quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Valete de Copas



O que vale ter um amigo que espera por nós na estação de comboios? 
Vale muito e é muito agradável receber surpresas destas. Costuma dizer-se que “quem tem amigos não morre na prisão”… A mim não me salvaram do xelindró, mas simplesmente aqueceram o meu caminho até casa.

As estações são lugares românticos e a ficção tem explorado isso - sobretudo, a faceta das partidas. Despedidas sofridas, partidas sem retorno, emoções à flor da pele, dramas, saudades do futuro… enfim. 
As chegadas proporcionam menor atenção, são mais prosaicas. É chegar e andar, muitas vezes sem haver comissão de receção à espera. 

Não foi o meu caso. Tinha à minha espera um valete de copas, perfilado e fiel, pronto para me carregar as rosas e aconchegar a tarde.

Um valete um pouco desmiolado(tal como aquele ali de cima), baratinado, que virou pintura abstrata. Um valete que não me via há três meses, quando ainda na semana passada jantámos quase todos os dias.
Estas estranhas cartas de jogar, por vezes, piram. Há que jogar uma nova cartada, mais lúcida e real. 

E que venham mais comboios a apitar e mais lugares de encontro. Porque o melhor do mundo são os amigos!
Depois dos filhos e das crianças...

domingo, 16 de dezembro de 2018

Um Inverno em Paz


Invernoempaz é um conceito. 

Um inverno em paz é um acontecimento real.

Um inverno em paz passou a ser o meu lema! 

Decidi viver o presente, ou pelo menos estou a tentar… Faço por aproveitar o que a vida me dá, um dia de cada vez, saboreando as coisas boas, ficando no prazer da espera de outras talvez melhores…
E no momento presente – o único que importa e existe  por acaso, é Inverno.
Calhou. Podia ter decidido isto no Verão…mas não. 
Coincidência… o que se passa é que é Inverno e eu estou cá, estou dentro dele, quer queira quer não. Por isso, só me resta assumir que estou no Inverno e que por ora é aqui o meu lugar, o meu ninho, o espaço que hoje me é dado para ser feliz. E é neste mesmo Inverno que eu penso, digo em voz alta baixinho para mim mesma: quero paz…
Foi um fim-de-semana de paz. Mais um marco na firme disposição de ter uma vida mais calma, descontraída, sem angústias, medos e inseguranças. Ali no Alentejo extra-lugar… onde extra-terrestres são gente que não existe, não se vê… eu fico em paz, comigo e com os outros. Os fantasmas, que tantas vezes me habitam, saem todos na paragem da camioneta em Évora.
Daí em diante é tudo irreal e verde, porque é Inverno, porque choveu e eu estou em paz.
Ás vezes, as camionetas, no seu vaivém de ir e vir, não levam tudo de volta e deixam resíduos e tempestades, pequenos gravetos largados no meu caminho de paz, um turbilhão visualizado… por dentro…por dentro onde tudo acontece…mas depois lá me esforço e olho pela janela. Lá fora tudo é grande e nada me fará mal. Se dentro de casa me voltar a esbarrar nos despojos de merda, que podem contaminar a minha paz… eu posso abri a porta e sair pelos campos, há uma estrada infinita que me levará a algum lugar, muito espaço a percorrer, talvez se começar a correr lhe ganhe o vício e continue sem parar, sem olhar para trás.
Andar, andar… em frente… fugir sem destino como o Forest Gump é uma imagem tentadora (mas pouco prática). Apeteceu-me fugir por um momento, durante o fim-de-semana que afinal foi de paz.  Num momento difícil, olhei pela janela, senti o impulso de partir, estrada fora e calculei o tempo que demoraria até nem sei onde. Mas respirei fundo e pensei – aqui e agora, no momento presente que é o único que importa, eu estou bem… logo devo continuar assim, aqui. Deixar de pensar na migalha passada que me perturbou, esquecer as palavras e os atos passageiros que me magoaram, já eram passado quando digeri o que ouvi, no minuto seguinte tudo o que incomodou… já era. Logo não importa mais…passou, esqueceu… E o futuro assusta? Quanto a esta migalha de fanico, não me parece que venha a ter consequências. Por isso, esqueci e parti em frente… porque eu quero mesmo e vou conseguir um Inverno em paz.


terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Invernoempaz





Era um dia igual aos outros, de trabalho, de agitação, de pessoas simpáticas ou chatas, de sorrisos e de esgares de raiva, de telefones que tocam, de mails que chegam, de colegas que entram, perguntam e saem, de vida que roda… de doces momentos num telefonema especial, cabido entalado no meio da confusão, roubado ao início de uma reunião ou ao fim de um almoço… fugidio mas bom, íntimo, gostoso e que sabe à sobremesa que habitualmente não como.
É a roda dos dias… a máquina do tempo que passa, cujo ritmo tento a apanhar para não ser trucidada na engrenagem da coisa…
Mas por muito que seja o esforço, a máquina é exigente e complicada… traz muita sofisticação que não me é dado acompanhar, pequenos nadas que complicam tudo…
E a roda, roda, roda… e eu tento correr qual ratinho no cilindro redondo, tentando não parar, fazendo por acompanhar, correr e dançar conforme a música que toca, para não desafinar, para não perder a corrida… aquela corrida a caminho do nada… que todos sabemos ser o fim.
No fundo, penso que se conseguir rodar ordeiramente conforme as regras da máquina, talvez me consiga manter no ar, na roda, algures por aí, sem cair. Sobrevivência, chama-se a isto! Sobreviver é o que todos fazemos, melhor ou pior. Sobreviver com alguma qualidade de vida, em paz, com afetos, com uma base de aconchego familiar, com estabilidade amorosa (a qual sabemos que não existe e quando aparece não é para sempre).
Importa é aguentar sem cair… Pura ilusão, na vida cai-se tantas vezes…
Há que tentar, com ajudas ou por recurso aos recursos próprios que escasseiam.
Hoje a ajuda foram os despojos do dia, de um dia de felicidade. O resto de uma garrafa de champanhe - que serviu para comemorar um evento bom, promissor de esperança e liberdade - esse resto que, em princípio, iria pelo cano abaixo, porque ao fim de cindo dias estaria chocho, afinal estava bem bom! Serve para manter uma réstia de alegria de viver, sempre dá uma ajudinha a combater a tristeza que chegou sorrateira, neste dia de inverno, tão igual aos outros.
Beber só, é triste? Talvez não. Pode ser um momento de libertação, um espaço de reflexão. Sim, porque é preciso pensar, pensar muito e com muita força. Porque se vivemos apenas a sentir … a vida dói. Pensar é como despejar um copo de água fria sobre uma acha que arde na lareira, é abrandar o fogo dos sentimentos e das emoções dolorosas, angustiantes que nos ocupam o coração e, por vezes, se tornam viróticas alastram à cabeça e ocupam o espaço todo. E não deixam dormir, nem pensar com juízo.
Um pingo de racionalidade é preciso. Pensar friamente, pôr água no fogo transtornante, aceso na raiva, no ciúme e na insegurança…
Porque a vida é insegura e eu sei disso. É insegura, é um lugar perigoso, sempre armadilhado para nos transtornar. Apesar de saber, nunca estou preparada para mais um confronto com a realidade que dói, com o massacre dos sentimentos esmagados pela raiva, pela angústia, pela constatação de que alguém nos quer mal…
De repente, o tal dia normal… com a colorida agitação de reuniões e de mails, mergulha no abismo com um simples flash de informação que nos cai, sem ser procurada.
A culpa é da tecnologia que nos despeja em cima aquilo que não queremos ver, nem saber.
Eu bem tento fechar os olhos e esquecer, esquecer que alguém me afasta do caminho, que larga mal-olhados e picos de raiva, só para marcar terreno e desmoralizar quem está bem, tentando, até ao limite, ver até onde vai a capacidade de resistência.
Uma mulher não é de ferro, mesmo quando finge que sim. Uma mulher tem sentimentos e inseguranças que, nos dias difíceis, sucumbem às provocações.
Bem sei que são pobres provocações ditadas pelo desespero, mas magoam mesmo assim.
E preciso de muita racionalidade para me manter à tona, para continuar a rodar na roda da vida, sem cair… sempre em frente, sem sair do meu caminho, olhando o horizonte como um futuro de esperança e vivendo o presente, que é único momento que interessa.
E no presente, eu hei-de vencer! E com força, hei-de conseguir viver um “invernoempaz”.
Um “Invernoempaz” é o meu lema presente…
Um dia de cada vez, fazendo o que é certo, amando quem achamos que sim, partilhando o que temos de bom, deitando o resto para o lixo…
Um inverno quente de aconchego e afetos, de paz, de aceitação dos dissabores, de compreensão por quem sofre, de dádiva por quem precisa, de alegria pelas coisas boas, pelos amigos, pelos livros, pelos escritos, pelo sol que sempre espreita mesmo no inverno. 
Eu quero um inverno calmo, sem gente a espalhar angústia no meu caminho, sem essa tormenta real-irreal que me faz vacilar, sem saber que há quem espere que eu caia...  que me deseja de rastos na lama da angústia e da estupidez, onde tão facilmente me enterro...
Eu não quero ver, nem saber... eu quero esquecer as nuvens negras e as bruxas que largam sapos e penas, que ficam nos cheiros e nas almofadas moles, no trapo e no capacho. E na nuvem, na virtualidade do mundo virtual que nos comanda e come...
Não quero saber, quero viver!


Invernoempaz com ou sem sol, mas com copos e companhia, com mimos e alegria… até mesmo com amor, sim porque ele parece estar ausente, ter perdido o seu lugar central na vida de muitos de nós, parece que vivemos num espaço onde ele passou de moda…


domingo, 18 de novembro de 2018

Bucólico


O que mantém o boi no pasto é a erva, não é a cerca!
Pastam mansamente na frescura verde da Primavera ou no capim seco do estio...
Sirandam por ali, de olhos postos no chão, procurando alimento e vida. A cerca está longe e não é uma fronteira.
Não pensam pular a cerca ... ali é o seu lar e a sua sobrevivência... e por lá ficarão enquanto houver que comer. Só procuram pradarias longínquas se a fome apertar e aí a cerca poderá ser um obstáculo a ultrapassar.
Mas poucos serão capazes de pular a cerca ... por feitio e por raça... talvez só um daqueles toiros bravos, de corrida, dos que saltam as barreiras num ímpeto estranho e imprevisto, assustando os aficionadas calmamente sentados na bancada de uma praça de touros.
Um susto!
Nunca se sabe o calibre do animal...
Por isso, mais vale fazer de vaquinha pachorrenta, daquelas muito queridas de olhar meigo, que até parecem sorrir ... fazer que doce vaquinha, ter muita calma, esperar que o pasto se mantenha fresco e que todos os bichos fiquem onde houver que comer... lado a lado ...
O ciúme não se evita com uma cerca.

O ciúme só existe se houver "nós" e não apenas "laços"... lacinhos cor de rosa com um chocalho na ponta.


terça-feira, 13 de novembro de 2018

Sorte




A vida sempre me deu mais do que o sonho.

Sorte a minha?
Ou apenas sou pouco sonhadora e navego mansamente no mar do realmente possível?


Pragmática e terrena, se sonho tento alcançar o desejado. Evito persistir na busca de imagens sonhadas, de histórias por outros vividas, de romances lidos, de filmes fantásticos, de conversas sussurradas por marias, de sensações maravilhosas por outros contadas... Não embarco na ilusão.
Vivo o eu! Construo o meu próprio universo do desejável-possível. Do it yourself. 
Gosto de tecer o meu mundo com as minhas próprias mãos  e não vou comprá-lo ao pronto a vestir. Também não espreito as "montras das marcas" e das vidas glamourosas... pensando que felicidade é algo se consegue por aí, igualando os modelos de sucesso  e julgando que basta um jeitinho de sorte ou o Euromilhões. 
Não fico à espera que o sonho se torne realidade.
Vivo a realidade como um sonho, o melhor possível, de forma um pouco naif ...
Sem muita espiritualidade mas algum romantismo. Serei pouco imaginativa? Serei pouco ambiciosa? 
Talvez... mas tem corrido bem, tenho tido sorte... 
O melhor do mundo são as pessoas, os afectos, a alegria, o presente.
Se o presente for o sonhado melhor... 
Quando alguém (megalómano) prossegue um sonho extra-normal, avantajado, desmedido ... e a realidade não o segue, instala-se uma de duas coisas:
  - A angústia, o stress e a depressão, por se sentir imponente para realizar os seus desejos;
  - Uma vida etérea e abstrata, num limbo de irrealismo, num mundo de fantasia, por si criado, sem aderência ao chão que pisa.  Há quem flutue assim na nuvem cor de rosa que para si construiu e, ao fim de algum tempo, até consegue acreditar que essa mentira fantasiosa que a si mesmo conta ... é verdadeira!

