quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Mar e terra



Sete vezes o mar vem e volta.
Em cada onda uma promessa , a esperança que galgue o
Infortúnio.
A esperança que galgue o areal assoreado da ribeira e com ele o peixe nosso de cada dia.
Que seja desta! Que seja desta que a onda desfaz a resistência da terra empedernida e fria. 
Que seja agora ao fim de mais sete voltas da terra ao sol. Que o mar atrevido e enfeitiçado pela lua cheia, nova e diferente porque plena de alegria, rebentando da paixão efusiva de quem está mais perto da terra e por isso especial . Que a superlua desses dias de pesca e afastamento feliz se amande atrevida pelo artesão acima e entre na ribeira choca, com toda a sua prenda. 
Que traga peixe e amor.
Que a onda fique suave e doce. Que venha calma após o luar faiscante de agosto, que venha meiga, em flor e me abrace… memória de velhos tempos. Tempos em que molhar os pés ou sofrer os salpicos de sal eram os beijos mais desejados… ou que me levavam à lua, lugar donde demorava a retornar à terra.
Agora basta a felicidade mansa de um rebolar entrelaçado na areia, um por de sol de fogo , um abraço ligeiro e deslacado, mas recebido com o calor de sempre…
É essa a felicidade e a sabedoria da velhice. É essa a solidez da amizade. Que nunca a perca, que eu saiba sempre tirar das circunstâncias da vida o que de belo resta para fazer o melhor do tempo que me resta.
Adormeço na mansidão de um toque quente, no sonho de um beijo sério…de fogo, de horizonte eterno. 

domingo, 20 de agosto de 2023

Invertidos

 


Se até os “invertidos” podem ser felizes, às vezes remando contra os ventos e as marés adversas deste mundo, eu também poderei ser feliz… apesar de, este ano, tudo me sair invertido. 

Estou mais ou menos de pernas para o ar ! Assim a modos que com a vida invertida, vestida com a roupa do avesso, as costuras à mostra , os buracos das bainhas a desfazerem-se, sem cuecas e sem ninguém para me as vestir ou despir, a cabeça tonta por virada ao contrário…porque isto de ter de fazer o pino todos os dias, magoa os neurônios.

E estraga o corpo, além da mente! Pior ainda é o mal que faz ao coração, à auto-estima, ao Eu mais Eu que cada um de nós tem o dever de preservar. 

Contudo, sei que a vida é mesmo assim - umas vezes corre direita , outra fica torta e vemos tudo invertido. 

Os amores viram desamores, as promessas de viagens são desfeitas, nos bailes não se dança, nos bares não se bebe, no fogo de artifício não há outra mão ou outros olhos que nos acompanhe o folgar e a magia da noite estrelada de cores. E quanto aos compromissos - que pareciam firme e solidariamente acordados -  afinal não o eram (eu é que percebi mal, coisa que acontece aos invertidos, não é de estranhar!). Aqueles que estão a direito, afinal estão ao contrário. Parece-me, a mim, sei lá! Eu é que vejo mal e como estou invertida, julgo que são os outros que estão tortos. 

Numa sociedade plural, em que todos, todos, todos têm direito à vida e à felicidade, eu Invertida me confesso, pelo direito à diferença. 

Um dia destes, vou sozinha para a porta da Assembleia da Republica, com um cartaz : sou Invertida, trocaram-me as voltas, mas quero ser feliz. Podem-me bater, que eu não choro. Podem tentar convencer-me que estou errada, mas sei que não estou.

Queria dar a volta e ficar direita e ser igual aos outros, mas se não puder ser, andarei assim de mãos no chão e pés no ar, descalça e nua, de corpo rasante pelo chão, de cabeça baixa, de alma baixíssima… até morrer , feliz pela coragem da diferença.

Feliz pela coragem de saber apanhar a pancada que os invertidos merecem. Afinal eu nem sou lésbica, nem LGBT. Sou apenas um pequeno ramo do grupo do + . Talvez nem sequer o LHBT+ tenha lugar para mim.

Porque as minhas reivindicações nem são nada de especial - apenas gostava que as legítimas expetativas de umas férias no campo, na estrada, no País real em boa companhia, se concretizassem.

Mas foram invertidas as minhas férias. O campo virou praia e as viagens não são para mim, terão melhor destino do que o meu.

Os acordos que eram firmes - bem mais do que simples promessas - foram uma fraude! Até eram programas bons e bem desenhados, pensava eu que com gosto e desvelo. 

Pensava! Mas falhei , falhei em toda a linha … porque afinal há quem pense melhor do que eu e tenha talentos imensos para tudo - desde abrir as pernas a fazer compotas, desde criar viagens de sonho, a saber nadar bem ou conduzir automóveis , Quem saiba inteligentemente oferecer bombons de chocolate em feitio de coração e serem bem aceites, ao contrário das minhas bolachas em coração, que eu estupidamente dei e foram rejeitadas no dia dos namorados.

A solução para inverter esta desconfortável posição de Invertida: A Bondade e a Aceitação da realidade (mesmo quando esta está virada ao contrário dos meus desejos) são a solução.

Porque escassos são os dias que me restam para viver e cada dia deve ser de alegria, não se pode desperdiçar. 

E só a minha felicidade me importa. Caguei para todos ( excepto um - o meu carrasco / síndrome de Estocolmo).

Da família não gosto, eles também não se importam com a minha felicidade e podem bem sobreviver sem o meu amor. Que se desembrulhem. Ajudo solidariamente do ponto de vista material, porque a isso me OBRIGA a lei do País , a moral e os bons costumes vigentes. Faço porque sim, mas não me podem obrigar a gostar! 


terça-feira, 15 de agosto de 2023

Mar


Gracias à lá vida … por este lindo dia de luz, correndo à beira mar de um Algarve de Inverno.

Correndo parada ao encontro de um entardecer de espera, gozando do prazer da espera, saboreando antecipadamente a vontade de te voltar a ver. Esperar era algo de que eu nem gostava, nem sabia fazer, na minha habitual pressa, na minha desmesurada ambição ou talvez na excessiva paixão, que coloco em tudo o que faço. É um novo mundo de espiritualidade e de realidade, que agora se abre. 

