Jorge esfregava o polegar no
dedo indicador, levemente colados um ao outro, húmidos, pegajosos, tocados
daquele fluído translúcido que tão bem conhecia, cujo cheiro acre lhe parecia
doce, pelas memórias que trazia de uma vida passada, uma vida em que as
mulheres lhe marcaram as alegrias. Um cheiro estranhamente longínquo … porque
já há algum tempo que se afastara dessas lides. As mulheres, dantes tão
presentes, foram perdendo importância real. Seria desinteresse? Ou antes o
resultado do natural e lento processo de envelhecimento? Não havendo ainda uma
fraqueza física relevante, o certo é que já se anunciavam algumas mudanças,
mais de postura perante as rotinas, as situações ou as pessoas com quem cruzava
… do que falhanço efetivo ou decisão fundamentada de “fechar a loja”. Ele não
tinha fechado a loja, deliberadamente, não assumia a falência do negócio, mas
não ia lá todos os dias, pensando que não talvez não houvesse clientes ou por
preguiça para os procurar, motivar. O certo é que andava esquecido da coisa. E
agora inopinadamente ela estava ali – como prova material, o dedo molhado, o
seu dedo que tinha estado lá, algures muito perto de um local de prazer, a
caminho de uma intimidade não atingida mas sonhada … como se o passado fosse um
filme visto ao contrário, de trás para a frente. Um dedo mergulhado num lago de
prazer não acontecido. Um dedo, não. O seu próprio dedo, tão próximo desse
lago, símbolo de uma ou antes de muitas memórias felizes.
Olhava para o dedo como um
troféu, mas também com espanto. Ultimamente, parecia-lhe que o corpo se começava
a esquecer de muitas coisas. Os sentidos estariam gastos? Talvez esbatidos,
menos nítidos e funcionais. O olfato milagrosamente hoje funcionou muito bem e
com ele arrastou outros sentidos. A visão por exemplo…
A visão ainda era a melhor porta
de entrada para as emoções e para a pulsão sexual. Perante uma mulher fêmea (bonita
ou feia, não importava), uma mulher que despertasse os sentidos, ele reagia
normalmente bem, com desejo e alegria. Mas logo a seguir, esquecia. Algo lhe
tomava a atenção – um recado a cumprir, um telefonema a fazer até certa hora,
um neto a pedir atenção, uma boleia a dar à cara-metade – tanta coisa para
fazer, tanta cabeça cheia de tarefas, tanta gente que lhe exigia trabalho de
corpo ou de mente. De tal forma era arrastado para o trabalho a bem dos outros que,
por vezes, até parecia que o corpo não era dele, mas um instrumento ao serviço
de outrem.
Em tempos, o corpo dera-lhe
muitas alegrias, agora afastava-se daquilo que ainda lhe podia dar. No entanto,
hoje foi diferente. Parte de si voltou a ter um uso adolescente, de forma súbita
e inesperada … aconteceu. A Irina que andava lá por casa, supostamente
limpando, lavando e varrendo, atravessou-se-lhe à frente e pareceu-lhe especialmente
dengosa.
A culpa era dele, porque não
tinha perdido o jeito de gabirú, sempre com piropos brejeiros, uma mania tão
antiga e tão automática que já nem dava conta do efeito que provocava. Mandava
bocas amiúde, mas não parava para ver o efeito. Aquilo saia-lhe, a Irina já
devia estar habituada, ria e continuava na sua faina … enquanto a patroa punha
as suas trombas nº 1, se por acaso ouvia algo de mais avantajado.