O sonho! O sonho eterno que tapa a miséria do real.
É o refúgio daqueles infelizes a quem a vida deu menos que o sonho, ou talvez, de quem sonhou demasiado alto, ou ainda, de quem importou para si as paisagens de sonhos alheios.

São os que copiam heróis-modelos-sucesso... vão aos livros, às revistas coloridas, falam com a vizinha e querem igual... para melhor! 
Os que gostam de cópias falsas em vez de originais. 


Esperam sentir o chão tremer debaixo do corpo, fazendo amor deitados na terra, ao relento numa floresta, no espaço tenso da guerra civil de Espanha , num romance de Hemingway... e sentir tal e qual isso, ter a sensação mágica de um orgasmo telúrico num colchão do Ikea.  O tal sonho do corpo que treme com o magma da terra, caindo na desilusão ao verificar que o amor não é um filme, nem um romance, nem uma vida alheia.

É muito melhor do que isso! É a nossa vida, a única que temos, a melhor de todas.


terça-feira, 6 de novembro de 2018

Flores e couves para a sopa



Qual é a diferença que existe entre ter uma relação séria e praticar um relacionamento de encontros lúdicos?

São as rotinas e os atos de domesticidade que mais consolidam o elo entre duas pessoas, que lhe dão a cola, que por vezes se torna compromisso. Não são as festas... essas passam, o seu rasto de cometa louco, quando acaba, deixa uma memória doce ou um esquecimento desprendido. 

A diferença entre o sério e o lúdico está na intimidade verdadeira como contraponto ao gozo, à diversão, ao extraordinário.
Merda para as vidas difíceis, para o equilíbrio entre deslumbrar e fazer a sopa. Sendo que pode haver sopas deslumbrantes (e gostosas) que conseguem levar o deslumbramento do pobre deslumbrado ao ponto de confundir o brilho com o sabor das estrelas (Michelin ou outras).

Entre comprar couves para a sopa, seduzindo pela domesticidade e optar pelo contraponto que seria comprar flores, viagens e sonhos cativando pelo exotismo romântico ou pela excitação do fora do lar, o que fazer ?

Na vida tudo é confuso, caótico, de cores diversas e entendidas diversamente pelos seus atores. Tudo é incompreensão e distanciamento, tudo contribuiu para a longitude entre os seres que, naturalmente, pensam, sentem e amam de modo diverso.
Compreender o outro é tão mais complexo quanto desconstruir esse raciocínio de compreensão e torná-lo lastro de desamor.
É tão fácil desfazer um afecto verdadeiro e transformá-lo em nada... tão fácil quanto está próxima a intolerância do ódio.
Por isso, só a tolerância nos salva! Só a aceitação do outro, tal como ele é, permite a paz..
A paz esse bem inalcansável pelas almas inquietas. Esse bem que sem amor de nada serve.
A paz boa, não aquela que adormece, mas a que nos exalta, nos motiva a ser criativo e bom, a amar em segurança... sem moleza, com empenho.
A utopia eternamente perseguida ...
O triângulo desejado de amor-paz-segurança, irreal inatingível talvez, fonte de angústia porque se corre atrás dele e ele, num instante e sem sabermos como, vira  triângulo das Bermudas... perigoso.
Sempre o triângulo fatídico que não nos quer, que foge, que trama... porque há rochedos e tufões.
Impecilhos, impecilhos e mais tormentas.
Porquê?
Eu quero o mundo todo para brincar, passear, andar, voar e amar ... sem entraves, sem pedras no caminho.
Eu quero um mundo onde possa seguir em frente, dar o tanto que tenho para dar... sem estar constantemente a ser coartada em prosseguir, recebendo golpes na minha criatividade e desejos... São tão honestos os meus desejos, tão simples, legítimos, bons... porque não posso então andar?
Nem dormir...
Presa na liberdade que criei para mim e não me chega.
A liberdade não existe, há demasiada gente neste mundo para que todos possam ser igualmente livres.
Há engarrafamentos de trânsito, esbarramos uns nos outros e não damos passagem a quem quer correr mais depressa.
Vou continuar a correr, a caminho da utopia do triângulo, sabendo que vou tropeçar em muitas pedras e que vou cair, levantar-me e provavelmente voar para uma ilha menos povoada e mais calma.
Preciso de parar o sofrimento desta corrida atropelada, de mim comigo mesma e com os outros que não me merecem...
A liberdade que criei para mim, realmente não me chega!



quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Estremoz, Verão de 1965


“Corre o tempo velozmente
Como a água da corrente
Nós também da mesma sorte
Correndo vamos para a morte”
Inscrito na estátua do Gadanha

O lugar onde tudo acontece é o Rossio e seus arredores. Um pequeno mundo que, naquele tempo, nos parecia tão grande, país governado pelo calor, pelo ritmo dos dias cansativos de quartel e pelas noites felizes nas esplanadas. Rossio, de um branco aberto pelo sol, de espaços amplos, de casas antigas que escondiam frescura, de igrejas guardadoras de segredos...

No meio do Alentejo que abrasava, a cidade era um nicho de conforto antigo, um lugar claro e alegre, sossegado à hora da sesta e vivo ao anoitecer. Mais adiante, para além do casco antigo e dos bairros populares nas portas da cidade, ficavam os olivais e as searas entremeadas de chaparros, que plasmavam a sua sombra no meio do chão que ardia.

Mas é cá dentro, no trapézio de casas brancas, simples ou apalaçadas, pinceladas de varandas de ferro forjado e de janelas de guilhotina que tudo acontece, no Rossio que se entorta num dos topos e se estende para outro largo onde nasce o mar…frente a um convento, que é afinal quartel.

Um mar imaginário chamado Gadanha, um mar chamado Marília. Porque me pareceu um imenso lago de prazer a primeira vez que o vi, porque foi também essa a primeira vez que a vi, azul como o mar, azul no olhar e Marília de seu nome. Tinha de ser!