Talvez seja a sabedoria da velhice...

Sei que daqui para a frente só me restará a fantasia do prazer da espera, a imaginação do teu sorriso ao longe, à medida que te julgo a caminhar pela marginal ou junto ao mar e que nos iremos aproximando.

É bom manter a esperança que te verei sorrir ... com o coração, tens um sorriso luminoso quando estás em paz e te sentes livre. Nem sempre é com as mãos, com a pele ou com o corpo que se vê melhor.

E tu és lindo quando vens ter comigo em transparência. Tu és bom e querido nos dias em que chegas solto, em liberdade, sem a carga da amargura que tão bem disfarças de frieza ou de desinteresse. Gosto quando sorris com verdade e amizade, sem demasiado peso, sem segredos, mentiras ou omissões  (carga de julgo saber que também não  gostas).

Obrigada querido e novo amigo, és outro, por me fazeres sentir tão bem,  livre e feliz, assim. Bem entendido que o meu correr é a passo, talvez mesmo vá muito devagarinho, para melhor  sentir os grãos da areia e os salpicos do mar, correndo dentro de mim, com sensação de que estou a voar…

Estou à beira-mar de um dia maravilhoso em que se misturam o encoberto e o sol que desponta e aquece pouquinho. Com um rasgo de imaginação, pensamos na Primavera, e depois virá o calor do Verão, que aquecerá  as almas ( e os corpos de alguns sortudos). Talvez para mim não haja mais Verão. 

A mim, tudo se me aquece (virtualmente falando…) só por pensar que há um bem precioso que me faz correr…mesmo sentada preguiçosamente na cadeira de um hotel.

Praia da Rocha, Março de 2023

… depois de tempos difíceis… estava a tentar ressuscitar…

Ferias

 


Férias é ter a liberdade e o privilégio de ser feliz à nossa maneira. 

Podem ser simples, calmas, à porta de casa, rotineiras. Beber um café na esplanada, descer um degrau e molhar um pé no mar. Ler um livro. Sentir o coração cheio de sol. 

Isso é férias.

Pode ser necessário ter de prescindir de viagens exóticas … mas alegrar-me-ei ficar, se a companhia for gostada, contentar-me-ei se houver alegria e paz de espírito, os sonos calmos, as noites quentes, o amor no ar .

Foi um ano difícil.., perdi muito. Perdi amigos e viagens programadas mais coloridas e apetitosas. Aconteceram imprevistos. Houve quem tivesse mais sorte que eu e os meus destinos escolhidos de eleição - que até eram simples e normais  - acabaram por ir por água abaixo. Fiquei para trás, mas tenho esperança de recuperar um dia destes o que esperava. E hei-de ultrapassar o facto de ter sido substituída no meu trajeto por outro passageiro.

Relevo a desfeita, construo outro programa, arranjo um mala de ternura que me levará ao melhor destino. Aquele que não tendo paisagens espampanantes, tem uma alma limpa, uma companhia amiga e um lugar de sol e afetos.

As melhores férias do mundo são as pessoas e não os lugares. 

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Velhice jovem

 


O pior da velhice, é que não se envelhece” Oscar Wilde

Terrível e verdadeira constatação. 

A velhice é um rio, um caminho que corre ao nosso lado, mas não nos diz respeito. Por vezes, a velhice por andar por aí à solta e ter a mania de nos perseguir, prega-nos partidas - uma doença, umas fragilidades físicas, uma perda de memória, uma perda de um amigo, pequenos ou grandes desgostos, espelhos embaciados que nos transmitem uma imagem que - de todo - não é a nossa. Não pode ser ! Aquela ali no espelho não sou eu. 

A entupida da velhice está a mentir. 

Anda a rondar por aí, a tentar convencer-me que sou velha, que os meus amigos são velhos, que os meus filhos são adultos, que tudo muda e se degrada… 

O problema da velhice é que ela é muito convencida e vaidosa, mas poucos acreditam nelas. 

Vemo-la passar mas não é nada connosco.

Ora, nós não envelhecemos. Eu pelo menos não. Sou a mesma teen ager cheia de sonhos e de pensamentos parvos, com a vantagem de ser ainda mais despreocupada do que as miúdas de calções e boa perna, que se passeiam com um ar fresco de quem manda nisto tudo.

Pois eu não mudei muito, interiormente sou a mesma . Não creio que haja velhos da minha idade à minha volta. Somos jovens amalucados e excitados, que procuram o amor e a alegria com a efusividade de sempre. O direito ao disparate é o mesmo. Com a vantagem de que o direito ao risco ser maior. Já não temos medo!

Já provámos tudo. Quem acreditou em nós, sabe a criança que temos cá dentro e como ela comanda a vida.

O futuro não é temido porque já não existe. Um espaço de tempo pequenito nos separa da alegria de estarmos vivos, da resignação de vir a estar mortos em pouco tempo.

Logo tudo nos é permitido. A vida é presente, não é futuro. Nós não envelhecemos, continuamos com a mesma vontade de correr atrás de um gajo giro, de dar uma cambalhota valente (mesmo se ele estiver clinicamente impotente!), de ter um carro topo de gama,  de fazer mil viagens, de experimentar uma aventura radical… as pernas é que podem não ajudar. Vai-se é mais devagar… paciência.

Com a sensação de que nos sentirmos novos, porque nós não envelhecemos: pensamos o mesmo, com maior clarividência ainda, perdemos o medo, porque temos calo suficiente para acreditar naquilo que valemos. A auto confiança aumenta com a velhice e permite arriscar.

Não temos muito a esperar. A morte é certa. O risto é mínimo, apenas uma antecipação da data da morte.

A velhice que ande por aí à solta, descansada e lenta. Mas não é comigo. Eu sou uma menina de calções, a correr num campo de liberdade, de calções e perna ao léu. Sempre na esperança que, quando a velhice se distrair, aparece alguém jovem que me tire os calções e o mais que for, para provar que não envelhecemos.

Porra para a velhice. É um problema dela … porque nós não envelhecemos. 

Alegres e sem medo ! 

Os mais sortudos, tocados pelo Amor. 

