Não! Isto não é um interregno... é uma mudança.
E para alguns (talvez os mais velhos ou menos crédulos) é uma mudança
definitiva, sem retorno.
Não se trata de algo transitório, irreal, artificial, irrepetível,
diferente...
Nada disso! Olho o futuro como quem olha para a linha do horizonte no
mar, num dia límpido... igual, linear, parado, uma quarentena
permanente.
Para mim, foi um período de confronto de mim com a minha realidade, de
mim com as minhas circunstâncias, de um aprofundar da consciência de qual
o meu lugar... o que faço aqui, quem me quer aqui... porque me mantenho em
quarentena.
Sim, porque não faço exatamente o contrário do recomendável e vou eu por
aí... até ficar mesmo infectada e morrer? Porque não é fácil, segundo
dizem. Os supostamente saudáveis escapam ou tem doença ligeira.
Creio que depois disto nada será igual, nada será semelhante à fantasia
anterior.
Mergulhei no período de contenção e recolhimento como quem mergulha numa
piscina de realidade. E percebi que, até então, vivia uma espécie de
fantasia, aquela onde eu e todos os outros dançam e interpretam o seu
papel, aquele que alguém lhes deu ou que eles escolheram, com mais ou
menos consciência de que estavam a fazer uma escolha. Porque fomos
ensinados a que a vida é um palco e temos mesmo de escolher que personagem
queremos representar e como devemos interagir com os outros personagens,
para dizer a "fala" certa no momento certo, tudo direitinho para o público
gostar de nós.
O distanciamento social tirou-me do palco, fui dispensada de atuar,
fiquei à margem do espetáculo, sózinha comigo mesma e com a dureza da
minha realidade, despida de sonhos e de floreados fantásticos. Vazia de
projetos e de expetativas.
Depois da quarentena, nada será como dantes!
Pelo menos para mim, que perdi a força de encetar um reinício. Reset,
restart... não encontro os botões!
Perde-se a esperança, os objetivos, o vigor de continuar a persegui-los,
deixa-se de correr à procura de amigos, deixa-se de acreditar neles, em
milagres ou na sorte. Deixa de ser importante estar bonita, de sorrir para
o espelho, de inventar, de fazer da vida uma festa, sempre criativa e
emocionante.
Perde-se a inocência... a quarentena levou-a num vendaval de
realismo.
Aqui e agora na realidade do momento presente, tudo é mais
verdadeiro.
Porque o momento presente é exatamente igual ao minuto anterior e porque
a hora seguinte será muda e quêda, como as que a antecederam...
Parados, calados, introspectivos, vagamente distraídos, vemos mais um
episódio de uma série bestial, apanham-se mais umas ervas no jardim... que
é uma espécie imaginada dos jardins suspensos da Babilónia...
inacessíveis, quiçá inexistentes...
Se eu bebesse, seria uma cerveja quente da dispensa (as frescas já tinham
marchado) e concluiria que são tão boas como nada... e, quiçá, nem será
preciso voltar ao bar da esquina para um copo, no futuro próximo em que
talvez o balcão esteja desinfetado e o barman sem máscara. Essa cerveja fresca num ambiente amistoso era afinal fantasia,
real é mesmo esta que bebo comigo mesma, a única que interessa, tudo o
mais se esfuma na irrealidade daquilo que nos ensinaram que ver como
real.
Há muito que sei que a verdade não existe! Mas é tão bom, deixar-me
embalar e esquecer-me por momentos. É tão bom pensar que sim, que existe e
é real, palpável, verdade verdadeira e segura.
Seria tão incrivelmente maravilhoso pensar que há futuro e que nesse
longínquo lugar... talvez haja viveiros que vendem plantas em vasos, que
podem plantar-se e "pegam" logo. Instantâneo!
Mas não. Hoje e na realidade, a natureza é lenta... e cada pèzinho de
flor que se corta para tentar que crie raízes para voltar a crescer, cada
semente pequenina que se lança à terra tem fortes probabilidade de morrer,
nesse percurso lento, demorado de construção de uma vida. Numa lentidão de
quarentena.
E depois dela acabar (para alguns, como dizia), tudo será muito lento...
porque regressaremos a nós próprios, como se fosse um principio... Ora,
quem é velho não tem mais principio... só tem fim.
Pode levar algum tempo a atingir esse fim, mas o lento caminho para o
vazio prevalece, com a sua cara de realismo novo.
Ir comprar plantas prontas a enfeitar um jardim era um prazer, um passeio
excitante. Um prazer cortado! Agora nada mais parece ser excitante e o futuro afigura-se igualmente
enfadonho, tão chato como a semana anterior... ou a próxima, tanto
faz.
Descobri que vivo em quarentena dentro de mim, desde sempre. E que as
poucas vezes em que saí de dentro de mim, foi por motivos essenciais: por
exemplo, para saberem que existo (lembrar aos mais esquecidos), para
procriar os seres autónomos de que a Humanidade se compõe, para tentar dar
esmolas solidárias a quem não as pediu e as despreza, foi para renegar o
Bem... que me foi mal oferecido.
Saí pouco e caminhei tropega pela vida, não soube ir a direito, levar
mascara e luvas...
Por isso, fulminada por mais um virus, novo e parecido com o do ano
anterior e também com aquela gripe que me ataca sasonalmente há 5 anos,
tive uma recaída.
Por isso, sei que continuo a não estar imune e que tenho de regressar à
quarentena.
Quando a dita normalidade do teatro da vida voltar para o comum dos
sobreviventes, eu regressarei àquele pântano, mais parecido com
quarentena, onde não consigo ver a luz ao fundo do túnel.
E depois de mim virá quem consiga, por mérito próprio, não só ver a luz,
mas o mar lindo, azul, esplendoroso ao fundo do túnel.
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