Marília, sentada ao sol na berma daquele tanque arraçado de lago que me parecia o mar… Marília descalça com os pés roçando a água, saia um pouco alevantada, porque os salpicos dos seus pés inquietos lhe molhavam as pernas quentes de juventude e de Verão, as pernas mesmo assim razoavelmente compostas que eu entrevia nas pregas do vestido azul de flores. As pernas que eu pressentia quentes e frescas naquele lugar de fronteira entre Alentejo e o mar.

Á hora da sesta, o silêncio era o principal habitante do lugar, o chap-chap dos pés de Marília a única música que eu ouvia. Eu tinha escapado do quartel, por uma meia hora de folga, simpatia do comandante - provavelmente porque o exercício intenso daqueles dias de preparação do batalhão que havia de seguir para Angola lhe exigia uma sesta (e a nós também). Naquela saída rápida aproveitada para comprar tabaco, vim só e apeteceu-me absorver melhor o espírito do lugar, olhar em redor, com o meu sentir e silêncio, distante da galhofa das saídas em grupo com os camaradas do batalhão, conforme já tinha acontecido nos poucos dias que levava de tirocínio em Estremoz.

Num grupo vivia-se o grupo, as piadas, os copos, a noite do Rossio, ar de (quase) estância balnear. A cidade parecia esquecida do seu papel de antecâmara para a guerra. Vivíamos o presente porque ele era belo e alegre, porque o Alentejo nos acolhia na sua brancura de dias quentes e nas suas horas de fresco espairecimento noturno. Ali e agora, naquele Verão em Estremoz, nós eramos jovens e sentíamo-nos fortes, da guerra pouco sabíamos, o mais importante era a aventura que pressentíamos em Africa, espaço de exotismo imaginado, o fascínio pela viagem, pelo descobrir…

Sentíamo-nos uns heróis antes de tempo, íamos descobrir outro mundo, aterrador talvez (vinham notícias da guerra e dos seus perigos, se bem que um pouco adoçadas pelo discurso do regime…). Vínhamos do conforto da família, do labor nos campos ou nas fábricas, íamos ser homens num outro mundo, eramos gente finalmente! Gente de vinte anos, mas agora sim, pessoas verdadeiras, integradas numa tribo diferente.

Em grupo, eu era mais um. A sós, seguindo a pé pela sombra das casas, eu era eu.

E foi esse eu novo e orgulhoso do seu novo lugar, que atravessou o Rossio, olhando lá no alto o castelo com a sua torre de menagem e o imponente paço real.  Foi esse eu - subitamente crescido e diferente do rapazinho que saíra do Porto, ajudante de contabilista sem jeito nem preceito, armado em militar - que atravessou o largo do Gadanha, a passo firme, e de repente se esbarrou na borda do lago atraído por uma visão azul.

Marília molhava os pés no mar, o único que o seu Alentejo lhe dava.

Marília, cabeça descoberta desafiando o sol sem chapéu, basta cabeleira de cabelos ondulados castanho-ouro pelas costas do vestido azul.

Marília, nome e cor de mar… que se voltou quando as minhas botas de cavaleiro-aprendiz acordaram a calçada, que se virou e derreteu sobre mim um olhar azul gigante, tão grande quanto o lago me pareceu. Tão grande quanto o meu desejo de mergulhar nele e de ficar quieto naquele Alentejo fugidio, a caminho de Angola.

Marília que voltei a encontrar nas esplanadas da noite, com quem acertei conversas intermináveis, nas quais nos fomos descobrindo.

Marília que beijei sob o arco das casas da bateria, um recanto fresco junto à Ermida do Santo Cristo, numa manhã de sábado, quando a apanhei de cesto no braço, a caminho do mercado. Ofereci-lhe uma bilha pequena de barro local, decorada com pedrinhas brancas em forma de coração.

Marília, eu vou-me embora, deixa-me escrever-te. Quero roubar-te uma morada e um beijo. Quero levar-te nesse beijo e guardar o seu calor, na memória do teu azul e do teu-meu Alentejo. Levo-te na memória, para em África não me sentir tão só, para que uma carta me acenda a centelha, para que tu te lembres de mim e eu de ti… na bilha, na água no lago e no beijo debaixo do arco.

Levo um beijo de despedida ou talvez mais de partida, um beijo de bagagem, que me dê alimento e alento, que me acompanhe no medo das emboscadas ou na solidão do mato.
Porque o teu beijo sabia a vida e a esperança, era a prova de que a guerra não era um fim, mas uma passagem para a vida adiante. Havia tanto para viver, tanto mar, tanto amor, tanta coisa que ainda desconhecia, eu que vinha de uma juventude triste e escura. Havia tanta liberdade na África anunciada, tanto aconchego no olhar azul desta manhã, que seria a primeira de um mundo-mulher, o prenúncio e a prova de que valia a pena viver, para voltar a sentir a emoção de um pèzinho de molho no Gadanha e de um beijo debaixo do arco....

terça-feira, 2 de outubro de 2018

Noite




O mundo é feito de surpresas. É isso que nos dá a cor dos dias ... ou das noites, quando é aí que o melhor da vida ocorre.
A noite é infinita, espaço de liberdade sem horas... sem fim à vista ou então ele fica tão longe que esse tempo parece infindável.
À noite é minha, sou eu que mando nela, faço o que quero . Às vezes quero dormir mas não consigo. Porque carregar no interruptor para desligar a mente não é o mesmo que apagar a luz. A mente foge e comanda. Tem mais força que o dono, que corpo cansado ou que o bom senso que nos diz: Dorme!
É tão mal empregue o tempo de dormir, quando há tanto para aprender, viver e sonhar pela noite dentro. Tanto que fazer... e tanta paz e liberdade para o concretizar como melhor aprouver.
Pode-se ler poesia ou escrever disparates, limpar a casa de banho ou espreitar o facebook.
E também amar, pensar com bondade em quem nos quer bem e pensar o que fazer para dar aos outros um pouco de mim... e pode-se ainda esgravatar nos recursos da imaginação tentando saber como ter compaixão/entendimento por quem nos faz mal.
Julgo que ninguém me quer verdadeiramente mal... simplesmente há quem me ignore ou tenha inveja ou me despreze. Não sei se isso acontece por egoísmo... ou por medo.
Lucidamente pensando, acho que ninguém me odeia, mas há quem gostasse de me ver noutro lugar, noutro espaço de vida e de afectos. Atrapalho, pronto! Estou a mais! Se me pudessem varrer, haveria por aí umas vassouras jeitosas. De todo o tipo: profissionais; concorrenciais e até afetivas. 
Atrapalho, pronto! 
Todos nós atrapalhamos alguém. Estamos sempre a meio de um caminho em choque com alguém. Por isso, há que saber manobrar as coisas, gerir o trânsito com arte, como se a vida fosse um bailado complexo, um equilíbrio de dança em pontas, arriscado cair e tropeçar no parceiro. 
Tentarei ser leve e flutuar sobre o corpo de baile, num papel difícil de prima ballerina invejada e admirada .
Enquanto durar o momento de glória, há que dançar sem pisar ninguém, respeitar e ter bondade para quem dança connosco.
Dançar com alegria e liberdade mesmo que o mestre-de-cerimónias nos tente tirar do enredo, nos transfira para o bas-fond, nos humilhe e deseje um desfecho infeliz, um fim... qualquer ...