O remédio para ir passeando ao lado da Velhice sem estabelecer relações íntimas com essa megera é: distância com essa bruxa agourenta, bondade para com todos, ter amor próprio e espalhar o afecto, o bem e o amor por quem nos é querido e está carente de nós.

Fugir de quem nos faz mal! Relações toxicas ou de extrema dependência  … não! 

Os velhos que se cuidem, a velhice que vá à sua vida - só pode regressar à minha terra, quando eu estiver para partir. O mundo é grande! 

Haverá, certamente, alguém como eu, que não envelhece e que me dará a mão, para partirmos a correr pelos campos fora. 

segunda-feira, 31 de julho de 2023

Poesia



Poesia é acordar um dia 

e descobrir que, do passado, só trouxe alegria! 

Adormecidos, na noite, ficaram os desencantos.

Poesia é descobrir que, por magia, 

o sol desabrochou e uma nova flor brotou, no jardim da saudade, o lugar da memória dos encantos. 

Mas é ao entardecer, que se entende melhor que essa flor poderá voltar a sorrir e a crescer. 

A flor da amizade é livre e selvagem,

com afecto e coragem, 

renascerá  tantas vezes, quantos os dias que a vida nos der.

domingo, 9 de julho de 2023

Viver o Presente

 



Tudo o que temos, tudo o que verdadeiramente importa é viver o momento presente, o dia, o minuto, o sentimento bom de que o amor existe, para alguns é possível (ou já foi)… mesmo que para nós possa inacessível, ontem ou no futuro. Mas aí, há que pensar que existe o presente, o momento real que se está a viver e há que aproveitar todas as suas possibilidades, comer, saborear como se não houvesse amanhã. Por vezes, comer alarvemente o

Presente pode passar apenas pela alegria fugaz de um simples toque,  de um centímetro de pele que se encostou à nossa, em voo rasante, em partida urgente… mas como me que agrada esse momento real.

O presente é tudo o que existe, que temos para ancorar a felicidade … ou antes os momentos felizes de que se compõe.

Hoje, houve tanto, a alma cheia de momentos realmente presentes que foram um presente para a alma. 

Paisagens, viagens, locais de memória, paz de convívio certo e amigo… sorrisos… 


É um sono calmo… que deslisa entre nós como o cisne no lago deslisa indiferente ao turbilhão de acontecimentos interiores e invisíveis que fazem deste estranho elo um nó muito forte. Um braço estendido que toca e não toca , mas se sente no calor da distância. 




terça-feira, 25 de abril de 2023

Cravos

 

Cravos derrubados pelo vento dos tempos.

Cravos que outrora foram erguidos em nome da liberdade.

Que foram amados, saboreados em paz… num início idílico, que não volta mais.

Tal com os teus beijos que acabaram caídos no meu chão… desperdício para quem ama demais.

Fica a cor vermelha da tua face e o tom rosado dos lábios queridos, para lembrar o tempo dos cravos erguidos.

Fica a liberdade maior, a esperança da amizade que perdura e a certeza de uma imensa ternura.

Amigos e 25 de abril, sempre!

domingo, 9 de abril de 2023

A Gaiola

 


Lembro-me que havia sobre o parapeito da varanda, da casa branca debruado a azul cobalto, junto ao mar, uma gaiola de ferro forjado, já a pedir pintura nova.

A porta da gaiola estava aberta. Lá fora despontava mais um dia de Primavera suave e solarengo, daqueles dias em que apetece voar. Em que a felicidade sonha ser uma nuvem branca, que flutua sobre o mar até se afastar no horizonte . Em que a tristeza também sonha, mas acorda e empalidece quando percebe que lhe é difícil acompanhar o ritmo da nuvem da felicidade. 

Há uma brisa contrária que lhe dificulta o caminho. Não obstante, tenta manter o ritmo e fazer companhia à felicidade - porque alegrias e tristezas vivem juntas há muito e fazem falta ao equilíbrio do universo, basta aceitá-las como normais e embrulhá-las em afecto. 

Não foi por falta de empenho ou por incompetência que a tristeza ficou para trás: ela sabe voar, nadar e amar com a mesma força e vontade de que dispõe a alegre nuvemzinha voadora. E quer muito que o vento mude e voltar a ser feliz, esforçando-se por correr no lado amigo da nuvem  branca. Levar-lhe luz e paz. Sorrisos, muitos sorrisos … muito afecto e bondade que evitem a negrura das chuvas possíveis… 

Sim, porque haverá sempre dias de Inverno. O que importa é proteger, com humanidade, todos seres e aconchegar as tristezas. 
A Primavera é assim mesmo - imprevisível, com sol e aguaceiros, calor e resfriados, desastres e alegrias …


Voltei a pensar na gaiola e lembrei-me da história da Bela, para quem o amor era uma gaiola de porta sempre aberta, recordei o seu lema de que devemos ser pássaros livres: se a porta está aberta, quem gosta fica. E quem não está bem, parte, vai embora, voa com a liberdade transparente e o desígnio inalienável de definir o seu destino. 

O tempo  aquecia, o Verão viria em breve e com ele a esperança de que na gaiola os inquilinos-pássaros saltassem do seu ninho de palha e voassem. Voassem para onde lhes desse na gana, em círculo ou a direito, sobre a terra ou à borda do mar, e pousassem para descansar nas migalhas das esplanadas ou nos telhados do casario. São pássaros e livres. 

Nessa altura, ensonada, eu estava um pouco longe da gaiola, acabava de acordar, a neblina matinal ainda me turvava o olhar e o pensamento esse enrolava-se nas caraminholas do costume, o que acarreta um juízo pouco racional, algo nebuloso sobre a realidade dita normal. Quando olho mais de perto para a gaiola, meio sonâmbula, vejo  dois montinhos de palha - um ligeiramente  corado em tons rosa, talvez folhas de alguma planta de textura rosada tenham sido colhidas amorosamente pelo bico da pássara para seu ninho. Estranhamente, ao lado e separado por alguns centímetros de distância havia outro monte de palhinhas, estas levemente coloridas de azul, folhas de cor pouco comum na natureza. Mas enfim, há tanta estranheza por ai… intrigou-me, aguçou-me a curiosidade saber que o casalito de pardais não se aninhava juntinho numa qualquer palhunça amarelada ou castanha. 
E pensei : estás a ser muito bota de elástico. Pois se ele há homens de saias e mulheres de cabelo verde, por aí… e já ninguém liga! Porque não podem os pássaros ter camitas separadas e coloridas?!
Qual a função? De que lado poêm os ovos a chocar ? Enfim, isso deve ser indiferente…
Mas o que me intrigou mesmo foi a cor azul da palha … o rosa encontra-se por aí… mas aquele azul-cueca donde viria? Quase-quase o tom do Viagra, numa mistura de azul ultramarino com branco. No pressuposto de que o pardal não roubara as palhas a um pintor de ar livre, distraído das suas pinceladas entornadas… de onde viria o azul? 

