segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Penumbra


E de repente, da luz se fez escuro. 
Os dias luminosos e quentes resvalaram para um espaço pairante de indefinição: sem cor, sem ar, sem nada de palpável ou de verdadeiro, que não é dia nem é noite, que não é Verão nem Inverno.
E assim, depois do esplendor, caí num espaço obscuro e amorfo, de penumbra, de vazio...
Um lugar que não interessa nada, que não serve para nada, onde não há sentimentos, emoções... ou vida "humana". Um lugar branco sujo, sem cor... sem alma, sem gente...

Este lugar de penumbra, a que chamariam de trabalho, hoje está longe de me lembrar atividade. Porque trabalho foi quase sempre algo de motivador e criativo, que nos torna "maiores", que nos enche os dias de luz, apesar das contrariedades que comporta, das responsabilidades, das decisções que é preciso tomar, das pessoas e seus defeitos que é preciso contornar. Apesar da guerra que é o trabalho, este é (ou era) um lugar colorido... a selva onde sobrevivi com vigor e algum jeito. Um lugar contraditório e animado, onde me podia sentir mais ou menos feliz, reconhecida ou esquecida, mal-querida ou apreciada, irritável, irritada mas também acarinhada, felicitada, peixe na água transparente ou até turva, lugar de conforto e de fuga pessoal. Mesmo quando trôpega, caminhava a direito e o trabalho raramente foi uma penumbra de sombra ou de indiferença.
Hoje é só névoa o que eu vejo! 
Talvez porque ainda não abri os olhos, ofuscada pela intensidade dos dias radiosos de sol que deixei para trás, não há muito.
Como é difícil, chocante, gritante notar a diferença entre o brilho solar que eu vivi e a penumbra que me entrou nos ossos mal cheguei. 
Não é escuro, nem vazio... é pior - é nada!
Irrevogavelmente nada, porque nada me prende aqui. Irrevogavelmente perdido este tempo e este espaço sem alma.
Habitado por zombies que nada me dizem, que não me amam, que não se deixam amar...
Lugar onde a noção de inutilidade é maior do que o mar e que está coberto por uma penumbra que limita o horizonte e não deixa ver o que realmente importa - as pessoas na sua roda de vida, de afectos, de sobrevivência, felizes porque não? Todos temos de tentar ser felizes enquanto por cá andarmos, saboreando com lágrimas ou sorrisos o que nos é dado em sorte - saúde, afectos, inteligência/clarividência e conforto - porque sabemos que tudo isto será sempre pouco e por pouco tempo. 
Por isso temos a "obrigação" de gozar bem, de beber tudo o que a vida nos dá, até à última gota, exatamente porque pode ser a última...
Resta-nos o sonho para fugir, por momentos, ao massacre da penumbra. Porque no sonho há futuro, há hipóteses teóricas, utópicas mas doces de voltar a ver o sol.
No sonho, cabe tudo aquilo que decidirmos ter, mesmo que nada tenhamos de real. No sonho se pode ancorar o ânimo para furar o nevoeiro e procurar outra aldeia para lá dos montes, outro país, quiça uma ilha para lá do mar, naquela franja pálida e nevoenta que separa o que sentimos agora, daquilo que nos espera lá mais à frente - um dia de sol ou uma noite de luar.
Se esse dia bom estiver longe, há que gozar o caminho, não parar nem ficar comoda e indolentemente quieta atrás do nevoeiro, à espera... 
O "prazer da espera", porque muito que doa ao Padre Tolentino que tão bem caracterizou este prazer, só é prazeiroso se houver outro alguém do lado de lá da penumbra, se houver quem nos espere com o mesmo prazer que o nosso, se houver alguém que nos entenda com o coração, mesmo que racionalmente nos chame de tonta, incompreensível, irracional ou louca.
E esse alguém - que também pode ser um bicho ou uma causa - é quem puxa por nós, nos resgata da penumbra e nos leva para o sol estonteante de uma planície em brasa, para um comboio ou avião pleno de promessas de aventura ou para uma noite de luar ou de estrelas que nos embale o amor.

Por favor, tirem-me daqui! Não quero morrer na penumbra, eu sou solar! Faço um esforço e abro bem os olhos para não adormecer nesta penumbra moribunda. Quero viver, nem que seja em time-sharing, por pouco que seja, mas com sol, com sol todos os dias,  nos dias de qualquer cor, nas noites de estrelas ou de luar, até quando chove e faz frio, quero sol dentro de mim... quero tudo menos o vazio embruxado da penumbra que desceu e resiste em partir. Vai horizonte vai e traz-me a alegria do que é vivo. Traz-me tudo menos o nada!

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