segunda-feira, 10 de setembro de 2018

A Bruxa



É tão injusto ser igualada àquela bruxa, quanto é certo de que eu também o sou.

Mas sou diferente! Sou uma bruxinha boa, honesta q.b.
Devo confessar que só não sou uma bruxa pior, por falta de conhecimentos e de recursos. Resumindo, sou incompetente, analfabeta, não domino os manuais de bruxedos, nem conheço receitas de venenos, amarrações, vudus, maus-olhados e outras mezinhas para tentar os meus propósitos. 
Quanto ao uso de métodos mais modernos de violação de correspondência ou de intimidade, estão completamente fora dos meus princípios. Sou incapaz de abrir cartas ou mails de outrém ou de escutar telefonemas atrás das portas. Não por falta de oportunidades, mas por pudor. A minha curiosidade - que é bastante - só actua no domínio da informação que é pública. Não violo fontes informativas, mas se puder usufruir daquilo que se publica por aí... 
Sou curiosa, mas não intrusiva!
No entanto, mesmo neste domínio, por uma questão de defesa pessoal, não leio as publicações que sei que me podem magoar.

A chantagem - método preferido por políticos, gestores e manipuladores de vária ordem - é também o que a bruxa velha mais usa (usou) e ela é exímia nessa arte.

Apesar da minha falta de jeito, tenho propósitos. Ao menos isso, sei o que quero!
Quanto à velha, quero que arda na fogueira que ateou... que fique longe e em cinzas e deixe o mundo correr... para isso bastaria (se fosse fácil) pôr um pouco de antídoto de veneno na caneta!

Em relação ao resto, o que gostaria era neutralizar os feitiços que as bruxas circundantes andam a deixar por aí. Ou talvez não andem, mas eu imagino. 
Tenho objetivos, o problema é que não faço nenhuma maldade para os atingir, não deixo feitiços, nem faço macumbas, não lhes prego rasteiras, nem lanço calúnias ou falsas informações, não ameaço, nem interfiro com a intimidade alheia. 
Se mentalmente lhes rogo pragas, sei que isso de nada vale...
Na prática, elas andam à solta e fazem o que querem... resta-me sofrer em silêncio e ter um medo inconsciente do que possa  vir a acontecer. Piso um terreno minado e não sei onde está a mina para poder contornar o perigo.

Conheço bem o tipo de minas que estão enterradas, só não sei onde e quando podem disparar. As marcas e modelos de minas mais assustadoras são uma chave, uma panela e uma mesa para jantar.
E a mina "amigas e conhecidos" também é terrível, quando bem usada, tal como a mina "já agora só mais um"!
As minas-cama estão bem identificadas, fez-se o reconhecimento do terreno e é fácil saber onde pisar. Não explodem!
O mesmo se passa com a mina-passeio. Também não me assusta. Em regra, estas minas estão colocadas longe do terreno habitual e não incomodam, desde que se vislumbrem ao largo.
Ainda sobram as minas de explosão ao retardador, que podem ficar latentes muitos anos e só acender a faísca mais tarde - são a mina-palheta social, a mina-vestidos, a mina-princesa boazona e, lá mais para diante, a mina-enfermeira.

A mina-chantagem psicológica funciona para qualquer uma e é a pior de todas, tipo bomba atómica, esperemos que não seja acionada. Porque quando resulta, resulta mesmo!

O resto não interessa nada - pequenas queimaduras resultantes da detonação de artefactos ligeiros, como sapatos e chapéus, escovas e gracinhas azuis ou até alterações ao algoritmo. Sendo que estas últimas só provocam algum dano se forem feitas com objetivos ilegitimos...