Piropo inofensivo, porque protegido
pelo local e pela sua pessoa: era um gabirú encartado, porém educado. E afinal de
contas, elas gostam! Elas gostam, sempre gostaram de ser notadas, apreciadas
como mulher, pelos seus atributos femininos, pela aura, pelo élan, por tudo
aquilo que transmitem e que chega ao macho. Elas gostam mesmo que digam que
não, mesmo que se afastem do intruso, mesmo que barafustem, se ofendam, se
empinem ou gritem, mesmo que se queixem de assédio… ou lhe preguem um par de
estalos. Ao Jorge já tinha acontecido um pouco de tudo isso, ao longo da sua vida
já longa. Ele era (ainda é?) metediço, não perde a oportunidade de testar o seu
sorriso maroto, capaz de desarmar qualquer uma. Um sorriso picante, apetitoso,
maravilhoso. Um sorriso promessa de pecado e de alegria, um sorriso capaz de afagar
a auto-estima à mais triste e deprimida das mulheres. Um sorriso democrático:
capaz de levantar o ânimo às feias, às jeitosas, às super-auto-cotadas, às
pobres ou humildes mulheres comuns, às tias (pobres ou ricas), às mal–amadas,
às apaixonadas sempre prontas para adorar o amor em qualquer altar onde o
vislumbrem.
O sorriso do Jorge era isso
tudo…
Mas ele só o usava com quem
era alegre e pronta para o receber, só se dirigia a quem tinha o mínimo de sex
appeal, seja lá isso o que for, só dava a quem estava preparado para o receber,
mesmo que não soubesse, mesmo que só teoricamente estivesse predisposto sabe-se
lá a quê.
Foi o que aconteceu naquela
manhã em que a patroa saiu para mais um compromisso de beleza (massagem ou
manicure). A Irina andava por ali e as hormonas dele, um pouco adormecidas,
acordaram. Vai daí, foi um passo até pôr a mão e, outro, para que a mão se
instalasse na cintura da pequena ucraniana (nada pequena por sinal). E da
cintura descesse um pouco mais abaixo, naquela zona perigosa da continuação das
costas, operação permitida pelo facto de as calças de trabalho serem de tecido
flexível, permeável à passagem de uma mão – um misto de algodão e de licra.
Calça de trabalho, boa para as limpezas, muito prática, também servia para ir
para a ginástica ou até à praia, sei lá! A roupa das mulheres, hoje em dia,
serve para tudo. Pode-se ir a qualquer lado com qualquer tipo de trapo, quase
tudo fica bem, muda-se a quinquilharia de apoio e o traje compõe-se, o trapinho
do china fica ótimo. As calças de licra da Irina, com um bom vison em cima,
davam para ir dar um pulinho ao cocktail da embaixada, desde que o cabelo, os
brincos e o pedigree da sua proprietária ofuscassem a multidão.
Mas voltando à licrazinha tão
prática da Irina e à mão deslizante do Jorge … ela continuou pelo fundo das
costas, passou a fronteira da cintura - qual Equador, entre o hemisfério norte
e o hemisfério sul – abrandou naquela curva que anuncia a subida do bumbum. E
foi por aí que se fixou algum tempo, provando a macieza do local, aproveitando
a liberalidade com que a I. se deixava tocar, preenchendo o tempo com risos e
áis … forma que ela encontrou para ocupar aquele minuto comprometedor e
promissor, para fazer render o prazer, para preencher a atrapalhação. Confinou
aquele avanço a um espaço temporal razoavelmente decente, entre o primeiro
toque dele e o necessário não dela. Sim, porque há um procedimento protocolar
nestas coisas. A ele compete-lhe avançar e a ela dizer que não. Fica bem! A
Irina era boa rapariga, tinha um mínimo de decência, sabia que não podia mostrar
demasiado facilitismo, por isso foi dizendo que não, mas fazendo que sim.
