quinta-feira, 22 de julho de 2021

Radar

 


Chamava-se Esperança. Se fosse um navio, estaria por certo na torre de comando no lugar do radar! 

Perscrutaria a noite escura, interrogando o desconhecido, vendo para além dele. 

Não teria medo do longínquo horizonte, perdido na escuridão, nem de navegar sem referências à vista no azul imenso, monótono e igual. Porque referências e certezas ela tinha-as, fora da vista de todos, mas presentes na sua bola de cristal que piscava luzinhas verdes e faíscas luminosas, num escuro menos escuro para quem acredita no destino e na tecnologia.

Ela não era o homem do leme… era mais do que isso era a mulher-radar, prodigioso instrumento de adivinhação do desconhecido.

Tinha o poder de descobrir o que mais ninguém via, sabia muito bem qual o seu rumo, que destino alcançar … lá longe, mesmo que a viagem fosse longa e difícil.

A mulher radar tinha uma espiritualidade sólida para enfrentar desafios com segurança. Se atravessara o Atlântico, se atracara na praia errada, qual bolandas de frágil canoa e mesmo assim conseguira sobreviver... então agora na proa do navio e vestida de radar seria ferozmente potente,

Porque conhecimento é poder e ela via o que os outros nem sabiam que existia. Podia antecipar perigos ou aproveitar oportunidades, consoante ditassem as leituras do radar.

A sua irmã menor era a sala das máquinas. Esta teria de se cingir ao laborioso exercício de afinar equipamentos, lubrificar maquinarias, manter o bicho a navegar, zelando pelo bem estar de todos os transportados, garantido que a navegação cumpria o seu rumo e chegaria ao lugar objetivo. Era uma, num todo coletivo, era a dona do espaço fundo das turbinas e motores. Indispensável ao funcionamento corrente e doméstico, era toda ela presente, toda ela real.

A Esperança Radar jogava mais longe, na fantasia alicerçada  num radar seguro. A sua força, aventureirismo e visão-radar lhe diziam para ter confiança no devir - por certo, o inimigo cairia derrotado pela sua doce determinação, pela clarividência radioscópica.

Ela era futuro infinito. A Sala era o presente finito … 

Era futuro porque apostava no que aí vem e não se conhece… procurava o longo prazo, deixando as lides domésticas atafulharem a cabeça da Sala que, um dia cansada, deixaria a turbina desenrascar-se por falta de óleo e partiria exausta, farta, desorientada à deriva nesse mar imenso e escuro onde pontuavam pequenos tubarões largados e vistos pela Radar.

Numa noite em que a lua deslisara para outro hemisfério e em que o breu ocupara o seu lugar,  Radar viu um desses tubarões  maiores no seu lindo óculo de radar faiscante e pensou: este é meu, só eu tenho o vislumbre de o topar! Só eu sei lidar com pesos pesados, comilões, grandões e poderosos como este - vou seduzi-lo! No recato da noite, com a ajuda das manobras do marujo do leme, sem dizer ao que ia, chegou-se mais perto do grande bicho e sem medo perguntou: Como te chamas? 

- Sou o Amor, o rei dos tubarões, encanto das sereias, como todos os peixes que me façam frente e domino os mares. Ao meu lado, verás o infinito, os extremos do universo, subirás aos céus, com um tremor de corpo pensarás estar a ter um vulcânico afundar na terra. 

E Radar largou tudo e atirou-se ao Atlântico, largou tudo porque para si o Amor tubarão era o mais alto patamar da existência, a ambição máxima, sonhada, idealizada e sublimada como o fim último da vida que sempre desejou... e que com esperança alcançaria, não fosse ela Esperança de nome.

Resolveu, num minuto, deixar de espreitar o desconhecido, deixou o navio seguir o seu rumo e foi atrás do troar do Amor. Ao contrário do que reza a história, não foram as sereias que atraíram o macho mas foi o Amor que atraiu a suposta sereia... e ela seguiu-o, na sofreguidão com que vivia, na busca incessante do Olimpo romântico do amor total. Mergulhou no seu vestido de noiva - não branco mas colorido com todas as cores do arco íris - mergulhou confiante num acordar maravilhoso à hora da aurora, numa madrugada radiosa ...

Mergulhou e perguntou mais uma vez ao tubarão: Quem és tu? Ele abriu muito a boca de dentes carnívoros e beijou-a, triturantemente regalado pelo sabor a fantasia... que se desfazia na sua boca, qual algodão doce... enquanto murmurava fundo e rouco: O amor não existe, é construção, idealização de mentes doentes e carentes... mas existe a vida que faz mexer as máquinas, levar as pessoas, laboriosamente pelo mar fora até a um destino terreno, viável, possível.

Na borda da amurada, Sala sorria ao horizonte que se vislumbrava rosado, ao nascer do sol. Sorria, pensando que a paga do trabalho duro nos fundos do navio seria ver terra, não tardava muito, ver a gente da sua terra, pousar no chão real do seu mundo real, cheio de coisas boas e más, mas solidamente de pés no chão dos afectos reais, sem beijos isotéricos e sem dentes de tubarão...

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