quinta-feira, 6 de setembro de 2018

O Inho


Era uma vez um pequeno reguila que tinha, por seu, o nome do seu pai, a que acrescentaram um “inho” para o distinguir e lhe dar um ar de graça.
Pois o Inho até era bem engraçado, sorridente, maroto e de certa forma bastante independente. Era um querido! Apesar de atrevido quando a ocasião se animava, era muito carinhoso e carente de mimos, gostava de aconchego, pequenos toques, boas massagens, muita pele, calor e beijos. Era um miúdo de mimos, de rotinas calmas até lhe subir a vontade de brincar fora de casa. Quando estava na rua, era bem comportado, divertido mas sério, competente nos jogos mais comuns. Rapaz pouco dado a subir às árvores, não era de aventuras arriscadas e o circo não lhe dizia muito. Preferia jogar à bola no terreiro de casa. Nada de experimentar novos domínios, como brincar numa praia deserta, no alto de uma montanha, na relva selvagem de uma paisagem diferente... passear por ruínas arqueológicas ou procurar menhires. Tudo isto era trocado pelo conforto d'alcova, talvez por sestas de balancé, um pouco mais desconfortáveis mas embaladoras de brincadeiras, gostava de lugares fofos e protegidos. Sempre era mais calmo do que aventurar-se em desnorteios no automóvel do pai, como via outros fazer.
O miúdo crescia, quando se animava e o pai sorria, orgulhoso e feliz.
Dizia que o Inho tinha vontade própria e ele não tinha mão nele. Dizia-o com graça, sentindo um secreto prazer pela irresponsabilidade que tal constatação lhe trazia. Ele era ele, o Inho um estranho ser independente, cujo desgoverno lhe fugia ao controlo mas lhe dava um gozo imenso. Que não lhe exigissem desculpas, porque ele, o pai, não tinha nada com isso. 
O tipo era parvo, não pensava, era insensível, tinha manias? ... Pois, paciência. Temos pena! - dizia ele, sorrindo. 
Quem quer gosta, quem não gosta que se amanhe e miúdos destes, mais ou menos parvos, é o que mais há por aí. 
Quando o Inho fazia das suas, com ou sem o agrado dos parceiros de jogos, o pai divertia-se a ver... como se tudo lhe passasse ao largo... e relaxava.
Relaxava, com alegria e orgulho por ver o seu Inho brincando ao relento, em juventude e vigor, fora do seu controle mas dando-lhe tanto prazer. Relaxava, fechava os olhos e pensava - onde será que este miúdo me leva, é giro, saudável...
Vai por aí, rolando, saltando, cada vez mais longe e atrevido, subindo, subindo bem alto e crescendo um pouco torto, meio empenado. Sim, agora que pensava nisso, o miúdo sempre foi um pouco curvado para a esquerda (ou seria para a direita?), acidentes do crescimento, perfeitinho mas diferente dos outros rapazes. Engraçado que quando corria, fazia desporto e subia por montes e vales, a curvatura não se notava, era escorreito e sádio. 
A beleza está nos pequenos defeitos, lá diria Agustina. A beleza pura queima e repele, é preciso um toque de tragédia e de diferença para que se note o milagre da perfeição (Ema cocheava... o Inho entortava ligeiramente nas subidas, para chegar em esplendor ao topo).
Havia uma certa dose de irresponsabilidade na forma como o pai olhava para estas atitudes desbragadas e marotas do pequeno. No fundo, o pai sabia de tudo, mesmo de olhos fechados, e saboreava a glória do seu rebento, perdoando eventuais malandrices, desvios da norma ou simples desaforo na brincadeira e no respeito pelos amigos em jogo. Deixava-o brincar à vontade, sabendo que por vezes aquilo não era muito certo, mas o pequeno também tinha direito a divertir-se e era um ser independente. Afinal não era nada com ele, achava muito bem que o rapaz gozasse a vida, tinha orgulho naquilo que o seu Inho fazia, mesmo sem a sua autorização e sem a sua companhia, recusando deliberadamente o envolvimento e a parceria que seriam naturais entre dois seres tão próximos. 
O afastamento emocional entre os dois, sobretudo nas fases críticas de crescimento ou de maior perturbação, era uma forma de proteção pessoal.  Ele tentava manter a fria independência dos sentidos e o pequeno poderia vir a ser uma fonte mais quente de contaminação sentimental. Não se importava nada que o Inho fosse seduzido, desencaminhado por outros de fora. Para ele, em princípio, não havia más companhias confiava que o Inho sabia fazer as suas escolhas e, apesar de serem muitos os amigos de jogo e estarem sempre a mudar, ele se sairia bem. Importante era o rapaz não ficar em casa, aborrecido e parado. Ora se havia ocupação a dar-lhe, porque não fazer-lhe a vontade e deixar o Inho crescer, ir por aí na brincadeira até se cansar.
Afinal ele não tinha nada com isso, o Inho crescera e fugira ao seu controlo, tinha vontade própria e os amigos puxavam por ele... Deixá-lo ir e que se divertisse muito.
O pai não pensava que o diabo, por vezes, está à espreita e que um bom rapaz como o Inho corria alguns riscos, nessa fuga desenfreada na busca de crescer mais e mais depressa, correndo por aí e por ali, em brincadeiras inocentes é certo, sem grande riscos ou malabarisnos. Porque o Inho continuava calminho e conservador nas suas práticas desportivas, mas os seus amigos eram mais sabidos e gostavam de lhe pregar rasteiras.
Sabendo do gosto do miúdo pela alegria, pela companhia, pelos passeios em amizade, os outros abusavam. 
O diabo à espreita estendia a sua teia. O pai vislumbrava por vezes algo de suspeito, mas era pouco dado a matar a aranha, preferia limpar/esconder a teia, como quem mete o lixo debaixo do tapete para que as visitas não vejam. Era um pouco lerdo em cortar a origem do mal. Não acreditava em bruxas, nem no diabo, nem em esquemas que tentassem o seu Inho e o levassem à prisão. 
Deixa andar - dizia - o miúdo tem de se divertir e não seriam umas quantas mezinhas diabólicas disfarçadas de aroma de alfazema ou as chaves de uma gaiola dourada que o iriam assustar. O importante era não se deixar envolver na vida do Inho, este até se podia apaixonar, que isso é doença que não se pega a outrém. Os inhos são jovens e isso passa...
Era sabido que o Inho era mais romântico e apaixonado do que ele. Ele não era de se envolver sentimentalmente de forma muito séria, mantinha a distância fria necessária à sua independência. O Inho gostava mais das pequenas, do que ele alguma vez gostou de alguém. 

Até que um dia, o miúdo desapareceu, as flores que protegiam o seu sono murcharam e a chave perdida do palácio estontearam o pai, que nunca mais encontrou o seu pequeno. Acordou de um sono sem cheiro e numa cama sem luz e então percebeu que o seu miúdo estava preso, vítima de um crime não cometido, apenas refém da ingenuidade de quem brinca na rua sem cuidar das bruxas e acha que a vida é um jogo de futebol eternamente grátis. 
Talvez, nesse dia, o pai tenha percebido a falta de não ter mantido o coração e a cabeça junto do seu Inho. Porque cada um de nós é um todo, o equilíbrio interior fundamental vem de uma geometria feliz que liga o corpo ao espírito, os afetos às ações, as palavras aos pensamentos.
Acordou triste e num lugar escuro, preso a uma liberdade que não era a sua.
Porque não brincou ao seu lado, quando devia?Porque se perdeu o afeto? O amor começa em nós e nos nossos filhos, demasiado afastamento dá desligamento. O mundo é um lugar perigoso onde os laços se tornam nós, algumas amarrações são lixadas e a solidão espreita a velhice. 
Talvez por isso, o dito mais o seu inho devessem ter acautelado uma parceria mais íntima, uma amizade total: lúdica, feliz, mas coesa e próxima, cuidando do elo, porque ambos são partes de um mesmo todo ... 


