça-feira, 18 de maio de 2021

Sol de Amigos



Em dia cinzento, fez-se sol!

Os amigos têm este bónus dentro de si, muitas vezes sem o saberem são os transportadores do sol, da alegria dos raios gâma e das ondas beta... do ar de afectos tão necessário à vida.

Hoje fez-se sol... correu um mar de amizade e frescura...

E foi mais um dia, que seria teoricamente chato de tele-trabalho e de quase confinamento, interrompido por breve horas de intervalo ao sol... ou à sombra, já nem lembro.

A memória fixou um momento bom e a noção (tantas vezes esquecida) de que o que importa é viver o presente, um dia de cada vez, sem olhar ao que aí vem, sem ter medo do futuro. 

Curiosamente, pouco me rala o passado, não sou muito de lembrar nem os bons, nem os maus momentos. Não crio depressões retroativas.

Preocupa-me bastante mais o dia de amanhã e o facto de hoje, no presente, não ter um chão. Vivo como se estivesse em viagem, com tudo o que as viagens também têm de bom, a mudança, a surpresa, o conhecimentos...mas também o que as viagens trazem de insegurança, de necessidade de improvisar, de contornar os obstáculos que vão surgindo... e, qual turista, vor andando sem que haja alguém ao meu lado para me ajudar a orientar, quando me perco nessas ruas desconhecidas que a minha vida tem hoje.

Não tenho casa, nem uma envolvente estável de afectos, a família está dispersa, o emprego em phasing out, não há hobbies empolgantes, nem objetivos de vida que me levem a levantar da cama de manhã, com alegria...

Acordo e é apenas mais um dia, com ou sem sol. Hoje foi um dia bom.

Amanhã posso vir a apanhar uma trovoada, tem havida algumas ultimamente e no horizonte dos próximos anos avizinham-se algumas borrascas...

Será que um raio ainda me vai atingir e derrotar de vez?

Ou será que ainda tenho hipóteses de ir atrás de um arco-iris?


sábado, 24 de abril de 2021

Gaiola Aberta


Custa-me ser acusada de carcereira! De ter aprisionado o meu pássaro favorito numa gaiola e de a ter fechado à chave. Privando-o da liberdade e impedindo que porta esteja sempre aberta para que, por ela, possam entrar e aí pousar todos os pássaros, que se sentirem  lá bem e que ele estima. 

Eu que tanto prezo a minha liberdade, acho isso de uma injustiça atroz. Eu que tenho dado espaço de tolerância, para além do que seria razoável para a maioria das pessoas, eu que troquei conforto por liberdade. Eu que podia gozar a estabilidade de um casamento equilibrado e que tinha uma gaiola confortável... e, no entanto, saí e mudei de rumo, em prol de um espaço mais amplo de liberdade, sou a prova viva de quanto prezo e de quanto  respeito a liberdade - a minha, a dos outros e, também, nas relações que estabeleço com eles.

Se o outro for alguém que eu amo, mais fácil é alegrar-me com o seu voo livre e feliz, com um entrar e sair da gaiola sem entraves, em transparência e de porta aberta.

No entanto, é justo esperar que a livre escolha de entrar na tal gaiola, de portas sempre abertas, seja algo que flui nos dois sentidos. Ele é livre de acolher as aves de arribação que passam e exigem franquia pronta. Eu sou livre (gostava de o ser!) para entrar, sem complexos nem entraves. Quando a porta está aberta, estimo ser bem acolhida.

Só que, neste momento, não é assim: a liberdade mútua está em risco, porque há ameças na tranca da gaiola, o retorno de uma ave de arribação antiga, que parece ter vindo para ficar, está a fechar a grade que o isolará  do mundo (mais do que uma ameaça imaginada, é um real travão à vida franca e aberta na gaiola).

Foi um avanço inesperado, uma reentrada triunfal que tem por objetivo viver ao máximo dentro das grades seguras e encerradas da gaiola... se possível nunca abrindo a porta... porque o seu pássaro encantado tem de ser embruxado ou preso. Não há outra hipótese, pois ele já demonstrou que é fugidio e, como é sabido, à sua volta cirandam outras asas.

Faço parte dessa turma voadora, flutuante... que passa e gosta de pousar. Sem nunca fechar a porta... consciente de que posso ser forçada a partir, a qualquer momento. Não gostaria de partir empurrada à força para fora da gaiola, não nego que apesar de reconhecer que aquele lugar não é meu, permanente (nem quero!), eu gostava de "estar quando estou". 