E neste intervalo de tempo,
esticado até ao limite do aceitável, ambos gozaram, saborearam lenta e
gostosamemente o proibido. De tal modo que ainda houve tempo para ela se virar,
quem sabe se com a intenção de dizer acabou, já basta, não seja malandro,
porte-se bem … ainda houve tempo para a mão deslizar da parte fôfa de trás para
o território da frente daquele planeta maravilhoso. Agora com a mão claramente pousada
no hemisfério sul, viajante num espaço territorial mais líquido, ele deixou de
pensar, não chegou sequer a interrogar-se sobre a localização geográfica da sua
mão. Sentiu um calor percorre-lhe o corpo e uma rigidez airosa, inabitual e
feliz começando a dar-lhe ânimo. Todo ele era estado líquido, por dentro e por
fora, estado de desejo vagueando por local de promessas. Regressou ao passado,
a uma geografia conhecida mas agora vaga, imprecisa. Uma coisa era certa: ali
não era o deserto do Sarah, com a aridez das últimas viagens empreendidas com a
sua princesa residente.
Ali, o seu dedo arrumado entre
a licra e a doçura da Irina, era um barco deslizante na água turva e espessa
dos sentidos … navegando talvez num escuro rio africano, talvez numa zona
húmida amazónica. Não interessa. O que importa é que começou aí um pequeno safari
hormonal e emocional, no local onde os seus dedos tocaram, onde se besuntaram,
onde recolheram o cheiro das memórias antigas e boas … onde o passado se
confundiu com o presente. Onde o território Irina, passageiro e fugidio lhe
trouxe à memória outra I. – uma Irene portuguesa, 50 anos atrás.
Foi o cheiro, foi a gelatina
colada aos dedos retirados (finalmente) do sossego ou do dessassosego escondido
e íntimo da Irina, que lhe lembrou uma outra história, tão antiga.
Uma história de quando ele
jovem, tão jovem que seria de esperar que não tivesse sossego de corpo. Tão
jovem como hoje é, neste preciso momento em que toca os seus dedos aguados de
desejo…de anúncio de prazer.
Uma história com uma Irene,
cujo cheiro de fêmea, a Irina de agora lhe fazia lembrar.
Uma outra I. do seu passado, que
o amou? Talvez, nunca saberá … mas certamente foi alguém a quem ele despertou
sentimentos românticos, amorosos, afetuosos e não necessariamente carnais.
Ao contrário da presente I.,
que lhe suscitou o interesse animal, por via de algo que estava semi-adormecido,
a outra I. de há 50 anos, gostara dele, porque ele era bonito. Alguém, que não ele,
acrescentaria bonito e bom. Tão simples, assim!
Dezoito anos, 1,80m, pele
branca e rosada (quase de menina), uma postura sem defeito, pernas altas e
direitas, um todo que atraia as mulheres, talvez porque era um misto de carinha
de menino do coro com ar de pecado. Foi certamente a postura militar, ia a
caminho disso, para já apenas um potencial garboso oficial, em fase de
preparação. E foi a farda, claro! As fardas e os carecas são vantagens
competitivas com uma longa história no sucesso masculino. Foi tudo isto que a
Irene viu (as outras também!), mas ela viu mais, viu a bondade; porque ela
conhecia bem os homens, sabia ver para além da beleza e da farda, soube reconhecer
um coração para colar à sua tristeza.
Ele estava há um ano na
Academia Militar, ali para os lados da Estefânia. Uma juventude entre o campo
onde nasceu e Coimbra onde estudou. Boa alimentação da vida rural abastada, uns
genes adequados, praticante de exercício físico dentro e fora de portas, um
crescimento saudável, deu um rapaz bonito. O treino militar do último ano, a
par do crescimento ainda em andamento fizeram o resto. A vida na cidade,
deu-lhe um toque diferente no polimento social que um bom rapaz da província
não tinha, transformando um estudante provinciano inteligente num príncipe.
Sempre teve mulheres, mesmo na aldeia … a vivência sexual foi mais rica e mais
livre do que a maior parte dos rapazes do seu tempo. Não viveu as proibições,
inibições e demais consequências das habituais lengalengas religiosas ou
familiares. Ou se as teve, contornou-as, não o marcaram nem determinaram o seu
percurso masculino, como tantos infelizes jovens dessas gerações da noite
escura. Teve sorte, nasceu no sítio certo, na família certa ou com a cabeça no
lugar certo. Também o meio rural era permissivo para os rapazes e havia algumas
raparigas a jeito, vagas primas, vagas ajudas domésticas ou rurais.