Para que os laços não se transformem em nós demasiado apertados, para que não acordemos numa prisão que não escolhemos, para que não se percam os laços, os inhos, os amigos dos inhos e tudo aquilo por que vale a pena viver.

E perderam-se os nós e os laços...

E perdeu-se o inho, os cheiros, os doces, as palavras doces e amargas, as mil marcas de vida em comum, as chaves douradas, as portas e as casas, as camas das casas e as entradas do paraíso, as escovas de cabelo e de dentes, os chapéus e os sapatos, as viagens e a música, os amigos e os beijos, as declarações de amor (verdadeiro ou falso) e, ainda, o espelho de tudo isto na comunidade em redor... 
E o inho ficou triste e longe do seu pai. E o pai sem nada... sem nada porque se perdeu a parte pelo todo...

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Penumbra


E de repente, da luz se fez escuro. 
Os dias luminosos e quentes resvalaram para um espaço pairante de indefinição: sem cor, sem ar, sem nada de palpável ou de verdadeiro, que não é dia nem é noite, que não é Verão nem Inverno.
E assim, depois do esplendor, caí num espaço obscuro e amorfo, de penumbra, de vazio...
Um lugar que não interessa nada, que não serve para nada, onde não há sentimentos, emoções... ou vida "humana". Um lugar branco sujo, sem cor... sem alma, sem gente...

Este lugar de penumbra, a que chamariam de trabalho, hoje está longe de me lembrar atividade. Porque trabalho foi quase sempre algo de motivador e criativo, que nos torna "maiores", que nos enche os dias de luz, apesar das contrariedades que comporta, das responsabilidades, das decisções que é preciso tomar, das pessoas e seus defeitos que é preciso contornar. Apesar da guerra que é o trabalho, este é (ou era) um lugar colorido... a selva onde sobrevivi com vigor e algum jeito. Um lugar contraditório e animado, onde me podia sentir mais ou menos feliz, reconhecida ou esquecida, mal-querida ou apreciada, irritável, irritada mas também acarinhada, felicitada, peixe na água transparente ou até turva, lugar de conforto e de fuga pessoal. Mesmo quando trôpega, caminhava a direito e o trabalho raramente foi uma penumbra de sombra ou de indiferença.
Hoje é só névoa o que eu vejo! 
Talvez porque ainda não abri os olhos, ofuscada pela intensidade dos dias radiosos de sol que deixei para trás, não há muito.
Como é difícil, chocante, gritante notar a diferença entre o brilho solar que eu vivi e a penumbra que me entrou nos ossos mal cheguei. 
Não é escuro, nem vazio... é pior - é nada!
Irrevogavelmente nada, porque nada me prende aqui. Irrevogavelmente perdido este tempo e este espaço sem alma.
Habitado por zombies que nada me dizem, que não me amam, que não se deixam amar...
Lugar onde a noção de inutilidade é maior do que o mar e que está coberto por uma penumbra que limita o horizonte e não deixa ver o que realmente importa - as pessoas na sua roda de vida, de afectos, de sobrevivência, felizes porque não? Todos temos de tentar ser felizes enquanto por cá andarmos, saboreando com lágrimas ou sorrisos o que nos é dado em sorte - saúde, afectos, inteligência/clarividência e conforto - porque sabemos que tudo isto será sempre pouco e por pouco tempo. 
Por isso temos a "obrigação" de gozar bem, de beber tudo o que a vida nos dá, até à última gota, exatamente porque pode ser a última...
Resta-nos o sonho para fugir, por momentos, ao massacre da penumbra. Porque no sonho há futuro, há hipóteses teóricas, utópicas mas doces de voltar a ver o sol.
No sonho, cabe tudo aquilo que decidirmos ter, mesmo que nada tenhamos de real. No sonho se pode ancorar o ânimo para furar o nevoeiro e procurar outra aldeia para lá dos montes, outro país, quiça uma ilha para lá do mar, naquela franja pálida e nevoenta que separa o que sentimos agora, daquilo que nos espera lá mais à frente - um dia de sol ou uma noite de luar.
Se esse dia bom estiver longe, há que gozar o caminho, não parar nem ficar comoda e indolentemente quieta atrás do nevoeiro, à espera... 
O "prazer da espera", porque muito que doa ao Padre Tolentino que tão bem caracterizou este prazer, só é prazeiroso se houver outro alguém do lado de lá da penumbra, se houver quem nos espere com o mesmo prazer que o nosso, se houver alguém que nos entenda com o coração, mesmo que racionalmente nos chame de tonta, incompreensível, irracional ou louca.
E esse alguém - que também pode ser um bicho ou uma causa - é quem puxa por nós, nos resgata da penumbra e nos leva para o sol estonteante de uma planície em brasa, para um comboio ou avião pleno de promessas de aventura ou para uma noite de luar ou de estrelas que nos embale o amor.

Por favor, tirem-me daqui! Não quero morrer na penumbra, eu sou solar! Faço um esforço e abro bem os olhos para não adormecer nesta penumbra moribunda. Quero viver, nem que seja em time-sharing, por pouco que seja, mas com sol, com sol todos os dias,  nos dias de qualquer cor, nas noites de estrelas ou de luar, até quando chove e faz frio, quero sol dentro de mim... quero tudo menos o vazio embruxado da penumbra que desceu e resiste em partir. Vai horizonte vai e traz-me a alegria do que é vivo. Traz-me tudo menos o nada!

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Irritação


Não sei se Irritação é um sentimento ou uma emoção. O que sei é que sou acometida muitas vezes, por demasiadas vezes por esta doença aguda.
Espero que não se transforme em doença crônica, porque seria insuportável viver permanentemente debaixo da tensão que a irrritação comporta. É de um enorme desgaste físico e para alguém se libertar dela pode recorrer a excessos. Atirar com objetos com força, com raiva, com violência, partir, fazer barulho, estilhaçar o que estiver a jeito. Bater com as portas sempre é melhor do que bater em alguém, mas subsituir a raiva por álcool, por medicamentos calmanentes ou qualquer outra atividade que cria “adição” já não é. Pode parecer inofensivo ter pequenas irritações, mas de facto não é vida manter este estado de coisas para sempre.
Irritação é quase sempre uma guerra de nós, connosco mesmo.
Pode haver um factor externo que a provoca, no entanto ela é sobretudo uma construção mental...
Os fantasmas... sempre os fantasmas, o medo do futuro, a insegurança, a falta de afectos para alimentar, de amores para regar...
Irritar por uma causa desconhecida, eventualmente vindoura é sofrer por antecipação. É estupido !
No entanto, o que fazer quando a irritação disfarçada de angústia chega de mansinho?
Como fugir?
Só vivendo o momento presente... com paz e alegria.
Porque no presente, eu tenho o mar, o sol, uma boa companhia, liberdade, saúde... enfim tudo aquilo que deveria ser suficiente para curar a irritação.

terça-feira, 31 de julho de 2018

Mar

Canção

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.
Cecília Meireles

segunda-feira, 23 de julho de 2018

No Teu Deserto


Caminho por terreno minado, no teu deserto.

