domingo, 24 de maio de 2020

Um Amor à Sombra


À sombra?
Como pode uma coisa solar estar à sombra e não estiolar?

Um amor à sombra não é o mesmo que um amor na sombra. Ambos são um pouco tristes, ou talvez não, podem ser apenas a imagem de uma tensão dramática obscura, contra-natura, suavemente clandestina.


Um amor à sombra, aonde ficará essa sombra? Onde se esconde? Debaixo de uma árvore frondosa e fresca, perdido dos olhares dos outros, do bem amado, da censura alheia, do gozo dos descrentes, sim desses, uma grande maioria de homens e mulheres, que não acreditam muito na sua existência. Que nunca viram, nem à sombra nem à luz, essa coisa máxima verdadeiramente demolidora e absorvente que nos leva a alma, o corpo e ocupa todo o espaço que encontrar na mente. Sim, porque durante o período de incubação - o mais grave, se bem que o melhor, o mais forte se bem que transitório - ele espalha-se por todo o lado, ocupa os alveolos mais pequeninos de cada neurónio cerebral e estende-se para fora de nós, até ao espaço exterior envolvente - uma cadeira, uma almofada, uma borda de colcha na cama, um postal de uma viagem de férias, uma flor no jardim, um anúncio a um gelado delicioso, um cheiro a clulé que ficou no chinelo abandonado a um canto, um mail amalucado que foi mandado às 3h da manhã e não apagado no telemóvel, por anos a fio... Tudo sinais exteriores...

Mas esses são os sinais luminosos, não os da sombra.
Um amor à sombra é de que cor? Quase não tem cor e mal se vê, talvez cinzento muito clarinho, ou então é verde-água, o lilás desmaiado também não lhe fica mal... mas é tão esvoaçante e fugidio quanto o vento que abana as folhas na frescura da tarde de Primavera. 


Ou será de uma cor mais escura, colorida pelo tom pardo das folhas que caiem, se for um princípio do Outono ventoso e se este tiver resolvido cobrir-nos de dúvidas e de calmas...

A sombra nem sempre vem da natureza, vem das pedras da cidades, vem das manchas que a alma tece.
Um amor à sombra na cidade: uma senhora madura que já teve melhores dias, grisalha de nariz encostado ao vidro da janela de uma qualquer Madragoa ou Alfama, olhando a rua estreita e vazia, olhando o gato da vizinha da frente, que lhe parece bem mais nobre e bem sucedido do que ela, impertigado no seu posto fronteiro - está ao sol, ao que ainda resta e cai sobre o lado oposto da viela, para ele as sombras da alma nada dizem. A mulher de olhar vazio está na sombra, ali posta talvez por um amor perdido, por alguém esquecido ou simplesmente pelo gajo desaparecido ao seu lado, estirado no sofá da sala, olhando o tecto de sombras e manchas de humidade. 
Na sombra da vida, estes dois. Estes e muitos outros, sei do que falo.

Estar na sombra do amor, como quem o usa manso, devagarinho... para não aborrecer ou acordar o ser amado... que quer sossego e compostura, não quer amor, nem complicações, nem prisões, nem lágrimas, nem paixões, apenas lume brando ... Gisela, a sopa feita em lume brando fica melhor... deixa ferver baixinho... Deixa a panela, não faças barulho, não me peças nada...
E há solidão na sombra, uma solidão desértica por ser um amor simulacro, arraçado de  afecto invisível, interior ... 



E há sombra também no afastamento, nos dias de dúvida, de paradeiro incerto...
Um lago escuro de águas paradas, suavemente ondulante nos dias em que ele sai de barco... um pequeno passeio, o barco é a remos e velho, há que puxar com pouca força para não acordar o monstro que poderá estar adormecido no fundo do lago... todo o cuidado é pouco... Esse é o amor sombra cauteloso, em que um ama e o outro está "à coca", espreitando o que o espera na outra margem... vai remando no silêncio das águas mansas para que mais ninguém ouça, para que não entre mais ninguém a bordo,agora que tem a sua sossegada e contente com o passeio... na sombra.
Sorrateiramente, vai olhando em redor: será que deixei pistas? Será que devia trazer outra para o lago, talvez para ir pescar, de que tanto gosta... desde que seja discreta e não se ria alto, desde que volte para a sua aldeia do outro lado do lago, desde que ele a traga e depois a devolva, sem compromissos, nem ilusões...
Nem sempre é capaz, a sombra é um lugar perigoso, susceptível a tramas e subterfúgios, na sombra tramam-se estratégias, lançam-se feitiços, criam-se expectativas, nada se vê com os olhos. Não obstante, os corações ardentes pegam fogos e lançam armadilhas, que o barqueiro não vê. Porque não vê o amor ou não acredita nele, na sua fantástica fantasia... só vê sombra e paz, só sente silêncio e vazio, enche-se de paz e sossego, conforta-o o amor-sombra, sente-se seguro... Nos dias em que pensa que pode haver verdadeiro afeto escondido por detrás de um amor-sombra, tenta convencer-se de que é inofensivo e que foi confinado a assim permanecer silenciosamente na sombra, sem nada cobrar (apesar de tudo esperar).
Na sombra, na sombra...
Sente-se o fresco e o vazio, sente-se a solidão e desamparo, tem-se medo do abandono... fica-se calmo pela frescura, inquieto pelo futuro, ansioso pela desilusão presente...
Não, a sombra não é um bom lugar para ficar sempre, mas pode ser um bom espaço de paz para reflectir, para descansar.
É tão cansativo estar sempre a viver ao sol, sempre em brasa, sempre a rir, sempre a chorar, sempre a amar com força...
Estar à sombra é estar fora, ou semi-fora, um pé dentro do barco outro na água, quase a cair e a mergulhar, caso o monstro lhe dê para rosnar, caso uma luz apareça a tremeluzir na outra margem, sinal de que um passeio é esperado.
Mas a sombra pode ser uma paragem, para ganhar folego, para continuar a respirar, para amar com calma, para partir com coragem, suavemente, sem grandes roturas... para ir estando molengas... 
Que remédio! O que fazer quando não há sol e o nevoeiro cobre o horizonte? Dormir, parar, pensar...