Ofereciam-se, ele estava lá… Não sabe porque foi assim, mas sempre foi assim,
pela vida fora. Jovem ou adulto, elas gostavam dele e ele deixava.
Com a Irene de Lisboa, foi
diferente. Não foi mais uma agradável aventura, uma voltinha atrás das moitas
lá da terra. A I. não era uma menina bem, nem uma saloia da aldeia alucinada
pelo menino bonito de sorriso maroto e muito virado para a brincadeira. Ela não
procurava nele a tentação, o gozo de pisar o risco, a novidade, sensações
libidinosas desconhecidas mas antecipadas. A I. não era uma menina ingénua,
carente de experiência de vida, ansiosa para saber como era um homem. A I. era
nova, talvez um pouco mais velha do que ele, mas ainda com a frescura em ordem.
Mas não era uma menina como as outras.
A I. de Lisboa era uma puta!
Sim, isso mesmo: uma cachopa
pobre que se desembrulhava como podia. Sobrevivia a uma emigração forçada,
vinda da terra para a cidade, ao cuidado de uma madrinha-patroa que não
percebeu até que ponto o seu homem amadrinhava a rapariga. Quando a madrinha acordou,
a rua foi o caminho óbvio.
Naquela altura (tal como hoje e
assim sucessivamente) ela encontrou uma solução de vida: homens, homens de
preferência rentáveis. O seu destino, por essa altura, era pôr o corpinho a
render, para arredondar o miserável salário de vendedeira de copos num bar
manhoso do Intendente – hoje seria chamada de bar woman, profissão ainda não
inventada, mas muito equivalente. Era isso que a I. fazia: um quartito alugado
algures ali perto do bar. Depois de lavar os últimos copos, saía e, com sorte,
haveria um cliente ou um homem distraidamente à procura de distração. Tanto
podia esperá-la a ela como a outra qualquer… Mas a I. tinha sorte, era jovem,
jeitosinha, facilmente tinha quem a levasse. Sítios melhores ou piores, eram
eles quem escolhia. Já tinha conhecido casas lindas e ricas, já tinha andado
pelas betesgas, já lhe tinha acontecido de tudo, menos cair de amores a sério… Contudo,
houve tempos, mais miúda, em que sonhava com isso, ouvia falar as amigas dos
seus golpes de coração, havia aquela curiosidade, mas nada que a preocupasse em
demasia… sem que isso fosse um desejo, uma esperança sequer. Era algo que não
lhe dizia respeito. Não pensava.
O Jorge lembra hoje a sua
história com a Irene. Não era consumidor de putedo, nunca precisou, apesar de
ter sido curioso o bastante para ir com os compinchas do costume, à experiência
do costume. Sem grande continuidade e sem grandes memórias.
No entanto, aconteceu com essa
I., algo de extraordinário – uma puta que se apaixonou por ele. Uma puta que o
adotou, o levou para casa, o guardou na cama … como um menino seu.
Como é que tudo começou? Até
podia ter sido de uma maneira normal. Um jovem cadete vai beber um copo e dá
troco à menina do bar, a qual está lá para lhe dar troco e também para dar o
seu corpinho em troca de uns trocos.
Seria o normal. Mas não foi
assim.
Tudo começou por causa do
Sampaio. Jorge recorda que se não fosse o Sampaio e o seu mau feitio não tinha
sido adotado por uma profissional do ramo, ainda para mais jovem e apaixonada.
Sim, a culpa foi do Sampaio.
O Sampaio era um tipo desagradável,
em tempos tinha sido um gajo porreiro mas um trauma mais ou menos recente,
alterara-lhe os humores. Provavelmente, foi uma mudança conjuntural – mudar de
humores não é o mesmo que mudar de caráter, esse não muda assim.