O sol já estava a despontar e eis senão quando a pardal fêmea se abeirou da porta aberta da gaiola e foi à sua vida, voando alegremente sem par. 

No ninho azul, jazia adormecido, amolecido e sem mexer as asas ou procurar a Primavera, estava o pardal macho… quiçá morto? Não sei ! Talvez esperasse por tempos de mais calor, talvez preguiçoso aguardasse por melhores dias, por uma nova e quente Primavera, que o levasse a voar acompanhado, deixando voar livre a companheira que apesar de dormir bem no edredão de palha cor de rosa, ainda gostava  mais de voar sobre os ninhos coloridos, que uma gaiola aberta lhe ofereciam sem tristeza. 


Ela saiu, deixou a angústia na palha, voou mais leve, não esquece a gaiola porque voltará enquanto a porta estiver aberta, porque espera que um dia as palhas fiquem descoradas com o tempo, e voltem a ter o tom neutro da normalidade, lugar pacífico e aconchegante do amarelo da natureza. Sem grandes voos, sem grandes esperanças, mas convicta de que a porta se manterá aberta, porque a saída para a morte será mais fácil assim. 

Até lá a liberdade e a felicidade serão possíveis, para a pardalita rosa, se o respeito e o amor-próprio prevalecerem sobre a guerra e a miséria moral. 
Se houver bondade, compreensão e amizade… se o pardal não azular demasiado e se confundir com o céu. 


Enquanto a gaiola velha estiver aberta, a liberdade e a alegria de voar estará no horizonte de todos os pardais de bom coração. 

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Multiverso

Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo

(O filme e eu na teoria do multiverso )


Vivo num multiverso qualquer, onde forças contraditórias me atraem ou repudiam, onde amigos e inimigos me fazem viver, em simultâneo, realidades diferentes, assustadoras ou agradáveis, num caos total, num turbilhão que parece impossível de suportar. 
Contudo, esses universos aparentemente conflituantes e distintos coexistem e organizam-se num esquema complexo, que tanto me podem servir para resolver questões importantes ou salientar talentos adormecidos, como podem gerar sofrimento.

É esse lugar confuso - o multiverso - que melhor se coaduna com o meu caráter. Quero tudo e ainda mais, faço várias coisas ao mesmo tempo, tento experimentar talentos, derrotar inimigos, atrair amigos. 
Sei que o meu pior inimigo sou eu mesma e esta necessidade constante de fazer, de ir, de querer amar … faz e não faz sentido.
Sei que só eu serei capaz de fazer o esforço necessário para por os pés (flutuar!) no Universo conhecido . Um só universo, onde possa viver em paz. É aí que vivem as pessoas normais, é aí que tentam ser felizes, fazendo e vivendo uma realidade una e coesa, boa ou má, mas a delas.
Eu vivo no vento, empurrada por esse universos distintos mas interligados… em reboliço, em busca de nada, em busca de mim… de uma vida simples. A bondade chega-me.
De resto tenho quase tudo…

Preciso de gostar mais de mim, porque sem esse “conteúdo” próprio, interior e meu não tenho nada para dar aos outros.
Só a bondade me salva . E para ter bondade suficiente para dar aos outros tenho de sair da vida multifacetada em que me enrolei. Descer ao planeta onde nasci e aceitar-me como sou e com o que tenho.

Em frente ao mar, azul, infinito, na suavidade de uma primavera doce e solitária, penso que sou uma privilegiada - tenho saúde, dinheiro q.b. , casa e família.

Tanto que eu andei para aqui chegar. Tanto que trabalhei para conseguir a materialidade da vida que consegui, sempre virada para fora de mim - para criar e apoiar a família, para alegrar os meus amores. No entanto, tão vazia que estou.
Não amealhei no meu coração o amor-próprio suficiente para hoje estar rica e feliz. Andei no multiverso, ou fui arrastada para essa transcendência incompreensível, que do existe na ficção científica e donde terei de sair.
O universo normal deu-me muitas coisas boas; filhos, neto e amores verdadeiros… deu-me conforto, educação e algum conhecimento.
Mas não consegui fazer uma caminhada linear e tive de levantar voo para outros universos (sem querer e saber como) , universos reais e imaginários.
Nalguns, fui bem aceite e progredi. Noutros fui repudiada, caí e tive de me levantar de novo.

O mar acalma-me, porque parece sempre igual, apesar de cada onda ser diferente da anterior e as tonalidades serem tantas tantas quanto o brilho do sol ou a sombra das nuvens.
Tento ser como o mar, ir e vir sem questionar que a terra está ali à minha espera. Ou talvez não! A costa varia e o meu mar pode vir a bater numa rocha. Ainda corro o risco de me tornar em pedra. Mas se até as pedras imóveis têm olhinhos e se deslocam!