"Estar quando estou" é um conceito importante! Parece um pleonasmo, mas não é... Pode-se estar num lugar ou com uma pessoa, como se não se estivesse lá, como se eu não existisse, como se não me vissem. Há muitas maneiras de estar. Infelizmente, às vezes, estou fisicamente num sítio e sinto-me longe ... olho no espelho e ele não me devolve a imagem (serei fantasma?), falo e não me respondem, beijo e não me aquecem, cheiro e encontro um podre aroma a miséria... afetiva, (des)umana...

A gaiola pode ser um lugar estranho, mas tem porta de fácil abertura, não tem de ser uma prisão.

A liberdade preza-se, cultiva-se, inventa-se, a cada passo... não é um conceito absoluto. Se a virmos de forma absoluta, então sim, só é verdadeiramente livre um eremita -  aquele que não cria laços de dependência, de companheirismo, quem não gosta de fazer e de dar amor.

Fazer amor, com a plenitude que eu gosto, mereço e de que não abdico, é um ato que exige compromisso. Não há Amor sem compromisso, sem entrega, sem fusão de corpos e de pensamentos, sem cedências e ajustamentos triviais, de parte a parte... sem pequenas coisas que nos tornam menos livres mas não comprometem necessariamente a Grande Liberdade fundamental, Compromissos deste tipo não os sinto como perda de liberdade e não nos torna menos dignos por isso.

Eu sou livre porque posso dar o meu corpo e coração a quem prezo, respeito e admiro... sem largar mão da liberdade que também me é cara. Amar não é uma perda, é um ganho!

Não estou presa na sua (dele) gaiola. Mas ele sente que o prendi... demasiado, porque me revelo “dependente” (lol)!!!

Posso é estar presa dentro de mim, fico bloqueada e triste ... quando pressinto que sou vista como uma pesssoa acusada sem justa causa por coisas insignificantes... como, por exemplo, dar um beijo inopinadamente. Pedir um beijo, um abraço, ou chorar num ombro amigo é humano. Não é roubar a liberdade de ninguém!

Claro que um envolvimento amoroso autêntico, sobretudo, se for de longa duração, se torna sério e começa a parecer-se com compromisso, o que não é crime, nem necessariamente mau. Involuntariamente, criam-se raizes que prendem e podem ser lidas como perda de liberdade. No entanto, é uma "perda" transitória que traz grandes compensações - a intimidade e a cumplicidade que se ganham, nos momentos a dois, valem bem o "prejuízo" de uma solidão independente. E depois, tudo é transitório, temporário - quer a liberdade, quer os breves momentos da sua perda. Seria um assunto simples e ultrapassável, se houvesse diálogo, compreensão e jogo limpo.

Todos os compromissos tal como os contratos têm um fim, podem ser denunciados ... não são uma prisão perpétua. Nem num casamento, quanto mais numa relação ad-hoc.

Verifico, com pena, que esse peso e esse medo do “compromisso-dependente”, nem sempre é visto como ameaça. Há quem venha para a gaiola com uma cartilha estudada, com programa politico, com objetivos a prazo... fingindo leveza e inocência, pode ser uma ameaça à liberdade, mas disfarça bem, consegue prender sem mostrar as algemas. Perde a cueca mas a algema fica, invisível e forte...

Depois há os naif como eu, que passam por aquilo que não são. Mesmo com dois pares de cuecas vestidas, são potencialmente perigosas... um susto, certamente alguém que traz uma pistola escondida dentro do cinto de castidade.

Não espero nada, não exijo compromisso, basta-me amor, carinho e liberdade para exprimir os meus sentimentos, mesmo quando eles envolvem algum comprometlimento.

Poderia  ser tão simples, marcar encontros sem drama, prazenteiros e consensuais. Seria tão bom, poder saltar ao pescoço quando apetece, sem ser vista como uma ameaca!

Se for eu a avançar com iniciativas amorosas, esbarro no medo do compromisso. Medo esse que advém de um trauma passado. Eu nada tenho nada a ver com isso, nem posso ser comparada com a carcereira que durante anos o fez cumprir injusta pena de prisão. Eu pugno por uma politica de gaiola aberta e do respeito mútuo, por um modelo que permita entrar e sair da gaiola - que seja ajustável e livre, que seja confortável para os dois, em que a vontade de estar juntos não esbarre em mentiras, omissões ou encapotadas manipulações.