Pois rezava a lenda (veiculada
pelos oficiais instrutores da AM) que o Sampaio era quase o santo protetor dos
jovens cadetes. O Sampaio era o dono do café – pastelaria de manhã e taberna à
tarde – ali em frente do Liceu Camões. À 6ª feira à tarde, era o porto de
chegada dos cadetes que saiam para o fim-de-semana. Saiam em bando, apressados
para ir à terra ou, mais frequentemente, para a vida lisboeta, o que acontecia
sobretudo a quem tinha família por perto ou hipóteses de gozar umas horas fora.
O regulamento disciplinar exigia que a saída se fizesse de farda. Absolutamente
necessário sair corretamente fardado, como forma de demostração pública da
força militar, da sua beleza, rigor e poder. Era assim! Havia que cumprir.
Claro que a primeira prioridade, em especial para os mais atrevidos e
espertalhotes, era despir a farda … e ir gozar a vida à paisana. Descartar-se
do invólucro militar, era urgente, havia que ser um civil anónimo, igual aos
outros rapazes, circular e viver, como aos dezoito, vinte anos se gosta de
viver… ou seja, tudo ao mesmo tempo e apressadamente.
Passado o portão da escola, a
primeira corrida era para o café do Sampaio – apelidado oficialmente de A Ideal
das Beiras – com o objetivo aparente de beber uma bica mas com uma urgência
maior que era ir à retrete dos fundos, despir a farda e trocar de roupa com o
fatinho que levavam na mala. Era um corropio, a dita casinha dos fundos era
pequena e porca, a clientela era muita e tinha pressa. Uns empurravam-se aos
outros, um chinfrim de frases soltas, gargalhadas e atropelos, galarotes novos,
contentes consigo próprios e com o tempo que iam viver. Uns ficavam ao balcão e
entravam numa de dichotes, cada qual mais parvo, afirmativos da sua
masculinidade criança. O senhor Sampaio vira passar gerações de cadetes
palermas e até os acarinhava, fechando os olhos ao uso interesseiro do seu espaço
mais apetecido, pequeno mas de grande utilidade.
Nos últimos tempos, porém,
andava macambúzio, irritadiço e especialmente chato para os militarzinhos do
edifício da frente. Dizia-se que lhe tinha morrido um filho em África, na
guerra. E que, desde aí ele mudara, transtornado, sem paciência para tudo o que
metesse tropa. Mas a bem dizer essa história devia ser falsa, afinal nunca
ninguém lhe conhecera um filho, mesmo os sargentos mais antigos que há muito
frequentavam o café.
Naquele dia, porém, o Sampaio
mostrou quão mal estava. Era mais uma sexta feira como as outras. Um dos
cadetes começou uma conversa tola a propósito do lanche – ó Sampaio, tens cá
paio? Era uma bucha de paio, para levar de farnel.
Ao que se juntou o compincha
do lado: Com paio ou sem paio, ó Sampaio? Porque o paio, se é do Sampaio,
queremos saber de que parte do dito é o paio. Se vem do Sam de cima ou do Sam
de baixo, porque se ele é sem…paio então é porque não tem paio e nós não
levamos um pão ser saber de onde vem o que está lá dentro. Se ele é com…paio,
então podemos arriscar a ser do paio de baixo e nós não somos desses. Ou será
que por aí não há paio, ó Sampaio? Os disparates – que como todos sabem – não
pagam imposto e são de uso livre, continuaram num tom cada vez mais
destrambelhado.
O Sampaio aí passou-se.
