sábado, 9 de maio de 2020

A Nova Normalidade






Há uma nova normalidade - soube hoje.
Já desconfiava!
Perante a pergunta de como vão as coisas, obtive por resposta: Normais!
Normais, só se forem para ti porque por mim não estão nada normais. Não me parece que estejamos em "normalidade".

Rapidamente veio a resposta. Sorriu, satisfeito por conseguir contornar airosamente a questão, orgulhoso pela sua prontidão de raciocínio e pelo desembaraço manifestado, por sentir que o poder estava do seu lado e que dominava com segurança a situação - resumindo, naquela fracção de segundo, era ele o dono de tudo!
Da liberdade! Quiçá do Mundo...


Há momentos assim, em que uma pessoa se sai bem e se sente orgulhoso com as palavras certas que saíram no momento certo, para calar o adversário. Neste caso, para calar e magoar uma amiga que, ainda por cima, lhe quer bem e que não faria muito sentido ser arrumada para o lado do inimigo...
Mas claro que isto de guerras e de In são sempre coisas tolas, contingentes e subjetivas.

A resposta certa e rápida foi: É a nova normalidade!

E assim, sendo nova, marca a fronteira de uma rotura com algo de velho.
Não pode existe o conceito de nova sem ser por contraposição com algo que mudou e passou a obsoleto, sem significar que houve um passo em frente no sentido de uma mudança qualquer.
A normalidade conhecida acabou e não nos podemos mais espantar, porque chegou uma nova e é essa que passa a prevalecer.
Não há que reclamar, nem lembrar a antiga, nem esbugalhar os olhos de espanto, a normalidade normal é nova, pronto!
Logo, apesar de desconhecida (para mim que não a criei, não a concebi, nem entendo), só sei que é nova, logicamente diferente...
Mas nova como ?
Será que me é legítimo perguntar? Ou sendo nova, não me diz respeito... fiquei para trás encalhada na normalidade antiga e esquecida?
Isso já percebi. Se é nova e eu não a conheço, é porque não é minha, nunca me foi apresentada, nem explicada. E o sorriso que não vi, mas que teria um toque de cinismo à mistura, insinuava isso: era uma nova normalidade, misteriosa a que não teria acesso nem informação. Decretada por ele, ponto final. Passaria a vigorar e não admitia réplicas.
Tenho algumas dúvidas em saber se posso perguntar o que é a nova normalidade ou se me devo calar, porque não é nada que me diga respeito.
Assim, passou a haver duas normalidade: a que conheço e vejo como normal e a outra: a nova, que não sei o que é. 
Em relação a esta, não me é dado perguntar? Ou será que, pelo menos, terei direito a uma pequena explicação sobre o que gerou a novidade?
Será que o silêncio, a aceitação da rotura, o meu afastamento perante a visão de que se avizinha de uma partida para uma nova realidade - normal para uns e traumática para outros - são a atitude mais certa?
Vou esperar para ver...
O mais certo é não me ser dada qualquer explicação e deixada na ignorância do que é a nova normalidade.
A mim, pareciam-me rosas... afinal são peónias, de outrém!


Posto isto, no turbilhão das dúvidas, curiosidades e angústias, de tanta coisa a acontecer e a submegir-me, ao mesmo tempo, deparo-me com o título da crónica de José Tolentino de Mendonça - chamada "Normalidade".



Andamos todos à volta do mesmo, por razões diferentes...
Talvez seja a inata aversão à mudança que nos toca a quase todos, talvez seja preguiça, velhice, desalento em aceitar que o mundo mudou para mim, que muda todos os dias para toda a gente e que o espanto não é coisa que se deva praticar.
Não nos devemos espantar nem questionar muito. Apenas aceitar que o nosso futuro próximo vai mudar e não como gostaríamos.
Aceitar tudo, pacificamente, aceitar a dor e suportar com um sorriso falso (que mascare a angústia) vendo surgir um amanhã que não será como queremos, será pior... provavelmente.
Porque ver um futuro radioso e promissor, melhor, de uma nova normalidade e com paz, é algo que me custa racionalizar.

Tolentino diz que a "pandemia nos leva à consciência do limite".
É isso!
Preciso de ter consciência dos meus limites, dos limites a que uma relação está condenada... perceber quando nos ultrapassam ou quando nós estamos a forçar os limites impostos. Não vale de nada, querer ir para além dos limites! Por muito que nos esforcemos por resistir, por muita vontade que tenhamos de que tudo corra bem, por muito empenho posto em fazer tudo direito, por agradar, por amar, por distribuir afectos e solidariedade - por muito que se faça, os acidentes acontecem. 
Chega um vírus, aparentemente inofensivo, espirra, tosse e eu morro de asfixia.
É isso!
Asfixio na mentira e na toleima que aquele bicho encerra, pensando destruir o máximo de seres à sua volta. Não vai desistir.
Precisa de se alimentar de sangue e pele humanos, precisa de se alojar numa célula quente e confortável, precisa de se reproduzir, de ser criativo e inovar, em mutações sucessivas... só assim se conseguirá espalhar e garantir a sua sobrevivência. Entrará no primeiro poro de um pedaço de pele mal desinfectada, virá por carta no correio, virá de bicicleta, sob a forma de carinho que contamina a pele ou de doce que aconchega a barriga.
Lutará até ao fim. Ás vezes, parece que está latente e incomoda pouco, outras ataca em força. Irá conseguir infectar quem está por perto, mesmo quem se protegeu em quarentena durante dois meses radiosos e limpos. Veio e trouxe a nova normalidade.
Não sabe e não lhe interessa essa quarentena, aparentemente asséptica em que vivi, sem ter consciência dos meus limites. Ao primeiro vislumbre de espaço não preenchido, não desinfectado, o bicho ataca e mata.
Mata, mesmo!
Neste momento, o inimigo que tão bem se comportou numa quarentena desinfectada de dois meses de sol, está nos cuidados intensivos... pode mesmo partir para o além... deixando o bicho à solta, que o seu destino é a aventura entre continentes.
Porque ele não tem consciência dos seus limites, é uma célula animal sem alma, vai por aí, o seu único limite é saber que se parar de investir em homens, morre.
Eu, tenho outra responsabilidade e outra ética - sou humana, tenho inteligência e outras missões na vida, não estou aqui para infectar e sobreviver, por isso devo ter consciência dos meus limites. Devo ponderar bem quais são eles, até onde posso ir sem ferir a minha dignidade de mulher livre...
Posso até sair derrotada, mas que o seja com nobreza, em liberdade.
Sair do confinamento que, no princípio, era necessário, mas agora já não é. Vou levantar a cabeça e sair da clandestinidade, mesmo que isso implique mergulhar na tristeza e na solidão.

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