E como não sei chorar , penso que mesmo o melhor é treinar para pedra, não amolecer nem por dentro nem por fora. Ficar dura e insensível! Calhau que, à beira do precipício, fica firme ou talvez role…
Um dia certamente que rolará. 
E quando chegar, esse momento do fim, não haverá outra pedra com olhinhos para deslisar comigo pela falésia até ao mar.
Estou só… provavelmente, para sempre.
Esta viuvez súbita, com o falecido vivo ao meu lado… é coisa que vem de um outro lado: do universo intergaláctico: da bruxaria e da ficção, dos efeitos especiais fílmicos … sei lá. 
Vou mudar, treinar muito para descer ao universo onde os outros vivem, melhor ou pior.
Afinal é o único que a ciência reconhece e onde era suposto eu viver… pois será ai que terei de me estabelecer e encontrar a paz.
É um mundo novo que se abre para mim. Ao fim de quase meio século de vida, a pedra dos olhinhos rolou e fiquei afetivamente solitária… antes disso o tempo não contou: era uma criança.
Depois disso, sempre tive um pilar, que foi variando mas que era o meu sustento.
Ainda não sei viver sem comer, viver sem água e sem afecto.
Terei de me habituar . Talvez procurando um universo de aliens, desprovidos de coração, criatividade ou ambição … onde um ser vazio como eu consiga sobreviver.  Seria tudo comprado com IVA zero, claro!
Porque até aqui eu era uma mulher rica, afortunada com o melhor dos bens - a capacidade de amar e, por vezes, a sorte de ser amada. Paguei impostos altíssimos para ter essa vida de luxos. 
Acabou! 
Mas não quero virar pedinte. Seguirei em frente, carente mas digna… numa espécie de pobreza envergonhada mas sublime nos valores que não abandona. 
A bondade é tudo o que me resta para oferecer, porque já se viu que para dar afecto e amor não sirvo. Por isso, tenho de começar por ter compaixão (compassion) e bondade para comigo mesma.  

Tenho de aceitar a minha pessoa, como alguém imperfeita e sem ambições, alguém que terá de sobreviver num ambiente amoroso adverso, de coração vazio, sem um pilar de afetos e que morrerá só… Aceito que nem toda a imensa bondade disponível será útil ou terá um destino concreto, percebo que a minha capacidade de amar, de fazer alguém feliz, alguém que me queira é muita … mas poderá ficar a vogar na estratosfera, como um ser celeste, um meteoro sem préstimo. 

quarta-feira, 22 de março de 2023

Saudades





A Saudade só vem mostrar que o passado valeu a pena!

E isso é uma coisa boa.

Dá alento para continuar a vida com alegria, é a prova de que somos capazes de colecionar boas memórias.

A ideia não é relembrar o passado para chorar as perdas; pelo contrário, é um sorriso destinado ao futuro promissor de felicidade. 

Saudades trazem o sonho de que é possível voltar a encontrar ou a reencontrar pessoas boas, lembrar amizades (ou criar novas), reviver as viagens que nos encheram de emoção e de conhecimento (e planear outras) … as vias  que, por si só, vão gerar novas recordações e as correspondentes saudades. 

Ter saudades não é seguir pela estrada da vida em marcha atrás, porque as saudades são os faróis que iluminam o caminho em frente… e dão uma vontade imensa de carregar no acelerador e repetir às voltas boas, as paisagens lindas, as companhias, os prazeres das viagens, os amores que deixaram memória, os bebês que criámos ao colo… coisas importantes ou insignificantes, que só a saudade sabe guardar como deve ser.

Saudade é o melhor álbum do coração! 

quarta-feira, 8 de março de 2023

Gratidão




 “A gratidão é a compreensão de que aquilo que se está a viver é o resultado de algo que se atraiu”..

Hoje sinto-me grata pelo que conquistei - todavia, não considero que o que tenho foi adquirido por sorte, por talento ou por mérito próprio. Nada isso!

Simplesmente, acho que devo agradecer ao universo, ao sol, às flores, a quem gosta de mim, por ter tido a oportunidade de sentir o sabor doce da gratidão . Por poder agradecer uma nova liberdade. É uma gratidão sem destinatário concreto. Estou grata a todos e a ninguém. 

Estou grata por me sentir orgulhosa e feliz por mim, por poder viver mais um dia, por ter perdido o medo de sonhar impossíveis e passar a ser livre de pedir o que quero, bem acordada, por ter uma esperança renovada de que os dias novos, que viverei, serão de paz, de cor, de verdade e de mais tempo para saborear uma sã convivência com quem me quer bem e ter o gosto da amizade.

Eu estou grata à vida, a tudo o que tive e sobretudo àquilo que tenho - hoje, aqui e agora - não tanto o que consegui por mérito próprio, mas mais por ter tido a sorte de encontrar pessoas que sentiram amor, real afeto e amizade por mim.

A gratidão não se pode expressar apenas por palavras… gostaria de dar mais em troca. Mas não sei fazer melhor. Todo o amor e bem que o meu coração alberga será para dar a quem me quiser entender e receber. 

Pena a comunicação ser tão difícil, para quem como eu só sabe falar e escrever . Pena a minha gratidão não ser milagrosamente transformada em música ou em imagem - talentos que não domino ou em afectos e apoios psicológicos ou médicos … ainda mais complicado. Mas fica a intenção de agradecer. Em yoga, chama-se a adoração ao sol …

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

A mulher, a amante, a amiga e a concubina



Em tudo existe uma hierarquia. 
A ordem das coisas, das sociedades, dos exércitos e das agremiações diversas carecem de postos, de títulos, de dependências e de uma fileira de ordem (crescente ou decrescente), precisa de disciplina e de organização, porque só isso garante o pleno exercício do poder.
O homem tem dificuldade em aceitar a igualdade e a liberdade, a sua ao mesmo nível da dos outros. 
Quer se trate da igualdade perante as mulheres, quer mesmo perante outros homens seus semelhantes mas mais fracos.
A solidariedade “inter-pares” até funciona, mas com as suas regras e desde que se respeita a superioridade da “tertúlia”, do grupo ou do gênero, perante outro grupo mais fraco, mais passível de ser pisado.  
Um homem precisa muito de ver uma ordem estabelecida , que lhe garanta o poder e, também, que este esteja arrumadinho no pelouro certo e inquestionável, naquele que seja seguro e propício à manifestação da sua vontade, de modo a que não haja opiniões conflituosas ou entraves aos seus interesses. 
O homem gosta de se relacionar com quem não ofereça luta , sobretudo se for alguém do sexo oposto… gosta de um lugar certo e seguro, onde se consiga posicionar com paz e sossego.
A menos que seja um tipo “belicoso”.
Mas o normal é preferir um clima de paz, onde a sua opinião prevaleça, onde possa mandar sem esforço, onde possa fazer-se obedecer … e quem estiver mal que se mude!