Há uma ameaça à liberfade, sim, mas não sou eu a causa, não sou eu que sorrindo e negando, fingindo carinho e otimismo, militando num teatro de fantasia, bem encenada... vem no intuito de confirmar sinais de esperança, comprovar que terá lugar na gaiola. Alguém que começa por vir comer as migalhas que escorrem por entre as grades e que se alimenta de fantasias mais grandiosas. Que espera o momento em que o pássaro “supostamente residente”, se vai fartar e fugir. Voar para longe e não voltar.

Fazer amor é um ato de entrega mútua, uma lição de partilha e solidariedade, estamos ali no leito ou no chão para dizer, sem palavras, o que somos, o que gostamos e o que não queremos.

Naqueles breves instantes em que o amor carnal acontece, passa-se muito mais do que isso... fica a memória, a vivência boa, a intimidade ... tudo aquilo que vai para além do desejo que se esgota, fica a vontade da sua renovação futura, fica o elo que nos torna mais coesos. Esquece-se o resto... se somos 3, naquele momento só estamos 2, espaço único de confirmação de liberdade e cumplicidade a dois ...

Eu, quando me entregava, ia sem truques de dominação, ia livre e branca, orgasmo ao longe, sem que fosse esse o objetivo...

Ia pelo prazer único que é a intimidade. Ia, mas já não vou!

Agora sei que deixando de lado essa entrega física, genuína e gratuita, posso estar a perder-me e a fazer com que o interesse por mim desapareça. Porque um homem é homem. E se tiver uma puta que lhe abra as pernas a troco de contrapartidas, não olha a meios ou consequências ... e larga o resto.  Até se esquece que uma queca é um compromisso  bem grande, sobretudo se for repetido e antigo. E não há almoços gratis! Quem hoje se oferece e sai eufórica, na expetativa de que, no futuro, os laços desta relação romântica se transformem em nós. 

E que se transformem em casa, reforma, em apoio solidário e em valorização social.  O assediado cego está em perigo de perder graus de liberdade,  porque o fim que o espera será o fechar da gaiola, onde ficará refém de um carinho interessado. Alvo de discretos roubos de liberdade, travestidos de doçura inocente, suavemente estimulado numa libido renovada, pensa estar numa gaiola de porta aberta, não acautela que poderá virar prisão.


quarta-feira, 21 de abril de 2021

Downgrading


 Ninguém gosta de perder! Hoje perdi quase tudo. Morri, qual borboleta, outrora esvoaçante e feliz, desejada e gostada, acabou o seu voo estatelada na pedra.

Deixou de poder voar, de sonhar, de amar, de dar o tanto que tem de si.

Houve um down grading tremendo, na posição relativa que ocupo, na constelação celeste dos amantes felizes, nesta galáctica de amores e de estrelas, onde aos poucos eu vou desaparecendo... A minha pobre e humilde estrela está a perder o brilho, a minguar, a zerar, a tornar-se quase invisível e afastada do sol-rei. 

No universo imenso e povoado de milhões de luzes felizes, vibrantes e amorosas... que falta faz mais uma estrelita moribunda? Há mais quem brilhe e a substitua, com garbo e competência. Há os astros novos que enchem a curiosidade de quem procura no firmamento, mais calor e emoção, mais vida, mais alegria, mais mundo.

A rotina de uma estrela apagada e chata, cansa. 

Depois de mim, virá quem melhor sirva o deslumbramento infinito, que o infinito universal comporta. E é tanto aquilo que o universo contém... imenso, eterno, livre e inesgotável...

Há sempre mais e mais para descobrir. Porquê ficar preso a compromissos espartilhantes e limitadores ?

Se a liberdade é um espaço e não um sentimento interior ... então faz sentido que essa liberdade seja percorrer o mundo, solitariamente... encontrando pessoas só pelo prazer de usufruir delas, como se fossem um bem consumível. Come, usa e deita fora. Pessoas não são para possuir, são para consumir.

Quem assim pensa, tem dificuldade em ver os seres humanos como seus parceiros e iguais, quem olha os seus semelhantes como objetos utilitários e descartáveis, vive desumanizadamente só. E não ama! Porque para amar é preciso emparceirar com um outro ser humano, tido por igual, para que a fusão aconteça.

