quinta-feira, 6 de setembro de 2018

O Inho


Era uma vez um pequeno reguila que tinha, por seu, o nome do seu pai, a que acrescentaram um “inho” para o distinguir e lhe dar um ar de graça.
Pois o Inho até era bem engraçado, sorridente, maroto e de certa forma bastante independente. Era um querido! Apesar de atrevido quando a ocasião se animava, era muito carinhoso e carente de mimos, gostava de aconchego, pequenos toques, boas massagens, muita pele, calor e beijos. Era um miúdo de mimos, de rotinas calmas até lhe subir a vontade de brincar fora de casa. Quando estava na rua, era bem comportado, divertido mas sério, competente nos jogos mais comuns. Rapaz pouco dado a subir às árvores, não era de aventuras arriscadas e o circo não lhe dizia muito. Preferia jogar à bola no terreiro de casa. Nada de experimentar novos domínios, como brincar numa praia deserta, no alto de uma montanha, na relva selvagem de uma paisagem diferente... passear por ruínas arqueológicas ou procurar menhires. Tudo isto era trocado pelo conforto d'alcova, talvez por sestas de balancé, um pouco mais desconfortáveis mas embaladoras de brincadeiras, gostava de lugares fofos e protegidos. Sempre era mais calmo do que aventurar-se em desnorteios no automóvel do pai, como via outros fazer.
O miúdo crescia, quando se animava e o pai sorria, orgulhoso e feliz.
Dizia que o Inho tinha vontade própria e ele não tinha mão nele. Dizia-o com graça, sentindo um secreto prazer pela irresponsabilidade que tal constatação lhe trazia. Ele era ele, o Inho um estranho ser independente, cujo desgoverno lhe fugia ao controlo mas lhe dava um gozo imenso. Que não lhe exigissem desculpas, porque ele, o pai, não tinha nada com isso. 
O tipo era parvo, não pensava, era insensível, tinha manias? ... Pois, paciência. Temos pena! - dizia ele, sorrindo. 
Quem quer gosta, quem não gosta que se amanhe e miúdos destes, mais ou menos parvos, é o que mais há por aí. 
Quando o Inho fazia das suas, com ou sem o agrado dos parceiros de jogos, o pai divertia-se a ver... como se tudo lhe passasse ao largo... e relaxava.
Relaxava, com alegria e orgulho por ver o seu Inho brincando ao relento, em juventude e vigor, fora do seu controle mas dando-lhe tanto prazer. Relaxava, fechava os olhos e pensava - onde será que este miúdo me leva, é giro, saudável...
Vai por aí, rolando, saltando, cada vez mais longe e atrevido, subindo, subindo bem alto e crescendo um pouco torto, meio empenado. Sim, agora que pensava nisso, o miúdo sempre foi um pouco curvado para a esquerda (ou seria para a direita?), acidentes do crescimento, perfeitinho mas diferente dos outros rapazes. Engraçado que quando corria, fazia desporto e subia por montes e vales, a curvatura não se notava, era escorreito e sádio. 
A beleza está nos pequenos defeitos, lá diria Agustina. A beleza pura queima e repele, é preciso um toque de tragédia e de diferença para que se note o milagre da perfeição (Ema cocheava... o Inho entortava ligeiramente nas subidas, para chegar em esplendor ao topo).
Havia uma certa dose de irresponsabilidade na forma como o pai olhava para estas atitudes desbragadas e marotas do pequeno. No fundo, o pai sabia de tudo, mesmo de olhos fechados, e saboreava a glória do seu rebento, perdoando eventuais malandrices, desvios da norma ou simples desaforo na brincadeira e no respeito pelos amigos em jogo. Deixava-o brincar à vontade, sabendo que por vezes aquilo não era muito certo, mas o pequeno também tinha direito a divertir-se e era um ser independente. Afinal não era nada com ele, achava muito bem que o rapaz gozasse a vida, tinha orgulho naquilo que o seu Inho fazia, mesmo sem a sua autorização e sem a sua companhia, recusando deliberadamente o envolvimento e a parceria que seriam naturais entre dois seres tão próximos. 
O afastamento emocional entre os dois, sobretudo nas fases críticas de crescimento ou de maior perturbação, era uma forma de proteção pessoal.  Ele tentava manter a fria independência dos sentidos e o pequeno poderia vir a ser uma fonte mais quente de contaminação sentimental. Não se importava nada que o Inho fosse seduzido, desencaminhado por outros de fora. Para ele, em princípio, não havia más companhias confiava que o Inho sabia fazer as suas escolhas e, apesar de serem muitos os amigos de jogo e estarem sempre a mudar, ele se sairia bem. Importante era o rapaz não ficar em casa, aborrecido e parado. Ora se havia ocupação a dar-lhe, porque não fazer-lhe a vontade e deixar o Inho crescer, ir por aí na brincadeira até se cansar.
Afinal ele não tinha nada com isso, o Inho crescera e fugira ao seu controlo, tinha vontade própria e os amigos puxavam por ele... Deixá-lo ir e que se divertisse muito.
O pai não pensava que o diabo, por vezes, está à espreita e que um bom rapaz como o Inho corria alguns riscos, nessa fuga desenfreada na busca de crescer mais e mais depressa, correndo por aí e por ali, em brincadeiras inocentes é certo, sem grande riscos ou malabarisnos. Porque o Inho continuava calminho e conservador nas suas práticas desportivas, mas os seus amigos eram mais sabidos e gostavam de lhe pregar rasteiras.
Sabendo do gosto do miúdo pela alegria, pela companhia, pelos passeios em amizade, os outros abusavam. 
O diabo à espreita estendia a sua teia. O pai vislumbrava por vezes algo de suspeito, mas era pouco dado a matar a aranha, preferia limpar/esconder a teia, como quem mete o lixo debaixo do tapete para que as visitas não vejam. Era um pouco lerdo em cortar a origem do mal. Não acreditava em bruxas, nem no diabo, nem em esquemas que tentassem o seu Inho e o levassem à prisão. 
Deixa andar - dizia - o miúdo tem de se divertir e não seriam umas quantas mezinhas diabólicas disfarçadas de aroma de alfazema ou as chaves de uma gaiola dourada que o iriam assustar. O importante era não se deixar envolver na vida do Inho, este até se podia apaixonar, que isso é doença que não se pega a outrém. Os inhos são jovens e isso passa...
Era sabido que o Inho era mais romântico e apaixonado do que ele. Ele não era de se envolver sentimentalmente de forma muito séria, mantinha a distância fria necessária à sua independência. O Inho gostava mais das pequenas, do que ele alguma vez gostou de alguém. 