Nas relações com as mulheres é igual. Gosta de variar (quem não gosta?) mas espera que a mudança se faça dentro de uma hierarquia própria, que lhe seja propícia e conhecida… 
Quer tudo, enfim!
Quer que as mulheres se posicionem a seu belo prazer e assumam o papel conveniente … conforme a época e o contexto.
Claro que a vida dos sultões era mais fácil. Agora com esta “mania” da igualdade de gênero , os homens veem as coisas um pouco mais complicadas.
Mas a hierarquia desejável mantém-se a mesma:

1 - a mulher (a chata por definição…);
2 -  a amante (maravilhosa, mas de que se cansa depressa..)
3 -  a amiga (confidente talvez, mas sem cama); assim uma espécie de fêmea assexuada …
4 - a concubina , aquela que se sujeita a tudo, porque não tem onde cair morta, e pode ser espezinhada e humilhada a seu belo prazer. 

Mesmo que o sultão já seja velho e “fora de prazo”, uma concubina é o prato ideal para o exercício do poder; meiga, submissa, pronta para tudo, provavelmente capaz de lhe afagar o “ego” da cintura para baixo, sem grandes exigências próprias, provavelmente capaz de lhe adoçar o estômago com petiscos e doces…

Pouco exigente… algumas nem sabem o que é o Viagra, coitadas… nem se preocupam com o prazer fisico, seu ou alheio. 

Contudo, nós não vivemos num sultanato, nem as sociedades modernas admitem esta hierarquia funcional. No entanto, lá no fundo, a cabeça de muitos homens ainda pensa assim… e classifica as suas “pseudo-companheiras-exploradas” de forma parecida. Com um embrulho mais moderno e menos chocante.
Contudo, é tão fácil (e humilhante) passar de amante para amiga, como é virar uma concubina em escrava.


Tristezas



Quando a tristeza se instala e nada nem ninguém me ajuda a varrê-la para fora do meu chão, o que fazer?

E quando não tenho sequer chão para pisar, quanto mais para varrer? 

O que fazer? O que fazer da solidão dos afectos, da incompreensão de quem poderia me querer bem, de quem me poderia ajudar e nem compreende o meu sofrimento? 

Perdida e só, na escuridão de uma noite acompanhada, que sentido faz viver assim.

Será uma depressão? Será simplesmente a tristeza, pura e dura, de um abandono anunciado? Será culpa minha, por ter uma sensibilidade à flor da pele… que não aguenta o desprezo e a frieza. Que não aceita o desamor…

Eu bem tento ser forte.

Eu tudo faço para me desdobrar em carinhos e alegrias, eu quero muito ser feliz, mas tenho uma enorme falta de jeito. 

Ou então não encontro a pessoa certa para me ajudar a nadar neste mar revolto e turbulento, em que me sinto naufragar.

Eu quero viver, quero mesmo… mas não sei como …

Eu tenho tanto para dar e ninguém para me receber .

Eu gosto de fazer os outros felizes, de amar, de dar beijos, abraços e sorrisos e depois… constato que de mim só pedem sopas… ou pior, só esperam silêncios bem comportados…

Silêncio e mais silêncio… renúncia de afecto, zero de amor… só presença decorativa e calada. Como se eu fosse uma coisa útil para mostrar, mas não gente. 

Eu sou uma pessoa, sinto que sou boa e que tenho muito para dar …

Mas nos dias em que não me lembram, nos dias em que se esquecem de mim e me desprezam, só porque não tenho nenhuma utilidade concreta e real, fico vazia, oca, amarga, lixo…

E então só sobra a raiva, a amargura … e quem está de fora, não vê a minha revolta. Não vê que a amargura é apenas um “sinal”, um sinal feio de falta de amor, uma reação inversa daquilo que eu gostaria de transmitir de bom .

Como se o amor e o ódio fossem a face da mesma moeda . E é a sorte ou o acaso que dita qual das faces fica ao de cima, quando se deita a moeda ao ar.

Não consigo transmitir afecto quando o coração dói tanto que se sobrepõe a tudo o mais, quando a magia acumulada vira amargura.

Tenho de aprender a fazer um reset. Apagar as mágoas e colocar no coração apenas sorrisos, apenas aquilo de que os outros gostam… para que gostem de mim.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Silêncio

 

Que a minha solidão me sirva de companhia.
que eu tenha a coragem de me enfrentar.
que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo.

Clarice Lispector 

Um dia, quando eu for grande, um dia quando eu for velha e sábia, talvez compreenda muita coisa que hoje não alcanço.
Um dia hei-de perceber que o silêncio é um lugar bom para se viver, que o silêncio pode trazer paz, pode dar tempo de reflexão , permitirá talvez dar lugar à criação poética, à felicidade interior… ao equilíbrio que mata a fome de viver. 
O barulho interior e exterior, o caos dos sentimentos desordenados, o atropelo das palavras inúteis e pouco pensadas só servem para encher a vida de vazios e de frivolidades. 
A falta de silêncio adequado, tolhe-nos e bloqueia a razão necessária para parar, para pensar e para recolocar as coisas importantes, as dores da alma, no seu devido lugar. 

O silêncio - quando se consegue interiorizar a sua necessidade e utilidade - é uma das maiores descobertas das mentes inteligentes e felizes. 
O silêncio como exercício forçado, prosseguido com algum esforço no meio de um grupo de amigos, numa família ou numa comunidade mais ampla, é bem difícil de ser mantido. Mesmo assim, podemos optar por falar pouco, valorizar o silêncio como forma de comunicação não verbal, acompanhar este tipo de silêncio - momentos sem palavras - de outras manifestações de afecto, de sorrisos ou de toques, da oferta generosa de disponibilidade psicológica, etc. 
Ouvir, por exemplo, é uma das melhores formas de valorizar o nosso silêncio em favor das palavras dos outros. Quantas pessoas precisam mais de ser ouvidas em silêncio, do que de dialogar com o interlocutor? Ouvir, respeitar com o coração, sem emitir opiniões, sem perguntar.
Se esta forma de estar na vida fosse mais comum - dignificar e entender o silêncio como um modo potencial de amor e de amizade - talvez não fosse necessário tanta discussão cruel e inútil.
Aprender a calar ! Engolir sapos vivos, quando a dor for muita, pode ser a cura, pode trazer um apaziguamento saudável dos nossos males.
O silêncio enquanto remédio ! A par da aceitação…