Tinham-lhe tocado num ponto sensível, absolutamente insuportável, pela memória
atiçado de um trauma recente. O Sampaio, que já não andava bem, endoidou mesmo,
rodou um braço sobre o balcão e foi uma razia de estragos. Com fúria e sem
tino, varreu tudo com o braço, uma chuva de coisas a cair – copos, chávenas,
cinzeiros (sim, ainda se fumava), um estaminé dos furos dos chocolates Regina,
um vasito de flores secas que a tia Arlete, velhota da casa da frente, lhe
tinha dado talvez porque a planta já não andava com muita saúde lá em casa, por
via das visitas frequentes do gato. Ao mesmo tempo que caía uma caixa de limões
no pé de um dos presentes e este saltava de dor e se sentava derrotado e em
peso sobre a mala de um outro, ouve-se um grito na casa de banho. Um bivaque mergulhado
na sujeira da retrete, com a ideia peregrina de tentar pescar uma nota de 20
escudos – caída do bolso da farda e que tanta falta fazia para a noitada de
sábado – uma mão que foi atrás, salvar o bivaque e a sua cativa nota e que
ficou entalada, cortada e ferida na loiça rachado do dito buraco. Não se pode
dizer que o ambiente fosse de gritos e histerismos, não, eles eram homens – o
desatino era barulhento, ecoava com um som fundo que aliava o peso da desgraça
vivida naquele espaço à parte cómica da retrete, alvo de troça e de risos. A
cena poderia ter continuado por mais tempo, mas acabou quase de repente, aos
poucos perceberam que a cara do Sampaio estava tão transtornada que o braço
sangrante do cadete – finalmente retirado a custo e a golpe de mais ferida de
dentro do inopinado sítio – passou para segundo plano. Afinal a nota
salvara-se, o bivaque seria lavado por alguma mãe ou irmã generosa, com sorte e
sol, o cheirete passaria. O bravo e ferido jovem recuperaria, a troco de umas
gotas de aguardente e de uma ligadura improvisada. Mas o Sampaio não. O Sampaio
continuava branco e quando recuperou um pouco o tino, só disse: Na minha casa,
nunca mais! Isto aqui não é vestiário de marmanjos, acabou!
A razão para a excessiva reação
do Sampaio só mais tarde a vieram a saber. Naquele dia, tudo lhes pareceu
dramático (para não dizer trágico, porque efetivamente ninguém morreu) e
injustificado. Afinal, os cadetes eram habitualmente espevitados e verbalmente
desapropriados. Pensando bem, aquela rábula do com paio fora um pouco ofensiva,
mas mesmo assim não era expetável tanto desatino.
O certo é que a partir daquele
dia, os cadetes tiveram que encontrar outras formas de se safarem da farda, se
queriam viver uma boémia civil, por um dia, uma noite que fosse.
E assim, quem não tinha
família ou lugar onde deixar a farda, andaria tristemente penando uma vida de
bom comportamento, um cinema, um chá dançante (para os mais bem relacionados),
ficando os programas mais pícaros para os outros, os sem farda. Talvez esta
visão das coisas não passasse de uma falsa ideia, fruto do imaginário juvenil e
masculino, próprio de quem anda à procura do lado mais escuro, desconhecido e
por isso potencialmente mais interessante da vida.
Uma tarde qualquer, depois de
tudo, um grupo de cadetes discutia os estranhos acontecimentos do café-vestiário.
A malta tinha assentado arreais numa tasca do Intendente, por ali ficou a
lamentar-se e a rir a propósito da questão de desroupamento desejado.
Á saída, foram-se dispersando
e o Jorge tinha à sua espera uma miúda alta, um pouco macilenta e de sorriso
aberto para si. Não disse nada, encostou o seu passo ao dele, foi andando … e
sorrindo. Tinha um olhar escuro e distante que contrastava com o sorriso
alegre, os olhos não combinavam com a boca, tinha um corpo bem feito e mal
vestido, uma postura que não ficava mal ao lado do Jorge, um passo rápido …
enquanto o dele abrandava agora. Levou algum tempo a falar, em geral, eram os
homens que falavam, ela limitava-se a anuir com a proposta, a ir ou a não ir. Às
vezes, o não-ir não era opção, mas adiante.