Um amor à sombra é um bichinho fraco e meio ensonado, é um deixa andar... adormecido e desleixado, é contentar-se com pouco, porque ambicionar muito é demasiado cansativo, ou talvez mesmo impossível, face às circunstâncias. A pobreza é tantas vezes endémica, que por mais que se esforce não se consegue dar a volta por cima. 

Mas entre ter um amor pobrezinho e tímido, por falta de condições... ou estar na sombra vai uma grande distância.

Estar na sombra é desesperante, desgastante ao fim de algum tempo. 

É viver afastado dos outros, da família, dos amigos, da sociedade... como se algum crime houvesse para esconder. Quer seja uma facto verdadeiro, quer seja uma sombrinha chocha, a clandestinidade é difícil de aceitar e de gerir.
Na sombra da clandestinidade, não se é gente, é-se uma espécie de imitação, um teatro, uma personagem falsa que tem de andar fugida.
Tudo sombras, dúvidas e destino imprevistos... como são aliás todos os destinos.




quarta-feira, 20 de maio de 2020

Tanta coisa por fazer



A alegria é o que a esperança nos concede. 

Mas é também o que acontece sem ser esperado.

Demasiada fé na realização dos sonhos não é saudável, porque se corre o risco de se inventar uma fantasia-redoma, que em breve será prisão. 
Já assisti a isso, ao longo da minha longa vida. Gente que sonhou demais e viveu realisticamente de menos. Gente (neste caso só me estou a lembrar de mulheres) que fixaram objetivos a atingir - um casamento, filhos, carreira profissional, casa e vestidos e, sobretudo, um marido "bem-visto" pelas outras e que quando não atingiram esse ideal sonhado, deprimem.

Claro que o conceito de parceiro "bem-visto" é um pouco vago e subjetivo, ela até pode nem ambicionar um marido rico e bonito, bastando-lhe um homem bom, seguro, que dê estabilidade e respeito. O que importa para essas mulheres - umas mais sonhadoras, outras mais determinadas - é o sucesso da sua capacidade de sedução/realização. É demonstrarem, a si e às outras, que foram capazes de atingir enquanto mulheres um estatuto invejável, que não ficaram sós na vida, que foram suficientemente competentes para sacar um homem, de preferência bem visto, que encontraram o conforto dado de bandeja pela sorte. Para a maioria, isso significa casar. Para outras, basta um parceiro... o que, hoje em dia, vale quase o mesmo e até é uma coisa moderna. Há, também, aquelas que optaram por ser solteiras e investir na carreira, e fazem-no conscientemente. Por decisão livre... 
E depois, naturalmente, haverá sempre as mal-amadas - aquelas que sonharam demais e tiveram de menos. Sentem-se azaradas e carentes talvez porque o desejo entrou pelo caminho da ilusão e da fantasia. Imaginaram o mundo ideal: uma vida feliz, um homem modelo, o orgasmo perfeito, o jantar à luz da vela num resort idílico... e correram atrás da aventura, correram e perderam-se atrás da perfeição imaginada, naturalmente com pouco sucesso, porque o Santo Graal não existe. 
Algumas, pelo caminho, cansam-se de correr e aceitam a imperfeição colhida na berma da estrada... sucedâneo capaz de acalmar o desejo de mais e melhor. Essas, as acomodadas, serão talvez mais felizes.

As sonhadoras perseguirão eternamente o inatingível... e sofrem.
São as que inventaram o amor antes de o ter vivido. 

Ora, o amor só se sabe o que é, depois de sentido, em direto e ao vivo. Ler livros e ver filmes, saber a teoria imaginária e fantástica, sem aprendizagem própria, não chega e pode dar mau resultado. Pode-se estar à espera de um milagre e deixar passar ao lado uma situação maravilhosamente boa e real. 

A alegria é o que a esperança nos concede e é muito bom quando essa esperança se realiza...  

Mas quem espera demasiado da vida, corre o risco de ser uma eterna desiludida. E neste grupo existem, pelo menos, dois tipos: as otimistas/esperançadas e as pessimistas/ressabiadas.
Podem parecem diferentes, extremos opostos de postura perante a vida, mas têm muito de comum. 
São mulheres que vivem a perseguir uma ilusão, aventuram-se com alegria nas promessas hipotéticas, embarcam em qualquer barco... sonham, auto-alimentam-se da imagem grandiosa que criaram de si próprias e esquecem-se de viver a vida real.

Para essas, a alegria que a esperança lhes concedeu, pode ser um pedacinho de sonho inventado, uma personagem que representam no seu próprio teatro. E por aí ficam apalermadas e numa espécie de alegria ilusória...
Depois, há as outras, as negativistas, certamente mais infelizes porque ambicionam, não atingem e logo se sentem perdedoras. São mais realistas que as primeiras, mas igualmente desfasadas do seu caminho, do seu tempo neste mundo. 

Porque a vida não é nem cor-de-rosa, nem negra.
Tem muitas cores, tal como as flores.
A vida é o que acontece sem ser esperado.


