domingo, 24 de maio de 2020

Um Amor à Sombra


À sombra?
Como pode uma coisa solar estar à sombra e não estiolar?

Um amor à sombra não é o mesmo que um amor na sombra. Ambos são um pouco tristes, ou talvez não, podem ser apenas a imagem de uma tensão dramática obscura, contra-natura, suavemente clandestina.


Um amor à sombra, aonde ficará essa sombra? Onde se esconde? Debaixo de uma árvore frondosa e fresca, perdido dos olhares dos outros, do bem amado, da censura alheia, do gozo dos descrentes, sim desses, uma grande maioria de homens e mulheres, que não acreditam muito na sua existência. Que nunca viram, nem à sombra nem à luz, essa coisa máxima verdadeiramente demolidora e absorvente que nos leva a alma, o corpo e ocupa todo o espaço que encontrar na mente. Sim, porque durante o período de incubação - o mais grave, se bem que o melhor, o mais forte se bem que transitório - ele espalha-se por todo o lado, ocupa os alveolos mais pequeninos de cada neurónio cerebral e estende-se para fora de nós, até ao espaço exterior envolvente - uma cadeira, uma almofada, uma borda de colcha na cama, um postal de uma viagem de férias, uma flor no jardim, um anúncio a um gelado delicioso, um cheiro a clulé que ficou no chinelo abandonado a um canto, um mail amalucado que foi mandado às 3h da manhã e não apagado no telemóvel, por anos a fio... Tudo sinais exteriores...

Mas esses são os sinais luminosos, não os da sombra.
Um amor à sombra é de que cor? Quase não tem cor e mal se vê, talvez cinzento muito clarinho, ou então é verde-água, o lilás desmaiado também não lhe fica mal... mas é tão esvoaçante e fugidio quanto o vento que abana as folhas na frescura da tarde de Primavera. 


Ou será de uma cor mais escura, colorida pelo tom pardo das folhas que caiem, se for um princípio do Outono ventoso e se este tiver resolvido cobrir-nos de dúvidas e de calmas...

A sombra nem sempre vem da natureza, vem das pedras da cidades, vem das manchas que a alma tece.
Um amor à sombra na cidade: uma senhora madura que já teve melhores dias, grisalha de nariz encostado ao vidro da janela de uma qualquer Madragoa ou Alfama, olhando a rua estreita e vazia, olhando o gato da vizinha da frente, que lhe parece bem mais nobre e bem sucedido do que ela, impertigado no seu posto fronteiro - está ao sol, ao que ainda resta e cai sobre o lado oposto da viela, para ele as sombras da alma nada dizem. A mulher de olhar vazio está na sombra, ali posta talvez por um amor perdido, por alguém esquecido ou simplesmente pelo gajo desaparecido ao seu lado, estirado no sofá da sala, olhando o tecto de sombras e manchas de humidade. 
Na sombra da vida, estes dois. Estes e muitos outros, sei do que falo.

Estar na sombra do amor, como quem o usa manso, devagarinho... para não aborrecer ou acordar o ser amado... que quer sossego e compostura, não quer amor, nem complicações, nem prisões, nem lágrimas, nem paixões, apenas lume brando ... Gisela, a sopa feita em lume brando fica melhor... deixa ferver baixinho... Deixa a panela, não faças barulho, não me peças nada...
E há solidão na sombra, uma solidão desértica por ser um amor simulacro, arraçado de  afecto invisível, interior ... 



E há sombra também no afastamento, nos dias de dúvida, de paradeiro incerto...
Um lago escuro de águas paradas, suavemente ondulante nos dias em que ele sai de barco... um pequeno passeio, o barco é a remos e velho, há que puxar com pouca força para não acordar o monstro que poderá estar adormecido no fundo do lago... todo o cuidado é pouco... Esse é o amor sombra cauteloso, em que um ama e o outro está "à coca", espreitando o que o espera na outra margem... vai remando no silêncio das águas mansas para que mais ninguém ouça, para que não entre mais ninguém a bordo,agora que tem a sua sossegada e contente com o passeio... na sombra.
Sorrateiramente, vai olhando em redor: será que deixei pistas? Será que devia trazer outra para o lago, talvez para ir pescar, de que tanto gosta... desde que seja discreta e não se ria alto, desde que volte para a sua aldeia do outro lado do lago, desde que ele a traga e depois a devolva, sem compromissos, nem ilusões...
Nem sempre é capaz, a sombra é um lugar perigoso, susceptível a tramas e subterfúgios, na sombra tramam-se estratégias, lançam-se feitiços, criam-se expectativas, nada se vê com os olhos. Não obstante, os corações ardentes pegam fogos e lançam armadilhas, que o barqueiro não vê. Porque não vê o amor ou não acredita nele, na sua fantástica fantasia... só vê sombra e paz, só sente silêncio e vazio, enche-se de paz e sossego, conforta-o o amor-sombra, sente-se seguro... Nos dias em que pensa que pode haver verdadeiro afeto escondido por detrás de um amor-sombra, tenta convencer-se de que é inofensivo e que foi confinado a assim permanecer silenciosamente na sombra, sem nada cobrar (apesar de tudo esperar).
Na sombra, na sombra...
Sente-se o fresco e o vazio, sente-se a solidão e desamparo, tem-se medo do abandono... fica-se calmo pela frescura, inquieto pelo futuro, ansioso pela desilusão presente...
Não, a sombra não é um bom lugar para ficar sempre, mas pode ser um bom espaço de paz para reflectir, para descansar.
É tão cansativo estar sempre a viver ao sol, sempre em brasa, sempre a rir, sempre a chorar, sempre a amar com força...
Estar à sombra é estar fora, ou semi-fora, um pé dentro do barco outro na água, quase a cair e a mergulhar, caso o monstro lhe dê para rosnar, caso uma luz apareça a tremeluzir na outra margem, sinal de que um passeio é esperado.
Mas a sombra pode ser uma paragem, para ganhar folego, para continuar a respirar, para amar com calma, para partir com coragem, suavemente, sem grandes roturas... para ir estando molengas... 
Que remédio! O que fazer quando não há sol e o nevoeiro cobre o horizonte? Dormir, parar, pensar...



Um amor à sombra é um bichinho fraco e meio ensonado, é um deixa andar... adormecido e desleixado, é contentar-se com pouco, porque ambicionar muito é demasiado cansativo, ou talvez mesmo impossível, face às circunstâncias. A pobreza é tantas vezes endémica, que por mais que se esforce não se consegue dar a volta por cima. 

Mas entre ter um amor pobrezinho e tímido, por falta de condições... ou estar na sombra vai uma grande distância.

Estar na sombra é desesperante, desgastante ao fim de algum tempo. 

É viver afastado dos outros, da família, dos amigos, da sociedade... como se algum crime houvesse para esconder. Quer seja uma facto verdadeiro, quer seja uma sombrinha chocha, a clandestinidade é difícil de aceitar e de gerir.
Na sombra da clandestinidade, não se é gente, é-se uma espécie de imitação, um teatro, uma personagem falsa que tem de andar fugida.
Tudo sombras, dúvidas e destino imprevistos... como são aliás todos os destinos.




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