A solidão instala-se mais facilmente onde há silêncio, silêncio daquele mais cru, que resulta de não haver gente nenhuma, nem calada nem a falar. 
Clarice prefere essa solidão redentora. Prefere ficar com nada numa atitude de ascese, em que se pode não ter nada e se sentir com tendo tudo.
É demasiado difícil, para mim, é de uma transcendência espiritual a que não aspiro, nem lá chegaria.
A solidão pontual pode ser uma doce e calma tarde de Verão. Já a solidão definitiva é uma noite de trovão. Certamente, seria triste encontrar-me numa solidão destas - perfeita, mas onde teria dificuldade em encontrar-me.
Eu sou solar ! Gosto de gente.
As pessoas mesmo em silêncio são um lugar de paz, de desafio. de inspiração. Sou capaz do silêncio (com algum esforço) e até acho que devia praticar mais.
Decisão desta noite - de choro e de medo, de raiva e de desilusão : manter-me calmamente em silêncio…  

Deixar correr a espuma dos dias, sorrindo sempre como se a vida fossem rosas, deixar que os espaços em branco se encham de silêncio bom. Sem dramas, nem revolta. 

No entanto, ficarei sempre à espera que um ponto lindo de luz brilhe no meio do meu deserto de silêncio e me chame para falar, um dia.
Aí, só direi coisas lindas, palavras de amor regadas com esmero e com
muito cuidado, para não ferir ninguém, nem quebrar o encanto do meu silêncio, palavras guardadas para uma altura especial, embelezadas para serem transmitidas  quando fizerem falta.
Em silêncio … abrindo a boca ao mesmo tempo em que se abre a alma, só com palavras boas.
Porque se eu quebrar o silêncio com raiva e reclamações, tudo se vai perder.
E corre-se o risco da solidão mais dura se instalar no lugar do silêncio. 

domingo, 29 de janeiro de 2023

O Equilíbrio

Que eu encontre o equilíbrio !

Quando as perdas e as nuvens se confundirem no meu céu.

Quando o imprevisível e as ondas do mar se misturarem que nem tintas de aguarela. 

Quando a visão me ficar turva de enredos, dúvidas e confusões. 

Quando o que tenho para dar, surgir como dádiva inútil à felicidade alheia. 

Quando nada parece fazer sentido, mesmo com uma vida de aparente boa arrumação, em que o essencial está no lugar certo ou socialmente aceitável.

Quando as minhas caraminholas se recusarem a reagir ao aconchego do Lexotan. 

Quando a resignação saudável não conseguir suplantar a desilusão mesquinha.

Quando quiser ter mais do que tenho e esse mais for totalmente incorpóreo e invisível, vivente no domínio dos sonhos inatingíveis. 

Quanto tudo isto estiver assim: preliquitante e instável, espero conseguir, apesar de tudo, manter o meu equilíbrio . Com esforço … talvez, mas com a clarividência da sua absoluta necessidade.

Espero não desfalecer à beira da falésia e cair, em desequilíbrio, nem adormecer nas sombras da indiferença. 

Porque se tal acontecer, é sinal do fim, é sintoma de já não me saber levantar, nem luta pelo equilíbrio necessário.

O equilíbrio, aquele ponto neutro - nem bom, nem mau - mas suficiente para criar um caminho novo e sólido, saudável e feliz.

O equilíbrio como base, indispensável para se estar de pé. Para não passar para o lado dos aloucados, distraídos da normalidade. 

O equilíbrio - um sitio que não nos dá nem tira nada. mas permite manter a estabilidade. 

E a esperança de que - no vórtice de todos abalos e maus ventos - possa balançar para o lado certo .




quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

As Viagens


As  viagens são um caminho - entre muitos outros possíveis - para atingir um espaço de vida nova, para ir ao encontro de algum crescimento interior ou para vivenciar um novo sentido de liberdade. Quiçá, para ver e ouvir o som verdadeiro da liberdade, no caso de quem nunca a conheceu ou de quem dela tem uma visão destorcida.

A viagem essa miragem - meio para nos tornarmos melhores, mais conhecedores, mais tolerantes, mais aberto ao mundo, mais sábios, mais preparados para entender e aceitar as diferenças entre os povos e as culturas, a par da diferenças óbvias entre as paisagens e os climas.

Enfim, as viagens são uma coisa boa! Podem melhorar o mundo - o nosso pequeno mundo e o conhecimento que vamos adquirindo sobre o grande mundo dos outros, dos nossos semelhantes, por vezes tão distintos e, por isso mesmo, desconhecidos e potencialmente adversos.

Viajar faz-nos ser (ou devia fazer) melhores pessoas, clarividentes, mais ricos, mais capazes de entender a Humanidade.

Para cada um individualmente a viagem pode ser fonte de riqueza interior, pode ser válida e importante para o equilíbrio emocional e para a auto-estima. E para que isso aconteça, não é necessário ser uma viagem longínqua, exótica ou especialmente aventurosa ou perigosa.

Nem todas as pessoas são iguais, eu sei, há viajantes competentes, com especiais capacidades de planeamento e imaginação para encontrar destinos maravilhosos. Esses conseguem explicar o sonho da viagem de uma forma cabal, transcendente mesmo. Mas não é por isso que são melhoras pessoas do que os outros. Simplesmente têm esse talento, a par de terem tempo e dinheiro para serem um viajante “exótico e profissional”.

Para esses militantes-profissionais das viagens, o que é mesmo decisivo, é ter vontade, gosto pelo desconhecido e espírito de aventura. 

E também um certo tique, mania de colecionista. Somam destinos, fotos e relatos como quem coleciona cromos. (Nem todos são assim, felizmente, espero que apenas uma minoria retire das viagens o fogo-fátuo do exibicionismo e da sua prova documental).