Se não esperarmos demasiado do destino, se estivermos de coração aberto ao que chega, pode muita coisa boa acontecer.
De nada vale ler o horóscopo, deitar cartas ou búzios para saber o que aí vem. De nada vale, esperar que o príncipe encantado nos beijará ao entardecer, nos fará flutuar e ver estrelas. De nada vale, pensar que um romance é um conjunto de folhas de papel cheias de fantasia. Nada disso, o romance é o que o nosso coração constrói com aquilo que vai encontrando pelo caminho.
Não se deve comparar esse achado, com nada. Deve-se aceitar, moldando esse presente real, com amor, dedicação, resiliência e... muita determinação. Porque é único, é nosso, acabou de ser inventado e é incomparável no nosso coração.
Felizes os que não sonham, mas encontram um lugar na terra tão bom que até parece um sonho. Felizes os que em vez copiar modelos dos romances, lhes acontece encontrar um amor que até parece saído de um livro. Mas não é fição, é o seu real chão!

Sou terrena, gosto de gostar do que tem sentido e é verdadeiro.
Gosto de me sentir segura por aquilo que conquistei sem pretensões de imitar ou de roubar ideias exotéricas e romanescas.

Gosto do que é meu por mérito próprio, do que aceitei de coração aberto, da sorte que não chegou por acaso, da vida que se vive sem ambição. 
Não espero que os sonhos se realizem, espero ser capaz de estar atenta ao que me rodeia, de estar disponível para aceitar quem vier por bem e de ignorar o que me pode fazer mal. 
Não vale a pena insistir, em forçar o destino a dar-nos a fantasia sonhada, de nada serve procurar aquilo (ou quem) não quer ser encontrado... 

O Amor não se procura, encontra-se...
E não se inventa, existe!

Está na Terra e não no Céu. 
É realidade, não é esperança.

É um passeio à beira-mar, uma noite maravilhosa, um sofá da sala ou um grandioso pôr-do-sol no Alqueva.
O aqui e agora é que interessa. No futuro, estamos todos mortos... mas até lá, em vez de sonhar, espero estar viva e acordada!

E há tanta coisa por fazer... 

domingo, 17 de maio de 2020

Nunca é tarde





Nunca é tarde para amar! Pode acontecer aos 20 anos, aos 40... por aí fora e até na velhice verdadeira de um lar de terceira idade. Imagine-se um velhinho simpático que fica feliz só por ter alguém (uma colega de lar com quem criou mais empatia) que lhe cortava as unhas dos pés.
Todos já ouvimos histórias assim: a das unhas dos pés passou-se mesmo com uma parente minha que vive num lar e que, não obstante o romantismo da tarefa e o desvelo do galã, nunca cedeu aos avanços. Amor assolapado, impossível, portanto. Contudo, enquanto durou aquela ilusão, tinham talvez sonhos de amor à noite, cada qual na sua ala da residência. Ele morreu primeiro, ela teve um desvelo de viúva na proximidade do fim... não perguntei, mas uma memória rosa permaneceu, concerteza, até o esquecimento e a demência lhe terem levado tudo.

É bonito saber que quando se tem um coração quente, ele se pode manter ativo e feliz, quente na mente, de pila fria. Ou talvez não, afinal o que sabe uma mulher como eu, um pouco mais nova, do que pode ser a vida de um velho senhor.
Eu que tenho a sorte de nunca ter deixado de ter o coração quente, e até de conseguir que nem todos ficassem indiferentes ao meu calor, sinto que sou uma privilegiada, vivi um contínuo amoroso raro e bom. Efervescente, batalhador ... mas com luz, cor e vida... noites de reboliço ou de calmo prazer, em continuidade e conjugalidade, com altos e baixos, mas com sabor. Com verdadeiro sabor a prazer! Noites e também dias, vida, enfim! Esse passado ninguém me o tira. Com excepção de uma desilusão, já lá vão 9 anos, tive sempre a sorte de ser aquecida por dentro e por fora. Ás vezes, tão por dentro, tão total e absorvente era o lavrar das chamas no meu interior, que era com verdadeiro fascínio e espanto que contemplava a beleza do incêndio... apesar de saber que, no que respeita a incêndios, mais cedo ou mais tarde, alguém virá para os extinguir. Felizmente que é assim, senão seria hoje um cavaco carbonizado, podre e acabado, em vez de me manter um pinhalzito que já ardeu, mas de onde a verdura voltou a despontar e a natureza a renascer.
Acho maravilhoso saber que poderei ainda inflamar corações  de homens bons (e porque não de mulheres?) com o calor que tenho para dar. Gostaria muito que o futuro próximo fosse mais calmo, num morno aconchego, sem envolver os bombeiros, sem chamar as lágrimas, nem consultar psicólogos.