Daquela vez quem falou foi
ela. Queres vir comigo, tenho um quarto que te posso emprestar para deixares a
farda e ires à tua vida. Ele foi. Foi, despiu a farda e tudo o mais. Foi e
ficou, com a Irene, encantada com o seu achado, aninhados na caminha estreita
daquele quartinho estreito, num quarto andar tipo mansarda de um prédio velho.
Combinaram um pequeno negócio:
alugar o uso do quarto para ele deixar a farda, tal qual café do Sampaio, em
dias de saída.
O que se passou a seguir foi
que o negócio não vingou. Não por falta do cadete, que o Jorge agarrou a
oportunidade, mas porque a Irene não aceitou dinheiro. Ele passou a ir mais
vezes ao bar da Irene, bebia um copo, deixava uma gorjeta e sentia-se mais
confortável pela compensação. Quanto ao quarto, por lá deixava as suas coisas e
dormia sempre que a sua agenda o fixava em Lisboa. Era um acordo muito
razoável, prático para ele. Para ela, era um sonho. Adorava o seu valete de
copas, estava senão apaixonada pelo menos enleada, ele não era igual aos seus
outros passantes.
Este adormecia cedo, hábitos
rurais ou talvez apenas o seu bio-ritmo, vinha cansado de uma semana de
instrução. Caía na cama e adormecia rápido. Além disso, ela regressava tarde, o
tasco tinha gente pela noite fora, chegava ao quarto e encontrava-o adormecido.
Metia-se na cama, apertadinha, quente e feliz. Sonhava com o seu príncipe e
quando acordava, muitas vezes confirmava que o amor realmente era um sonho, ele
já não estava lá. Ele tinha os seus horários e ela dormia até tarde, para
descansar do trabalho noturno. Outras vezes, por alegria, coincidiam no tempo e
no espaço, cumprindo-se a juventude dele e o devaneio dela, com o fulgor expetável.
Hoje, visto à distância, esta
história parece-lhe um retrato mas em versão negativo. A lembrança do não feito
sobrepõe-se ao feito. O preto no lugar do branco, o branco no lugar do preto. O
que o marcou não foram as cambalhotas valentes que certamente aconteceram.
Dessas teve muitas e boas ao longo da vida, não se pode queixar. O que ficou de
excecional foi a memória das noites adormecidas, sozinho naquela cama demasiado
pequena, que partilhavam por turnos, abdicando preguiçosamente do prazer
oferecido, trocado por uma noite de sono. Esqueceu calores e acrobacias
testadas. Lembrou os estados de sonolência com uma mulher jovem ao lado, corpo
adormecido que muitas vezes não usou. O que ficou foi o mundo ao contrário: o
sujeito passivo e o sujeito ativo invertidos, face ao padrão habitual. Não foi
ele que procurou mulher no trottoir do Cais do Sodré, que escolheu entre as
várias propostas tristemente coloridas, ditado pela urgência do corpo. Foi ela
que o elegeu. Nunca saberá se foi levada pelo desejo de concretizar um ideal
romântico ou se apenas o fez inconscientemente para lavar os olhos e a alma num
rapaz bonito, saudável. Ou se foi porque, apesar do seu toque maroto, ele lhe
parecia confiável.
Miúdo maroto … tão próximo do
velho maroto, que hoje se avantajou sobre a I. presente. Maroto não é conceito
que se aplique a um velho, se esta história se soubesse seria apelidado de
velho javardo, no mínimo, tarado e sem pudor. Babado por uma rapariga nova e apetitosa.
Posta a seu jeito por simpatia, interesse, quiçá por gozo real, pelo prazer de
se deixar derreter sem responsabilidades e sem rasto, num ato entre o obsceno e
o infantil.
A I. de hoje e a de ontem.
Ambas viram nele a bondade escondida por de dentro do desejo carnal, a bondade tão
difícil de identificar, porque o pudor tem por norma escondê-la. Há mais primor
em usar o mal, como capa ou como arma. Ser duro é uma vaidade, ser bom uma
cobardia. Uma incongruência: ter a coragem de ser cobardemente bom, fardado de
gabirú predador.