É preciso que a noção de casal, de “coisa a dois”, qualquer que seja o estatuto que o subescreva essa parceria, seja concebível para essa mente solitária e independente. É preciso que conheça outra realidade: perceber que a dois ou em grupo, se podem fazer acontecer coisas boas , coisas que a sós não existem. Por exemplo, o prazer da intimidade , da cumplicidade, da entre-ajuda.

São maravilhas que a humanidade descobriu há muito e que tantas vantagens pessoais e sociais têm trazido aos homens. A solidão permanente no interior de cada qual, não faz crescer, nem dá prazer . Crescer a dois é melhor. Passear de mãos dadas à beira-mar é melhor do que separados pelo medo do compromisso, idiota e inútil.

Para esse tipo de gente, pessoas são companhias simpáticas ... como um cão. Se ladra muito ou tem sarna, abate-se.

Pessoas verdadeiras, amigos que nos trazem alegrias e tristezas, que nos pedem um ombro, para chorar, um afago de cura, só complicam, não interessam, são para descartar. 

Hoje fui deixada cair! Caí redonda num chão duro de pedra, cortante. Trauma que dói e não tem retorno.

Não há cedências. Nem tolerância. É cada um por si, não há pontes nem linhas de contacto,  a interseção dos conjuntos não ocorre, nem mesmo numa pequena zona de interseção ... um espacito onde ainda seja possível plantar uma rosa, que possa florir.

Não há espaço para o diálogo, para semear um pouco de afecto que possa florescer.

As portas fecharam-se numa teimosia irredutível.  

A negociação não é via, a tolerância não é instrumento para consertar o que parece não ter conserto. Resta-me aceitar as condições rígidas impostas ... ou talvez não! Resta-me a liberdade de partir.

Mais uma vez ouvi: “Quem está mal, muda-se”!

Firme e hirto na sua redoma , afastado do mundo humano das emoções, longe do mundo das pessoas com alma... apenas lhe interessa o prazer direto e egoísta.

Apenas recebe (coisas boas), renega as outras ... e não dá nada em troca. 

Nem um simples obrigada...

terça-feira, 20 de abril de 2021

Naïf


 Naïf, assim contado em inglês soa mais chique.
Para disfarçar, resolvo auto intitular-me de naïf. 
Parece-me melhor do que definir-me como tolinha, ingênua, patega, bimba ou mesmo ligeiramente mentecapta. 

Biblicamente, dir-se-ia pobre de espírito... e será dela o reino dos céus... LOL.

Ora eu não ambiciono nem acredito nesse céu transcendente e eterno, visto como destino futuro, para além da vida. Sou terrena.

Queria ter um céu, sim, mas aqui e agora, o que não está fácil. Queria muita coisa, eu sei, sou uma falhada, esforçada sem sucesso. Apesar de tudo, tenho pequenos talentos diversos e simples; sei e gosto de trabalhar, (ou sabia), pinto, escrevo, bordo e tricoto, cozinho comida honesta e simples de mãe de família, e sobretudo sei amar como deve ser - e gosto muito! Tento ser boa, agradar ao próximo... mas não consigo ser plenamente feliz e rodear os outros de alegria . Não consigo partilhar o bem que fervilha e transborda de dentro de mim. Se houvera quem o aceitasse, quem o daria era eu.

O problema é a minha falta de jeito para viver, para me divertir, para pensar em mim. Sou tosca, desastrada nestas coisas do saber-viver, sou trôpega quando se trata de caminhar segura na estrada certa, sou cega e não vejo como agarrar as oportunidades boas que me têm passado tão perto. 

Completamente naïf e baldas, com tendência para a anarquia do “deixa -andar”. 

Nunca forço, nunca busco o amor, deixo-me ficar sentada, parada, quieta e calada porque sei que o importante é o que eu sou e não o que faço. Mais logo, alguém verá a pérola dentro da concha e abrirá uma prenda de amor que está para quem a merecer. Basta esperar e acontecer. E tem acontecido... sem truques da minha parte... naturalmente ... 

Sei o que valho, sei que tenho uma capacidade imensa para amar, para me dar, para me entregar com força e paixão a quem gosto ou aos projetos que me empolgam. Sei que essa força e energia vêem de dentro, e que  há uma luz que a reflete para o exterior. Tipo farol escondido que só alumia e atinge aqueles que me vêem ou que me amam com olhos de ver , com coração de sentir.