Excluindo um período depressivo que durou um ano, findo o qual fui resgatada para a vida por um bom amigo, tenho uma vivencia longa cheia de sucessos e alegrias. Fui bem amada e acho que soube amar com toda a plenitude. Também sei que fiz sofrer, sem o querer. Infelizmente é a contrapartida de quem vive intensamente o amor, de quem ambiciona demais, de quem se quer manter no trapézio do equilibrista, no ponto mais alto e de maior risco. 
Esse amigo que me salvou da tristeza, não me curando as insónias nem o desassossego, acordou-me para a vida, para o sabor gostoso da amizade verdadeira, para o mundo dos afectos plurais. Deixei de ser a pobre desgraçada, abandonada e mal-amada e passei a rainha das conquistas. Nem eu sabia quão fácil e bom é dar alegria a homens mal-casados, mal-amados, mal-vividos e aborrecidos com o seu pouco sucesso amoroso. E foi esse amigo que me fez ver como são parvos todos os homens, em geral. Primários, com pouco jeito para construir um mundo de afetos e de fantasia, até aqueles que em tempos tiveram jeito para engatar meio mundo e fazer uma mulher "feliz", sob todos os pontos de vista, desde a oferta de rosas aos afagos. Escusava era de se ter apaixonada de caixão à cova. Fez-lhe mal a ele e, quanto a mim, desorientou-me... mas vivemos uma coisa bonita. Passou, fica a memória de um tempo de sonho. Ficam os mails que davam para escrever um romance e os raros contactos que, com pena, são cada vez mais espaçados.
Sofrendo as atribulações boas de relações amorosas com mais ou menos amor, manteve-se o meu calor interior em lume brando, em alegria de viver, num espaço de liberdade que entretanto conquistei, mas sempre na inquietude que me alimenta, sempre com medo de cair do alto trapézio (lugar de que não abdico).
Umas vezes com dramas, outras com paz... foi uma vida cheia de Amor. 
Imagino, talvez com exagero e soberba, que fui uma nuvem ampla e branca que cobriu de sol (e alguns aguaceiros) quem comigo se cruzou.
Sou uma pessoa realizada, privilegiada mesmo... porque nunca estive só, no fundo fui tendo um ou mais pilares afetivos que me mantinham de pé e me mantêm viva. Apesar de tudo,  inquieta e insegura, vou mantendo a esperança de haver, para cada dia da minha vida, um pãozinho de afeto que me irá alimentar. Não deixarei de sonhar com uma refeição melhorada, quiçá um dia. Ou até uma refeição reaquecida, apurada ... melhor ainda.

Que melhor coisa pode haver, que uma pessoa acordar de manhã e saber que existe alguém para quem importo, haver um ser amado (gostado) em quem se pensa logo, ao primeiro olho ensonado que abre, que bom haver gente amiga com quem se imaginam passeios, beijos, afagos ou uma simples mensagem a dizer: Estou aqui, acordei, está sol para passear (hoje não podemos, estás longe, tenho saudades, fica para o fim de semana). Ou então, dizer: Acordei, azonzada das drogas contra a insónia, entorpecida pelo desgosto que me destes (ou eu inventei, sou muito sensível), acizentada porque o tempo está de chuva. Ou atrever um outro dito: Olha, sabes, em vez de ir trabalhar, o que eu queria mesmo era mais um pouquinho de cama contigo dentro de mim... ouvindo a chuva bater na janela ... olhando o relógio e a hora de ir pegar ao trabalho, vendo o tempo a fugir à nossa frente, atrapalhando
a nossa pressa ou vagar de saborear mais um pouco um do outro.
Sabendo que há um alguém especial, longe ou perto, sabendo que há outros que nos estimam e que há a família no seu silêncio calado de quem já tudo disse entre si e para quem a minha felicidade não é assunto... os dias seguem a sua normalidade.

A alegria é o que a esperança nos concede.
Quem não sonha e não espera, não vai encontrar a felicidade num cestinho à porta de casa ou na caixa do correio. 

Sonhando com o encontro seguinte, pensando em pequenos prazeres, pensando não só no pilar especial do momento, mas em todos os outros amigos que gravitam na nuvem de poeira e de estrelas que tenho para dar luz aos outros. Também isso é uma forma de amor.
Memorizando o passado - foi grandioso, se pensar bem no assunto, grandioso porque intenso, não pela variedade mas pela riqueza intrínseca de quem comigo se cruzou. Espero continuar a encontrar no meu caminho pessoas boas de quem gostar, pessoas que não tenham medo de amar, porque isso é a coisa mais importante de tudo.

Esperançada em que floresça uma relação sólida daquilo que foi uma frágil e tímida planta, semeada em morno encontro, que ganhou raízes fundas e sólidas, parecido com o apego sério e duradouro próprio das ervas bravias e livres, que não se arrancam com facilidade. Dessas ervas tão entranhadas na terra, que não se deixam arrancar por uma qualquer jardineira ligeira.
E espero que na intimidade, sejamos abençoados pelo dom da transcendência espiritual e que esta ultrapasse a agradabilidade física, animal e primária. Para que ganhe a solidez de um elo completo, gratificante, tolerante e livre.
Firmar uma coisa só nossa, especial - que eu acabei de inventar - porque também eu sou especial e inventiva. E se não for hoje, aqui e agora, irei por aí ... até encontrar o que gosto. 
Não interessa se é igual ou parecido com o que já tive, se é melhor ou mais intenso, sei que tudo muda com a idade e com a perspectiva que vamos tendo dos sentimentos e das emoções, nossas e alheias.
O que importa é acrescentar calor a um coração quente.



Um coração que gosta de rosas - de todas as espécies e das amarelas, em particular, que nascem fraquinhas, clarinhas e se tornam cada dia mais exuberantes e marcadas de cor.

Que esta linda, a primeira, seja o início de uma nova era!

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Quarentena


Passei uma quarentena maravilhosa.
Pensei que a paz do ambiente e a companhia me envolveriam numa nuvem de afecto eterno...
Porque as coisas boas sentem-se como eternas, enquanto duram.
Havia tele-trabalho, havia sol, havia mar, havia momentos de ternura... e muitas horas de um silêncio habitado, tão gostoso...
Um silêncio que não era solidão, era paz.
Noites de aconchego em que não se percebia que se habitava um espaço de janela fechada sobre o mundo, nem se sentia a escuridão da noite, nem um distanciamento da vida normal. Foi um confinamento de luz, atrás da janela que nos isolava obedientemente do virus.
Momentos de felizes rotinas, de tarefas independentes, de presenças sentidas, mas livres... de ar puro, por dentro e fora de mim.
Se a felicidade - como se costuma dizer - não tem história, esta minha quarentena tem.

