domingo, 9 de abril de 2023

A Gaiola

 


Lembro-me que havia sobre o parapeito da varanda, da casa branca debruado a azul cobalto, junto ao mar, uma gaiola de ferro forjado, já a pedir pintura nova.

A porta da gaiola estava aberta. Lá fora despontava mais um dia de Primavera suave e solarengo, daqueles dias em que apetece voar. Em que a felicidade sonha ser uma nuvem branca, que flutua sobre o mar até se afastar no horizonte . Em que a tristeza também sonha, mas acorda e empalidece quando percebe que lhe é difícil acompanhar o ritmo da nuvem da felicidade. 

Há uma brisa contrária que lhe dificulta o caminho. Não obstante, tenta manter o ritmo e fazer companhia à felicidade - porque alegrias e tristezas vivem juntas há muito e fazem falta ao equilíbrio do universo, basta aceitá-las como normais e embrulhá-las em afecto. 

Não foi por falta de empenho ou por incompetência que a tristeza ficou para trás: ela sabe voar, nadar e amar com a mesma força e vontade de que dispõe a alegre nuvemzinha voadora. E quer muito que o vento mude e voltar a ser feliz, esforçando-se por correr no lado amigo da nuvem  branca. Levar-lhe luz e paz. Sorrisos, muitos sorrisos … muito afecto e bondade que evitem a negrura das chuvas possíveis… 

Sim, porque haverá sempre dias de Inverno. O que importa é proteger, com humanidade, todos seres e aconchegar as tristezas. 
A Primavera é assim mesmo - imprevisível, com sol e aguaceiros, calor e resfriados, desastres e alegrias …


Voltei a pensar na gaiola e lembrei-me da história da Bela, para quem o amor era uma gaiola de porta sempre aberta, recordei o seu lema de que devemos ser pássaros livres: se a porta está aberta, quem gosta fica. E quem não está bem, parte, vai embora, voa com a liberdade transparente e o desígnio inalienável de definir o seu destino. 

O tempo  aquecia, o Verão viria em breve e com ele a esperança de que na gaiola os inquilinos-pássaros saltassem do seu ninho de palha e voassem. Voassem para onde lhes desse na gana, em círculo ou a direito, sobre a terra ou à borda do mar, e pousassem para descansar nas migalhas das esplanadas ou nos telhados do casario. São pássaros e livres. 

Nessa altura, ensonada, eu estava um pouco longe da gaiola, acabava de acordar, a neblina matinal ainda me turvava o olhar e o pensamento esse enrolava-se nas caraminholas do costume, o que acarreta um juízo pouco racional, algo nebuloso sobre a realidade dita normal. Quando olho mais de perto para a gaiola, meio sonâmbula, vejo  dois montinhos de palha - um ligeiramente  corado em tons rosa, talvez folhas de alguma planta de textura rosada tenham sido colhidas amorosamente pelo bico da pássara para seu ninho. Estranhamente, ao lado e separado por alguns centímetros de distância havia outro monte de palhinhas, estas levemente coloridas de azul, folhas de cor pouco comum na natureza. Mas enfim, há tanta estranheza por ai… intrigou-me, aguçou-me a curiosidade saber que o casalito de pardais não se aninhava juntinho numa qualquer palhunça amarelada ou castanha. 
E pensei : estás a ser muito bota de elástico. Pois se ele há homens de saias e mulheres de cabelo verde, por aí… e já ninguém liga! Porque não podem os pássaros ter camitas separadas e coloridas?!
Qual a função? De que lado poêm os ovos a chocar ? Enfim, isso deve ser indiferente…
Mas o que me intrigou mesmo foi a cor azul da palha … o rosa encontra-se por aí… mas aquele azul-cueca donde viria? Quase-quase o tom do Viagra, numa mistura de azul ultramarino com branco. No pressuposto de que o pardal não roubara as palhas a um pintor de ar livre, distraído das suas pinceladas entornadas… de onde viria o azul? 

O sol já estava a despontar e eis senão quando a pardal fêmea se abeirou da porta aberta da gaiola e foi à sua vida, voando alegremente sem par. 

No ninho azul, jazia adormecido, amolecido e sem mexer as asas ou procurar a Primavera, estava o pardal macho… quiçá morto? Não sei ! Talvez esperasse por tempos de mais calor, talvez preguiçoso aguardasse por melhores dias, por uma nova e quente Primavera, que o levasse a voar acompanhado, deixando voar livre a companheira que apesar de dormir bem no edredão de palha cor de rosa, ainda gostava  mais de voar sobre os ninhos coloridos, que uma gaiola aberta lhe ofereciam sem tristeza. 


Ela saiu, deixou a angústia na palha, voou mais leve, não esquece a gaiola porque voltará enquanto a porta estiver aberta, porque espera que um dia as palhas fiquem descoradas com o tempo, e voltem a ter o tom neutro da normalidade, lugar pacífico e aconchegante do amarelo da natureza. Sem grandes voos, sem grandes esperanças, mas convicta de que a porta se manterá aberta, porque a saída para a morte será mais fácil assim. 

Até lá a liberdade e a felicidade serão possíveis, para a pardalita rosa, se o respeito e o amor-próprio prevalecerem sobre a guerra e a miséria moral. 
Se houver bondade, compreensão e amizade… se o pardal não azular demasiado e se confundir com o céu. 


Enquanto a gaiola velha estiver aberta, a liberdade e a alegria de voar estará no horizonte de todos os pardais de bom coração. 

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