Sei que, se for por aí, terei de saltitar, correr rápido ou até talvez mesmo voar.
Não é chão seguro, nem estrada linear.

É um lugar para se estar e passar. Por isso, há que ser leve. Pisar o solo levemente, tão levemente que a poeira não surja… que os pássaros não acordem, nem desatinem os cães. Como se fosse noite e todos dormissem.

Serei tão discreta e leve que ninguém me verá, mesmo que me falem, me olhem e continuem as suas vidas.

Também pouco me importaria que me vissem ou se rissem.

Passarei sem deixar rasto… sem mostrar que estou, porque não estou!

Para que as entranhas da terra não sintam a minha existência na tua vida, para que os alarmes não disparem e as minas rebentem.

Porque sei que o chão está minado e eu a vítima-objeto, pronta a saltar, qual estilhaço a quebrar.

Definitivamente para quebrar… desistir e não voltar.

Sei que só eu me posso salvar, mas para isso terei de flutuar, deixar que o vento me transporte no ar… Sem amarras, nem sentimentos, no ar…apenas no ar…






sábado, 21 de julho de 2018

Cais do Sodré


Palavras soltas no Cais do Sodré




William, um jovem turista inglês, descia apressado e ligeiro a rua do Alecrim, feliz dos pés, feliz da vida.
Ficara alojado num hostel chamado “O Cantinho do Prazer”, nome que nada lhe disse quando chegou, mas que muito o divertiu quando pediu a tradução.
Pensou que tinha chegado a um lugar especial, a uma cidade especial, onde o prazer e a alegria se misturavam com o sol e com o rio, que estavam ali para o fazer feliz.
Tudo era expressão desse sentir. Até a barbearia onde barbas modernaças eram a paradas com elegância, lhe sussurrou baixinho ao passar: “Life is too short for a bad haircut”.
Não fora a fome que já picava, talvez se atrevesse a entrar. Preferiu continuar na busca de alimento e ficou na dúvida sobre o que escolher, os menús estavam escritos em inglês (simpáticos, estes portugueses!) mas, por vezes, incompreensíveis ao paladar britânico. Broken Eggs seria algo de recomendável? E acompanhado de uma Bigfana, como seria?...um desafio, pela certa.
Iria experimentar – pensou: O quanto se adia se perde.
Vamos lá embora – disse para si – hoje, nada lhe partiria a alegria, nem mesmo um broken egg!

(exercício de escrita criativa : escrever um texto que usasse obrigatoriamente as frase: palavras distribuídas à sorte e acima sublinhadas)

quinta-feira, 12 de julho de 2018

Mercado da Ribeira



Uma luz difusa, sobre móveis escuros e pessoas de tons diversos, surpreende quem ainda vem da rua com uma réstia de sol no olhar.
Rapidamente se fica submerso naquele mundo diferente, amálgama de diferentes cheiros, que cada banca oferece, babilónia de vozes sobrepostas ao tilintar da loiça e à música ambiente… indistinta!
Miúdas, todas lindas, todas jovens, pernas ao léu, muitos ténis, muitas sandálias…
Um grupo de “ginjas” faz circular a garrafa de tinto, que desaparece rapidamente nas gargantas, à mesma velocidade com que sobe o tom das gargalhadas.
Cheira a alho, a cebola frita, a refogado bem português, apesar de sob o meu olhar só existirem pratos com restos de pizza, certamente sem sabor nem cheiro.
O velho e querido hambúrguer parece atrair o turista menos afoito a provar petiscos desconhecidos.
Quanto ao vinho, não parecem ser esquisitos, provam de tudo, partem do princípio seguro de que é bom: branco, tinto, sangrias coloridas de frutos. Bebidas que os fazem rir e tocar, distorcendo os corpos nos bancos altos, quase caindo sobre o parceiro mais próximo.
Cevicherie, local vazio, peixe crú não atrai cliente, mas cheirava tão bem… que incongruência! Deve ser dos acompanhamentos, hum… provei pipocas de porco, picantes e boas. Tudo apetece, mas não posso ficar.
Lá fora dança-se e a música puxou por mim. Não é bem um jardim, mas um quadrado de loucura saudável, ponteado de relva, tem um parque infantil e é um local de devaneios e copos. O DJ abana-se ao som da música “disco”, enquanto uma criança desliza no escorrega, indiferente ao som.
Cachorros, pertença de um grupo de “alternativos”, cabelos com rastas e trapos a condizer, são afagados por dois brasileiros de São Paulo, felizes por abraçar a pseudo-jornalista que sou eu, que apenas queria saber porque não dançavam. Dizem que o mundo aqui é igual ao Brasil, todos se querem divertir, ninguém liga aos problemas do mundo, ao que é importante e grave para a humanidade. Somos iguais! – dizem. Replico que a segurança e o à-vontade vivido naquele pequeno quadrado de loucura talvez não seja possível em São Paulo. Procuram fazer amigos, já conheceram muita gente nova – é o que querem, estão eufóricos cm o ambiente: viver o prazer, amar os animais, viver a música e os copos.
Aquilo que me parecia um lugar de feliz descontração – um pouco caótica e plurifacetada – um divertimento a que todos temos direito, de repente parece-me uma futilidade.
Há guerras e desventuras, mas acredito que naquele grupo de jovens sentados no chão, sem conforto mas com a alegria das cervejas em copos de plástico e comezainas de aspeto duvidoso, poderá haver um cientista, um génio ou apenas um bom coração capaz de salvar o mundo.
Sorrio à felicidade dos outros, porque só gente feliz pode fazer algo de bom, por si e pelos outros.