Tem e teve (pelo menos até certo ponto) uma história feliz.
Claro que todos sabemos que não há bem que sempre dure... Claro que estava preparada para partir, assim que fosse possível e necessário. Afinal outros mundos me esperam cá fora daquela redoma de madeira onde confinei, sem me sentir presa. Cá fora - no mundo real - esperava-me família, a quem dar apoio, os amigos que precisavam de mais aconchego mesmo que à distância de um telefonema, obras em casa e as muitas outras tarefas que uma mulher sempre inventa como prioritárias (do cabeleireiro, às compras de roupa nova, passando pelas arrumações de casa), Além disso, o trabalho profissional continuou a ser intenso - mas na prática igual ao que foi feito em tele-trabalho.

Aos poucos alguns sinais foram anunciando que havia uma percepção errada (talvez mentirosa) da vida fora da cabaninha amorosa da Branca de Neve.  
Sempre assim fora e não era novidade que ao regressar ao meu sítio normal, nada voltaria a ser como dantes.
Só que fui confrontada - em choque - com algo que me disseram ser a "Nova Normalidade"!
E que a mesma consistia, entre outras coisas, em aumentar o grau de clandestinidade. A tal cabaninha que eu vi límpida e transparente como o mar em volta, cheia de sol e de liberdade, afinal teria de passar a ser (na melhor das hipóteses) um refúgio clandestino.
Quiz saber porquê?
Tremo em saber a resposta...
Ela vem aí... foi sendo anunciada... eu já a devia conhecer de ginjeira...
A razão para a minha clandestinidade eterna é sempre a mesma - não magoar a minha sensível e amorosa concorrente, que não pode saber tudo. Proteger a princesa é uma forma de defendê-la na sua miserável situação de dependência alegre e inconsciente e de, ao mesmo tempo, continuar a gozar daquilo que a princesa traz consigo de bom - uma simpatia e uma sedução requintada, mascarada de amor romântico, de carinho e dedicação sem limites, disposta a ir até aos confins do razoável, para tudo ganhar... nem que seja um dia mais tarde, à hora da morte. 
E assim, prossegue a saga da eterna mulher pseudo-apaixonada, competente doméstica e elegante presença, que sobrevive e construiu toda a sua vida assente no estereótipo clássico da mulher dependente de um homem, qualquer um, que lhe dê posição, dinheiro e estatuto para viver em segurança e ter o reconhecimento alheio, da sociedade, do seu ego e, sobretudo, das outras mulheres.
É o eterno-feminino!Modelo tão do agrado dos homens, novos e velhos, mais ou menos instruídos, com diferentes ideologias e experiências.
A fada do lar - ser for boa, prendada, cordata, calma e carinhosa - é sempre melhor que a intelectual louca que queima soutiens e atira com as panelas ao ar (só não é a loiça porque está se parte e é chato, enquanto as panelas não!).
Quando não há Amor, prevalece o interesse, o proveito obtido do usufruto de quem der mais.
E quanto mais se tem melhor! Se se pode ter tudo e se o tudo é bom e agradável, porquê descartar alguém?
Afinal todos precisamos muito de vitamina F.
Eu também preciso de vitamina F, de preferência F de friens with benefits...

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Quem quer discutir comigo?



Quem quer discutir comigo que a coisa mais linda da vida é o Amor?



Desafio todos os maiores de 60, para uma corrida de fundo: quem é o melhor, quem tem mais sabedoria, interesse, traquejo, opinião, fantasia e capacidade intelectual para aguentar um bate-papo inteligente, sobre este tema tão importante.

Desafio os trôpegos, mazelentos, meios surdos, pitosgas, distraídos, esquecidos, assarapantados ... até mesmo os descrentes na coisa e os que se julgam impotentes !
Todos juntos talvez consigam produzir matéria científica - conhecimento, como se diz na gíria das elites mais educadas, os intelectuais mais ou menos estudiosos e sérios e os curiosos auto-didatas.
Todos serão bem vindos para dizer o que pensam do Amor.
Ou mais simplesmente para falar do vasto mundo dos afetos que nos envolve a todos, mesmo àqueles que se sentem excluídos desta benesse.

Lembro que é grátis e não há escassez na natureza. Podem divagar à vontade - inclusive dizer asneiras, que não pagam imposto.
Contem histórias verdadeiras ou falsas. Sejam polêmicos, descrentes, convictos, apaixonados ou estupidamente desinteressados do tema.
Mas falem!

Falem do Amor, porque nada de mais importante existe. Não preciso de me alimentar quando (por sorte) o Amor se cruza comigo. Se, pelo contrário, ele fugir tristemente , também não como... porque o espaço guardado para o amor enche-se de amargura e a comida não cabe.

Se não tiverem imaginação, ao menos leiam este sábio (Gandhi).

À DESCOBERTA DO AMOR

Ensaia um sorriso
e oferece-o a quem não teve nenhum.
Agarra um raio de sol
e desprende-o onde houver noite.
Descobre uma nascente
e nela limpa quem vive na lama.
Toma uma lágrima
e pousa-a em quem nunca chorou.
Ganha coragem
e dá-a a quem não sabe lutar.
Inventa a vida
e conta-a a quem nada compreende.
Enche-te de esperança
e vive à sua luz.
Enriquece-te de bondade
e oferece-a a quem não sabe dar.
Vive com amor
e fá-lo conhecer ao Mundo.

terça-feira, 12 de maio de 2020

O caminho faz-se em frente



A vida é complexa, como um emaranhado de  troncos e de raízes antigas, imbricadas umas nas outras, cujo fim e principio se confundem. Caminhos tortuosos, cheios de erros e de reviravoltas podem, numa planta de sol e de amor, transformar o negrume em viçoso verde. 