Quanto aos verdadeiros viajantes - e por muito que os admire - infelizmente, a experiência diz-me que tendem a ser snobs, raiam a arrogância e até talvez algum desprezo pelos “pobres excursionistas”. Aqueles que gostam de passear, estudar e conhecer o mundo e os povos, mas que, por força das circunstâncias, se limitam a destinos mais triviais - ou por falta de dinheiro, de tempo ou de imaginação para planear voos mais altos. Serão apelidados de rascas, sensaborões ou preguiçosos. 

É injusto !

Uns e outros são viajantes. - procuram sair da sua morrinhice, para arejar a alma. Tanto faz ir à Nova Zelândia como a Badajoz. 

Tanto uns como os outros são pessoas dignas de respeito (tal como os que ficam no sofá…) e não faz sentido descriminar viajantes em função da grandeza do destino.

Cada um viaja como pode. O que importa mesmo é que algo mude dentro de si, que construa algo de novo, que ganhe novas vivências, novos olhares, que colecione não apenas mapas e folhetos,  mas amor - pela natureza e pelos seres humanos -, que consiga mais paz interior, um maior apreço por quem lhes é querido, mais tolerância e não traga apenas na bagagem fotos e souvenires. 

Que venham mais ricos pelas pessoas que encontraram, ou pelas belas paisagens que encheram o olhar e a alma de emoções e bons sentimentos.

Que encham a mala de regresso com um sorriso, por ter visto uma montanha nevada, um lago azul. Ou que tragam a tristeza profunda de ver uma criança sub nutrida, procuram sustento numa lixeira indiana.

Ou simplesmente que carreguem a alegria de um saco cheio de caramelos de Badajoz para distribuir pelos sobrinhos mais queridos.

Tanto vale encontrar a alegria nas pequenas como nas grandes descobertas, nas paisagens, no olhar sobre a humanidade mais próxima ou mais longínqua - é igual, é nobre, merece respeito se for genuína a emoção.

O que importa é manter a Alegria e a capacidade de amar e de entender o outro. Não fechar a porta do casulo - o tempo e o privilégio de uma viagem é um casulo egoista enquanto dura - e é preciso continuar a amar o mundo fora dele.

Agir como se fora do casulo não existisse vida e outros seres humanos fossem bonecos parados no tempo,  como se a Terra deixasse de rodar enquanto estamos fora, é uma atitude bastante comum do viajante auto centrado ou distraído.

Este tipo de viajante tende a colecionar memórias da viagem e fotos para apresentar como troféus, provas da sua superioridade.

Quando o que importaria era mostrar o resultado da viagem como um presente de ensinamentos.

Uma dádiva para os outros, não uma conquista para si.

Quem mais vê e mais sabe tem o dever ético de partilhar com o pobre, o ignorante, o perdido, o que ficou para trás, sem acesso ao mundo grande das grandes viagens e experiências.

 


É como deixar um pedinte morrer-nos à porta. 

Infelizmente, é o que mais acontece… por isso , há tantos sem-abrigo.

E as viagens podem ser até mais baratas do que a comida, bastam fotos, memórias, conversas e amor partilhado, diálogo e atenção, de quem muito viu e muito tem. Não custa dinheiro, apenas amor.

É feio menosprezar aqueles “parolos” que só fazem viagens mixurucas - ir a Paris ou a Itália, parecer uma viagem pindérica,  para que vai à Austrália ou à Patagônia.

É muito triste amachucar o próximo, tirar o orgulho a uma velhota provinciana que conta a sua ida a Fátima, com enlevo, e fazê-la sentir memorizado pela insignificância da viagem, é falta de caridade  desmoralizar quem viajou menos, porque a vida ou a falta de jeito não deu para mais. Que pode ter ido “só ali ao lado” mas voltou com a alma mais rica!

A vida é demasiado valiosa e curta. Não pode ser desperdiçada, há que encontrar a Alegria e não dar ouvidos a quem nos magoa com soberba e incompreensão. 

Quem trabalhou demais e viveu de menos, é digno de respeito, sobretudo se continua em busca da felicidade… sempre. 

Em viagem ou parado a sonhar.

É de apreciar quem consegue modestamente e sem viagens estrondosas, pôr a tristeza de lado, esquecer a amargura provocada pela falta de afecto, e mesmo assim seguir em frente: fugir do mal … fugir… porque andar, correr ou fugir sem sentido, também é viajar.

Procurar a felicidade (a qual não existe, mas que utopicamente perseguimos), sorrir às flores e ao sol, às pessoas boas, aos pequenos sinais que o Universo nos transmite é a melhor das viagens. 

Isso é ser otimista, é ter fé na alegria, na solidariedade e no amor. É reconhecer que o sopro da felicidade está não apenas na viagem em si, mas também nas pessoas com quem se partilham essas vivências, ao vivo ou à distância.

Um viajante que se fecha egoisticamente no seu casulo de viagem é um ladrão, porque não transforma em dádiva aquilo que lhe pertenceu mas não é seu - é um bem universal. 

Ir em viagem não é o mesmo que ir para um convento em retiro e desligar-se do mundo e dos seus. Há deveres de viajante. Tal como todos temos o dever de ajudar quem mais precisa: família, amigos, desfavorecidos em geral, na medida 

Por isso há tantos mal-amados, tanta gente amarga, tanta gente virada ruim pelo muito sofrimento acumulado. 

E as viagens podem ser até mais baratas do que a comida, bastam fotos, memórias, conversas e amor partilhado, diálogo e atenção, de quem muito viu e muito tem. Não custa dinheiro, apenas amor.



Além do mais, uma viagem tem o seu regresso. E aí a realidade volta a surgir com toda a força, quando se desfazem as malas e se espera encontrar as outras pessoas ficaram exatamente no mesmo sítio. O que é impossível! A terra rodou para todos. 

É que a vida não pára (não suspende quando alguém está em viagem), o tempo passa para todos por igual, com distâncias e esquecimentos, desamores e vivências distintas, como é óbvio. Mas tanto quem vai como quem fica, mudou… viajou quieto ou a andar.
Não reconhecer isto é não saber viajar.
Por isso, há que guardar a sensatez e trazer compreensão, porque na volta  todos nos encaminhamos igualmente para a morte…