Até que um dia, o miúdo desapareceu, as flores que protegiam o seu sono murcharam e a chave perdida do palácio estontearam o pai, que nunca mais encontrou o seu pequeno. Acordou de um sono sem cheiro e numa cama sem luz e então percebeu que o seu miúdo estava preso, vítima de um crime não cometido, apenas refém da ingenuidade de quem brinca na rua sem cuidar das bruxas e acha que a vida é um jogo de futebol eternamente grátis. 
Talvez, nesse dia, o pai tenha percebido a falta de não ter mantido o coração e a cabeça junto do seu Inho. Porque cada um de nós é um todo, o equilíbrio interior fundamental vem de uma geometria feliz que liga o corpo ao espírito, os afetos às ações, as palavras aos pensamentos.
Acordou triste e num lugar escuro, preso a uma liberdade que não era a sua.
Porque não brincou ao seu lado, quando devia?Porque se perdeu o afeto? O amor começa em nós e nos nossos filhos, demasiado afastamento dá desligamento. O mundo é um lugar perigoso onde os laços se tornam nós, algumas amarrações são lixadas e a solidão espreita a velhice. 
Talvez por isso, o dito mais o seu inho devessem ter acautelado uma parceria mais íntima, uma amizade total: lúdica, feliz, mas coesa e próxima, cuidando do elo, porque ambos são partes de um mesmo todo ... 


Para que os laços não se transformem em nós demasiado apertados, para que não acordemos numa prisão que não escolhemos, para que não se percam os laços, os inhos, os amigos dos inhos e tudo aquilo por que vale a pena viver.

E perderam-se os nós e os laços...

E perdeu-se o inho, os cheiros, os doces, as palavras doces e amargas, as mil marcas de vida em comum, as chaves douradas, as portas e as casas, as camas das casas e as entradas do paraíso, as escovas de cabelo e de dentes, os chapéus e os sapatos, as viagens e a música, os amigos e os beijos, as declarações de amor (verdadeiro ou falso) e, ainda, o espelho de tudo isto na comunidade em redor... 
E o inho ficou triste e longe do seu pai. E o pai sem nada... sem nada porque se perdeu a parte pelo todo...

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