É costume dizer-se que se aprende mais com os erros do que com as aprendizagens de sucesso.
Porque será?

Talvez porque um erro nos coloca à beira do abismo, inadvertidamente, no lugar onde somos confrontados com a nossa própria sobrevivência.



Ali, onde a morte nos espreita do fundo da escuridão, onde o futuro próximo é uma realidade cruel e dolorosa, temos de suspender um pouco a marcha e reflectir. 
Refletir nos enganos e olhar o abismo.

Será que quero ir por aí? 
Será que ainda há hipóteses de voltar atrás, emendar o erro cometido? Tantas vezes se erra por desleixo, por estupidez, sem ser por maldade, sem ser deliberado, sem más intenções. Quantas e quantas misérias e tristezas foram rotuladas de erro e o meu "crime" foi mera injustiça...

O erro ou o pecado para os crentes terá perdão? Haverá remissão do nosso engano, quando já estamos nessa borda de falésia que nos puxa magneticamente para o fim? 

Sei que nem sempre o retrocesso é possível, nem sempre os nossos actos infelizes têm conserto e aquilo que foi apenas fruto de falta de senso, nos pode condenar à derrota à infelicidade, à rotura do que nos é mais querido.

Estou nesse planalto muito estreito de todas as decisões, joga-se a minha vida...

Não é a primeira vez que perco tudo, por ser uma irrefletida desalmada, por ser excessiva, extrovertida, escadalosamente sincera, frontal, de crítica acesa na ponta na língua... Bem tenho penado por isso, pelo meu mau-feitio, pela impaciência, pelo destrambelhamento. Sei que é a angústia da perda que me desatina e me leva à imprudência da loucura. Como se a loucura pudesse ser prudente ou sensata... que disparate! 

Confesso: não sou uma menina bem comportada, certinha, obediente, cordata, amorosa, submissa...
Não sou e não é agora depois dos 60 que vou mudar. Tenho a alma inquieta, a imaginação desalvorada a flutuar em meu redor, sobre os meus mais queridos, os mais amados ou até os mais odiados compartes... 
Sou assim, ponto final.
Quem me conhece, sabe. Quem não me liga, não quer saber e desliga...
Esses, os que não têm paciência para o meu feitio - efusivamente cortante, eternamente insatisfeito e desmesuradamente exigente e apaixonado - afastam-se.

Alguns desprezam-me, outros bombardeia-me de raiva contida ou explícita, há ainda os que fazem chantagem emocional (desses tenho anos e anos de prática) e os que me tentam dominar pelo medo. Desses tenho medo, confesso. Porque sou frágil...
Sou muito frágil, apesar da imagem de segurança e de garra. É mentira! Sou mais frágil do que um biscuit delicado, (não tão bonita, claro), que se parte se for mal cuidado. Sou mais vulnerável do que uma princesa mimada.

Esses, de quem tenho medo, afastam-se porque me temem e eu tenho medo de que se afastem porque não me entendem, porque se assustam, porque têm receio da diferença que se calhar manifesto e não vem a fragilidade que contém.
O horror à diferença facilmente vira ódio. (Não vou falar de chauvinismos, nem de guerras ideológicas ou reais baseadas na incompreensão pelo outro).
Mesmo que o sentimento do interlocutor não seja tão forte, não seja de verdadeiro ódio, facilmente resvala para a indiferença e para o fastio.
Para quê aturar uma louca apaixonada e "demanding", crítica e insatisfeita... se se pode ter paz e submissão, doçura e mansidão?
Realmente, eu não sou para todos os estômagos, mas sou assim!
Esforço-me muito por mudar (na medida do possível e dentro da civilidade necessária) mas há demónios que me assaltam e transtornam. 
Não é todos os dias, que consigo desempenhar o papel de mulher ideal, de parceira perfeita, de amiga afetuosa, de mãe ou de filha desveladas, de profissional séria, fria e competente. Esforço-me bastante e tenho passado a vida inteira a representar (com alguma proficiência, diga-se) os papéis que a cada momento esperam de mim.
Em geral, desempenho-o com êxito (visto por quem está de fora e é objeto da minha ação). 
Em geral, faço-o com sacrifício próprio, com renúncia à minha liberdade e maneira de ser.
E nos dias maus, expludo! É quando não consigo representar o êxito e assumir o sacrifício, nas doses certas.

Há que encontrar um equilíbrio entre a natureza selvagem e ardente que me inflama por dentro e o politicamente correto que a família, os amigos ou a sociedade me impõem.
Conseguir esse equilíbrio sempre foi um objetivo que tive em mente, na minha caminhada pela vida... 
Considero que ele é importante porque me dá paz, porque sei que ser uma alma inquieta me pode levar à beira do abismo.
Todos precisamos de algum escape - e para mim só os amigos (poucos e bons, íntimos e compreensivos) me podem salvar, ajudando a pôr cá fora o que me queima por dentro. Ajudando-me com muita vitamina F a curar os erros, a desviar-me do abismo e a encontrar um caminho que vá em frente e seja bom, um caminho de paz, mas simultaneamente onde possa seguir de cabeça erguida, sem vergonha, sem pecado, sem viver em clandestinidade.