Por isso, não preciso de fazer nada, fico quieta e espero que quem interessa dê por mim. Porque se me olharem bem, tal como eu sou, verdadeira, automaticamente serão fulminados pelo tal raio que emito sem saber. Não preciso de montar estratégias de conquista,  nem maquilhar o corpo ou a alma... basta-me ser eu. É assim que gosto de ser , é assim que gosto que os outros me vejam - nua, verdadeira, cheia de defeitos, cheia de qualidades, cheia de sorrisos , de solidariedade  de gosto por amar e de ajudar amigos... pronta a dar tudo (mesmo que o tudo seja demais para quem recebe), pronta a partir e a mudar o rumo da minha vida, a bem da liberdade ou de um melhor destino, sem olhar para o que perco . Porque uma mudança implica sempre perdas... algo fica para trás e não se recupera...

Mas sou assim tolamente ingênua ... em especial no amor. Desprendida das consequências materiais dos meus actos, foco-me no essencial - e o essencial é o Amor. A única coisa que interessa e que gostaria de preservar, sem truques de dominação, sem estratégias para arrasar a concorrência, sem lutas pelo poder. Ganhar o amor por mérito próprio, sem ter de o roubar a ninguém. 

Nunca optei pelo caminho fácil. Escolhi vários caminhos, tinha auto-estradas razoáveis à minha frente, mas a tendência de uma naif é escolher o caminho das pedras, onde tropecei e me levantei, onde continuo a sofrer acidentes... alguns graves ..  alguns já me deixaram na valeta, moribunda, há uns anos. Mas renasci , passantes carinhosos levantaram-me e deram-me colo, por uns tempos. A convalescença com amizade ... deu-me nova vida. Hoje ainda tropeço mas estou mais preparada, menos ingênua, com mais skills de sobrevivência para enfrentar as perdas desta vida. 

Mesmo assim, continuo naif ,  não luto nem me defendo, não me esforço por definir uma estratégia de ataque aos inimigos ... sei que existem e não faço nada para suplantar as dificuldades, sou parva, portanto. Jogo limpo, num mundo sujo!

Sei dos engulhos que me espreitam, nas curvas do caminho, nos esconsos sombrios, sei que os golpes sujos não acontecem por acaso, só eu e o inimigo os conhecem... mesmo assim fico parada.

Permaneço eu - Palerma,  sem armas, sem guerras, queimando as dores no lume brando das drogas leves, escondendo as lágrimas na solidão, largando a raiva nos dias difíceis ... o que só piora a situação.

O mundo artificial e fútil em que vivemos só admite gente alegre, bonita, amorosa, com um sorriso feliz que sirva de maquilhagem à miséria humana que cada um de nós comporta. 

O que os outros esperam de nós, aquilo de que mais gostam é de teatro, daquele que faça rir, que acarinhe , que faça de conta que a bondade existe e a mentira não. 

Em especial, as almas simples  como as crianças querem palhaços porque estes sorriem sempre e contam histórias maravilhosas . Não interessa que esse palhaço - que lhes alegra o tempo livre - seja um ser humano sofredor e pobre. Se está ali é para o serviço de dar prazer ... não querem saber da dor escondida do palhaco-homem.. porque a dor é porca é humilhante. 

E eu vou tentar deixar de ser tão Naif, assim só tenho a perder... vou carregar no sorriso como o palhaço carrega no batom, vou pintar as unhas com a alegria da ligeira futilidade divertida, vou passear à beira mar de mãos  dadas, na ilusão de um filme de Hollywood, vou conversar de alegrias e de sonhos irrealizáveis, vou idealizar viagens, vou vestir e despir a melhor lingerie, ficar nua e fazer a melhor pirueta de circo, dar ao sexo o lugar do pódio, meter a língua bem fundo na alma impedernida, levar ao céu a avioneta estacionada no hangar, passear no balão mais colorido que houver ... para voar... para voar... bem alto..  e descer à terra, para descansar na paz de um aconchego pleno de sentimento puro... natural e limpo, como devem ser os sentimentos bons.

Num aconchego sem futuro, vivido num presente radioso, de intimidade total. 

Se a guerra não voltar, ficarei bem assim, em paz... 

Mas se o regresso apoteótico das forças poderosas da ambição voltarem, eu pobre naïf , sucumbirei, porque não sei defender -me.

A minha única arma sou Eu - nua e crua, ao natural, apenas vestida de flores e de afectos, prontos a ser desfolhados.