terça-feira, 28 de abril de 2020

Futuro



Nada voltará a ser como dantes! Podem pensar o que quiserem, podem fixar-se na ilusão de que a quarentena é uma paragem no tempo, que a vida se encarregará de retomar o seu rumo (exceto para quem partiu de vez, claro).

Não! Isto não é um interregno... é uma mudança.
E para alguns (talvez os mais velhos ou menos crédulos) é uma mudança definitiva, sem retorno.
Não se trata de algo transitório, irreal, artificial, irrepetível, diferente...
Nada disso! Olho o futuro como quem olha para a linha do horizonte no mar, num dia límpido... igual, linear, parado, uma quarentena permanente. 
Para mim, foi um período de confronto de mim com a minha realidade, de mim com as minhas circunstâncias, de um aprofundar da consciência de qual o meu lugar... o que faço aqui, quem me quer aqui... porque me mantenho em quarentena. 
Sim, porque não faço exatamente o contrário do recomendável e vou eu por aí... até ficar mesmo infectada e morrer? Porque não é fácil, segundo dizem. Os supostamente saudáveis escapam ou tem doença ligeira.
Creio que depois disto nada será igual, nada será semelhante à fantasia anterior.
Mergulhei no período de contenção e recolhimento como quem mergulha numa piscina de realidade. E percebi que, até então, vivia uma espécie de fantasia, aquela onde eu e todos os outros dançam e interpretam o seu papel, aquele que alguém lhes deu ou que eles escolheram, com mais ou menos consciência de que estavam a fazer uma escolha. Porque fomos ensinados a que a vida é um palco e temos mesmo de escolher que personagem queremos representar e como devemos interagir com os outros personagens, para dizer a "fala" certa no momento certo, tudo direitinho para o público gostar de nós.
O distanciamento social tirou-me do palco, fui dispensada de atuar, fiquei à margem do espetáculo, sózinha comigo mesma e com a dureza da minha realidade, despida de sonhos e de floreados fantásticos. Vazia de projetos e de expetativas.
Depois da quarentena, nada será como dantes!
Pelo menos para mim, que perdi a força de encetar um reinício. Reset, restart... não encontro os botões!
Perde-se a esperança, os objetivos, o vigor de continuar a persegui-los, deixa-se de correr à procura de amigos, deixa-se de acreditar neles, em milagres ou na sorte. Deixa de ser importante estar bonita, de sorrir para o espelho, de inventar, de fazer da vida uma festa, sempre criativa e emocionante.
Perde-se a inocência... a quarentena levou-a num vendaval de realismo.
Aqui e agora na realidade do momento presente, tudo é mais verdadeiro.
Porque o momento presente é exatamente igual ao minuto anterior e porque a hora seguinte será muda e quêda, como as que a antecederam...
Parados, calados, introspectivos, vagamente distraídos, vemos mais um episódio de uma série bestial, apanham-se mais umas ervas no jardim... que é uma espécie imaginada dos jardins suspensos da Babilónia... inacessíveis, quiçá inexistentes...
Se eu bebesse, seria uma cerveja quente da dispensa (as frescas já tinham marchado) e concluiria que são tão boas como nada... e, quiçá, nem será preciso voltar ao bar da esquina para um copo, no futuro próximo em que talvez o balcão esteja desinfetado e o barman sem máscara. Essa cerveja fresca num ambiente amistoso era afinal fantasia, real é mesmo esta que bebo comigo mesma, a única que interessa, tudo o mais se esfuma na irrealidade daquilo que nos ensinaram que ver como real.
Há muito que sei que a verdade não existe! Mas é tão bom, deixar-me embalar e esquecer-me por momentos. É tão bom pensar que sim, que existe e é real, palpável, verdade verdadeira e segura.
Seria tão incrivelmente maravilhoso pensar que há futuro e que nesse longínquo lugar... talvez haja viveiros que vendem plantas em vasos, que podem plantar-se e "pegam" logo. Instantâneo! 
Mas não. Hoje e na realidade, a natureza é lenta... e cada pèzinho de flor que se corta para tentar que crie raízes para voltar a crescer, cada semente pequenina que se lança à terra tem fortes probabilidade de morrer, nesse percurso lento, demorado de construção de uma vida. Numa lentidão de quarentena.
E depois dela acabar (para alguns, como dizia), tudo será muito lento... porque regressaremos a nós próprios, como se fosse um principio... Ora, quem é velho não tem mais principio... só tem fim.
Pode levar algum tempo a atingir esse fim, mas o lento caminho para o vazio prevalece, com a sua cara de realismo novo.
Ir comprar plantas prontas a enfeitar um jardim era um prazer, um passeio excitante. Um prazer cortado! Agora nada mais parece ser excitante e o futuro afigura-se igualmente enfadonho, tão chato como a semana anterior... ou a próxima, tanto faz.

Descobri que vivo em quarentena dentro de mim, desde sempre. E que as poucas vezes em que saí de dentro de mim, foi por motivos essenciais: por exemplo, para saberem que existo (lembrar aos mais esquecidos), para procriar os seres autónomos de que a Humanidade se compõe, para tentar dar esmolas solidárias a quem não as pediu e as despreza, foi para renegar o Bem... que me foi mal oferecido.
Saí pouco e caminhei tropega pela vida, não soube ir a direito, levar mascara e luvas...
Por isso, fulminada por mais um virus, novo e parecido com o do ano anterior e também com aquela gripe que me ataca sasonalmente há 5 anos, tive uma recaída.
Por isso, sei que continuo a não estar imune e que tenho de regressar à quarentena. 

É nesse lugar de contenção e moribundez que me querem. E se calhar será um regresso ao nada. 

Quando a dita normalidade do teatro da vida voltar para o comum dos sobreviventes, eu regressarei àquele pântano, mais parecido com quarentena, onde não consigo ver a luz ao fundo do túnel.
E depois de mim virá quem consiga, por mérito próprio, não só ver a luz, mas o mar lindo, azul, esplendoroso ao fundo do túnel.

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