O caminho faz-se em frente, com bondade e compreensão - que é isso que se espera de um amigo - alguém que ouça, que acalme, que não faça muitos juízos de valor, mas aconselhe e critique os maus passos.
Esses são os verdadeiros amigos. Não aqueles que gritam, se ofendem, partem para longe e nos abandonam quando mais precisamos.

Preciso de vitamina F que, para quem não sabe, vem de Friends, a coisa melhor para nos tirar da beira da infelicidade suicida. É tão importante quanto a vitamina D, que o sol nos dá... para não falar daquela que não existe à venda, nem se pede emprestado - a A, com A grande.

E vou encontrar esse caminho, tortuoso e imbricado como todos os trilhos da vida; e vou recheá-lo de flores regadas a vitamina F, fazer muitas coisas boas que ainda não escolhi  mas de certo serão para dar...sempre para dar a coisa certa,  aos amigos certos e amados, aos desconhecidos por descobrir... Vou deixar para trás os erros - merda de cão que pisei sem querer e limparei sem nódoa - por ora, vou em frente...
Por enquanto, o abismo que espere. Para já a aventura, mais uma, a de estar só e caminhar direita.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Solidão e Liberdade

Nada mais livre que o mar! 

Vai e volta quando quer... ao sabor de uma força invisível e superior: a Lua.

Pela energia agitada do vento, pela roda em permanente movimento das altas e das baixas pressões, pela leveza de cada gota de água e pelas forças da natureza,  ele mexe e avança... recua e volta aos nossos pés. 

Nunca se deixando apanhar, fugindo depois de um momento de prazer, regressa na próxima onda, para  fugir logo a seguir, para longe, rumo à origem da sua liberdade.

No fundo ou no ar, de onde quer que ela venha essa força que o move, o mar é livre, ou assim nos parece esse infinito azul, que se ama e não se tem.

A sua sabedoria é sibilina, de manha subreptícia, movido por forças que se movem na sombra da clandestinidade, invisíveis. Mesmo que a ciência as descodifique, para uma alma simples e um olhar romântico, o mar está lá para nos deslumbrar e para nos fazer sentir livres.
Misterioso e sedutor, só nos mostra o que tem de belo, mas as forças que o movem são obscuras.

Afinal, há uma liberdade aparente, linda de se ver... linda e que apetece seguir, embalada pela sua música, pela dança das ondas ou, simplesmente, no som das águas das ondas chocando na falésia ou deslizando com alegre barulho na suave areia.

Será da beleza deste azul que gostamos? Ou o que nos atrai é a noção de infinitude e de liberdade? 
Porque quase todos gostamos do mar.

Eu gosto por tudo isso, mas sobretudo pela sensação de que é um espaço infinito de possibilidades e de liberdade. Um lugar sem limites, onde posso ser eu. Eu com a minha solidão, sou mais eu... se estiver em frente do mar.


Quem não ama a solidão, também não ama a liberdade: apenas quando se está só é que se está livre (...) Cada um fugirá, suportará ou amará a solidão na proporção exacta do valor da sua personalidade. Pois, na solidão, o indivíduo mesquinho sente toda a sua mesquinhez, o grande espírito, toda a sua grandeza; numa palavra: cada um sente o que é.
SCHOPENHAEUR, A.

Eu estou só e olho o mar. Quando posso e paro em contemplação, ele lembra-me a minha solidão voluntário. Eu, o mar e a solidão - um triângulo de liberdade!
Porque se a solidão não for de abandono, se não for uma contingência, nem for um resultado traumático de falta de uma comunidade de afetos, então a solidão escolhida é uma caminho de alegria e um espaço ilimitado de opções, de futuros, de alegrias, de novos amigos... de novos mares.
Se a solidão for uma escolha, uma via de luta pela dignidade pessoal, helás!... que se vá por aí - mais vale só que mal acompanhada, lá diz o povo.
Quer se fique de pé olhando o mar, de cabeça erguida e digno orgulho no rosto, quer se desista de tudo e se mergulhe nele para sempre, o que importa é que a decisão seja nossa. Que a escolha não tenha limites, nem preconceitos, que seja lúcida... e corajosa, porque a primeira onda apanha-nos de chapão, enrola o corpo, trucida a alma e dá cabo da gente... se se tentar ir ao mar sem cautelas. 
E dói, ele há chapões que doem muito.
Á segunda, ou se tenta nadar para terra à procura de bom porto ou se naufraga de vez.
Qualquer que seja a escolha, que seja livre, alegre e forte como o mar azul que eu amo.



sábado, 9 de maio de 2020

A Nova Normalidade






Há uma nova normalidade - soube hoje.
Já desconfiava!
Perante a pergunta de como vão as coisas, obtive por resposta: Normais!
Normais, só se forem para ti porque por mim não estão nada normais. Não me parece que estejamos em "normalidade".

Rapidamente veio a resposta. Sorriu, satisfeito por conseguir contornar airosamente a questão, orgulhoso pela sua prontidão de raciocínio e pelo desembaraço manifestado, por sentir que o poder estava do seu lado e que dominava com segurança a situação - resumindo, naquela fracção de segundo, era ele o dono de tudo!
Da liberdade! Quiçá do Mundo...


Há momentos assim, em que uma pessoa se sai bem e se sente orgulhoso com as palavras certas que saíram no momento certo, para calar o adversário. Neste caso, para calar e magoar uma amiga que, ainda por cima, lhe quer bem e que não faria muito sentido ser arrumada para o lado do inimigo...
Mas claro que isto de guerras e de In são sempre coisas tolas, contingentes e subjetivas.

A resposta certa e rápida foi: É a nova normalidade!

