sexta-feira, 15 de maio de 2020

Quarentena


Passei uma quarentena maravilhosa.
Pensei que a paz do ambiente e a companhia me envolveriam numa nuvem de afecto eterno...
Porque as coisas boas sentem-se como eternas, enquanto duram.
Havia tele-trabalho, havia sol, havia mar, havia momentos de ternura... e muitas horas de um silêncio habitado, tão gostoso...
Um silêncio que não era solidão, era paz.
Noites de aconchego em que não se percebia que se habitava um espaço de janela fechada sobre o mundo, nem se sentia a escuridão da noite, nem um distanciamento da vida normal. Foi um confinamento de luz, atrás da janela que nos isolava obedientemente do virus.
Momentos de felizes rotinas, de tarefas independentes, de presenças sentidas, mas livres... de ar puro, por dentro e fora de mim.
Se a felicidade - como se costuma dizer - não tem história, esta minha quarentena tem.

Tem e teve (pelo menos até certo ponto) uma história feliz.
Claro que todos sabemos que não há bem que sempre dure... Claro que estava preparada para partir, assim que fosse possível e necessário. Afinal outros mundos me esperam cá fora daquela redoma de madeira onde confinei, sem me sentir presa. Cá fora - no mundo real - esperava-me família, a quem dar apoio, os amigos que precisavam de mais aconchego mesmo que à distância de um telefonema, obras em casa e as muitas outras tarefas que uma mulher sempre inventa como prioritárias (do cabeleireiro, às compras de roupa nova, passando pelas arrumações de casa), Além disso, o trabalho profissional continuou a ser intenso - mas na prática igual ao que foi feito em tele-trabalho.

Aos poucos alguns sinais foram anunciando que havia uma percepção errada (talvez mentirosa) da vida fora da cabaninha amorosa da Branca de Neve.  
Sempre assim fora e não era novidade que ao regressar ao meu sítio normal, nada voltaria a ser como dantes.
Só que fui confrontada - em choque - com algo que me disseram ser a "Nova Normalidade"!
E que a mesma consistia, entre outras coisas, em aumentar o grau de clandestinidade. A tal cabaninha que eu vi límpida e transparente como o mar em volta, cheia de sol e de liberdade, afinal teria de passar a ser (na melhor das hipóteses) um refúgio clandestino.
Quiz saber porquê?
Tremo em saber a resposta...
Ela vem aí... foi sendo anunciada... eu já a devia conhecer de ginjeira...
A razão para a minha clandestinidade eterna é sempre a mesma - não magoar a minha sensível e amorosa concorrente, que não pode saber tudo. Proteger a princesa é uma forma de defendê-la na sua miserável situação de dependência alegre e inconsciente e de, ao mesmo tempo, continuar a gozar daquilo que a princesa traz consigo de bom - uma simpatia e uma sedução requintada, mascarada de amor romântico, de carinho e dedicação sem limites, disposta a ir até aos confins do razoável, para tudo ganhar... nem que seja um dia mais tarde, à hora da morte. 
E assim, prossegue a saga da eterna mulher pseudo-apaixonada, competente doméstica e elegante presença, que sobrevive e construiu toda a sua vida assente no estereótipo clássico da mulher dependente de um homem, qualquer um, que lhe dê posição, dinheiro e estatuto para viver em segurança e ter o reconhecimento alheio, da sociedade, do seu ego e, sobretudo, das outras mulheres.
É o eterno-feminino!Modelo tão do agrado dos homens, novos e velhos, mais ou menos instruídos, com diferentes ideologias e experiências.
A fada do lar - ser for boa, prendada, cordata, calma e carinhosa - é sempre melhor que a intelectual louca que queima soutiens e atira com as panelas ao ar (só não é a loiça porque está se parte e é chato, enquanto as panelas não!).
Quando não há Amor, prevalece o interesse, o proveito obtido do usufruto de quem der mais.
E quanto mais se tem melhor! Se se pode ter tudo e se o tudo é bom e agradável, porquê descartar alguém?
Afinal todos precisamos muito de vitamina F.
Eu também preciso de vitamina F, de preferência F de friens with benefits...

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