E assim, sendo nova, marca a fronteira de uma rotura com algo de velho.
Não pode existe o conceito de nova sem ser por contraposição com algo que mudou e passou a obsoleto, sem significar que houve um passo em frente no sentido de uma mudança qualquer.
A normalidade conhecida acabou e não nos podemos mais espantar, porque chegou uma nova e é essa que passa a prevalecer.
Não há que reclamar, nem lembrar a antiga, nem esbugalhar os olhos de espanto, a normalidade normal é nova, pronto!
Logo, apesar de desconhecida (para mim que não a criei, não a concebi, nem entendo), só sei que é nova, logicamente diferente...
Mas nova como ?
Será que me é legítimo perguntar? Ou sendo nova, não me diz respeito... fiquei para trás encalhada na normalidade antiga e esquecida?
Isso já percebi. Se é nova e eu não a conheço, é porque não é minha, nunca me foi apresentada, nem explicada. E o sorriso que não vi, mas que teria um toque de cinismo à mistura, insinuava isso: era uma nova normalidade, misteriosa a que não teria acesso nem informação. Decretada por ele, ponto final. Passaria a vigorar e não admitia réplicas.
Tenho algumas dúvidas em saber se posso perguntar o que é a nova normalidade ou se me devo calar, porque não é nada que me diga respeito.
Assim, passou a haver duas normalidade: a que conheço e vejo como normal e a outra: a nova, que não sei o que é. 
Em relação a esta, não me é dado perguntar? Ou será que, pelo menos, terei direito a uma pequena explicação sobre o que gerou a novidade?
Será que o silêncio, a aceitação da rotura, o meu afastamento perante a visão de que se avizinha de uma partida para uma nova realidade - normal para uns e traumática para outros - são a atitude mais certa?
Vou esperar para ver...
O mais certo é não me ser dada qualquer explicação e deixada na ignorância do que é a nova normalidade.
A mim, pareciam-me rosas... afinal são peónias, de outrém!


Posto isto, no turbilhão das dúvidas, curiosidades e angústias, de tanta coisa a acontecer e a submegir-me, ao mesmo tempo, deparo-me com o título da crónica de José Tolentino de Mendonça - chamada "Normalidade".



Andamos todos à volta do mesmo, por razões diferentes...
Talvez seja a inata aversão à mudança que nos toca a quase todos, talvez seja preguiça, velhice, desalento em aceitar que o mundo mudou para mim, que muda todos os dias para toda a gente e que o espanto não é coisa que se deva praticar.
Não nos devemos espantar nem questionar muito. Apenas aceitar que o nosso futuro próximo vai mudar e não como gostaríamos.
Aceitar tudo, pacificamente, aceitar a dor e suportar com um sorriso falso (que mascare a angústia) vendo surgir um amanhã que não será como queremos, será pior... provavelmente.
Porque ver um futuro radioso e promissor, melhor, de uma nova normalidade e com paz, é algo que me custa racionalizar.

Tolentino diz que a "pandemia nos leva à consciência do limite".
É isso!
Preciso de ter consciência dos meus limites, dos limites a que uma relação está condenada... perceber quando nos ultrapassam ou quando nós estamos a forçar os limites impostos. Não vale de nada, querer ir para além dos limites! Por muito que nos esforcemos por resistir, por muita vontade que tenhamos de que tudo corra bem, por muito empenho posto em fazer tudo direito, por agradar, por amar, por distribuir afectos e solidariedade - por muito que se faça, os acidentes acontecem. 
Chega um vírus, aparentemente inofensivo, espirra, tosse e eu morro de asfixia.
É isso!
Asfixio na mentira e na toleima que aquele bicho encerra, pensando destruir o máximo de seres à sua volta. Não vai desistir.
Precisa de se alimentar de sangue e pele humanos, precisa de se alojar numa célula quente e confortável, precisa de se reproduzir, de ser criativo e inovar, em mutações sucessivas... só assim se conseguirá espalhar e garantir a sua sobrevivência. Entrará no primeiro poro de um pedaço de pele mal desinfectada, virá por carta no correio, virá de bicicleta, sob a forma de carinho que contamina a pele ou de doce que aconchega a barriga.
Lutará até ao fim. Ás vezes, parece que está latente e incomoda pouco, outras ataca em força. Irá conseguir infectar quem está por perto, mesmo quem se protegeu em quarentena durante dois meses radiosos e limpos. Veio e trouxe a nova normalidade.
Não sabe e não lhe interessa essa quarentena, aparentemente asséptica em que vivi, sem ter consciência dos meus limites. Ao primeiro vislumbre de espaço não preenchido, não desinfectado, o bicho ataca e mata.
Mata, mesmo!
Neste momento, o inimigo que tão bem se comportou numa quarentena desinfectada de dois meses de sol, está nos cuidados intensivos... pode mesmo partir para o além... deixando o bicho à solta, que o seu destino é a aventura entre continentes.
Porque ele não tem consciência dos seus limites, é uma célula animal sem alma, vai por aí, o seu único limite é saber que se parar de investir em homens, morre.
Eu, tenho outra responsabilidade e outra ética - sou humana, tenho inteligência e outras missões na vida, não estou aqui para infectar e sobreviver, por isso devo ter consciência dos meus limites. Devo ponderar bem quais são eles, até onde posso ir sem ferir a minha dignidade de mulher livre...
Posso até sair derrotada, mas que o seja com nobreza, em liberdade.
Sair do confinamento que, no princípio, era necessário, mas agora já não é. Vou levantar a cabeça e sair da clandestinidade, mesmo que isso implique mergulhar na tristeza e na solidão.