Ele há primas e primas!
Há primas de quem gostamos e outras que são umas grandes
chatas. Umas são úteis e presentes, outras conhecemos vagamente e nada nos
dizem.
Curiosamente, todas elas mantêm o nome de prima, mesmo não
sendo primeiras no nosso coração.
Algumas são bem secundárias. Injustiça que a genética nunca poderá
resolver!
Mas hoje venho aqui para contar a história de uma prima verdadeira,
uma prima primeira e premiada - a prima Antónia, mulher de leis, sangue na
guelra e mão na anca. Não, não tinha prática de varina nem de peixeira, a mão
na anca é em sentido figurado. Se bem que, por vezes quando discursava na barra
dos tribunais, lhe apetecesse tal gesto. Advogada de causas duras, de gente
dura a cheirar a peixe, a vício, a mundo pesado, de barra. Mulher habituada a
vencer - a bem ou a mal - não por si mas pelo outros, a quem ajudava com gosto
e que com gosto lhe pagavam para os defender,
Se fosse americana estaria rica. Em Portugal, não se enrica assim
no submundo dos pequenos criminosos. Era uma mulher vistosa, não tão chique
como aquelas das séries televisivas, mas que dava nas vistas e merecia
comentários... nos meandros das cadeias, nos corredores dos tribunais...
- "Quem te prendia bem era eu", era o mínimo onde o
piropo javardo podia chegar.
- “Um juiz assim até se distrai e gagueja a sentença”.
De entre os vários sucessos profissionais da prima Antónia, houve
um especialmente útil para o seu primo António.
Ao contrário da sua efusiva prima-irmã, António era um tipo
pacato, apagado mesmo… sem ambição, pairava sobre a vida com uma ligeireza
desinteressada, sem o gene da guerrilha que coube à prima por inteira.
Um dia, António concorreu a um concurso para admissão na função
pública, em que exigiam licenciatura em Direito, para a carreira de técnico
superior. Na altura dava aulas numa escola secundária, horários curtos, salário
ainda mais curto. Andava descontente. No entanto, deixava-se estar, era pouco ativo
na busca de uma vida melhor, lunático, escrevia poemas nos cafés nas muitas
horas livres que o trabalho lhe deixava. E sonhava casar, lia romances e
sonhava… Também aqui era pouco determinado, sonhava talvez que um dia uma
menina reparasse nele, no seu ar compenetrado a escrever poemas e de repente
lhe oferecesse flores, ou beijos, ou poesia escrita mesmo ali num guardanapo.
Nada acontecia, porque ele nada fazia.
Um dia, porém, empurrado por uma colega, teve um assomo de ambição
e concorreu a um anúncio público. Era para um departamento importante, ligado
ao governo, para assessoria jurídica especializada na área educativa. Ele achou
que talvez fizesse sentido: Direito era a sua formação e de educação sabia o
muito que os galfarros de 15 anos lhe ensinavam todos os dias, na escola. Se
alguém podia testemunhar a complexidade da tarefa educativa era ele… muitos
anos de aplicação de várias metodologias educativas próprias. Pensou mesmo em
escrever um manual: “Como sobreviver a 30
malfeitores de hormonas em riste, sem lhes pregar um par de estalos a cada 5
minutos”. Tinha técnicas fantásticas e podia gabar-se de nunca ter perdido
o tino. Quando as coisas começavam a ficar feias, fechava os olhos, respirava
fundo e pensava: “Pior do que estes miúdos são os colegas que me puxam para
tomar café na sala de professores”. Tentava escapar sempre que podia ao
convívio e a multidões, evitava sobretudo uma certa colega despenteada - de
cabelo e de mente - fanática militante de tudo o que havia para militar, de
quem até o delegado sindical fugia por não aguentar tanta militância e
capacidade reivindicativa.
Não obstante, naquele dia, a senhora desmiolada pespegou-lhe com o
Diário da República à frente e disse:
- António, tens de concorrer a isto!
Ele só
para não a ouvir, encheu-se de brios, puxou por uma réstia de ambição e de
esperança e lá enviou o requerimento. Seis meses depois, a solícita colega apresentou-lhe
o Diário da República com os resultados do concurso. Tinha ficado em 2º lugar,
a escassos pontos do primeiro classificado. Encolheu os ombros, levou a
fotocópia para casa, só para não desfazer na boa vontade da colega e falou por
acaso no assunto à prima, que passou lá em casa ao final da tarde.
Antónia
olhou distraidamente para a fotocópia do jornal oficial, caíram-lhe os olhos na
lista nominativa dos candidatos e deu um salto da cadeira. António pensou que
era mais uma histeria qualquer da prima.
Ela disse:
- Esse Manuel Osório de Sousa é falso!
Ele perguntou:
- O candidato que ganhou é falso? Que disparate Antónia, se está
aqui é porque existe!
- Claro que existe e até sei quem é. O que é falsa é a
candidatura, ele não tem os requisitos necessários para ir a concurso. Tens de
impugnar esta farsa!
Antónia – furibunda e esvoaçante de gestos e de roupa – circulava pela
sala de António, contando o que sabia sobre o dito candidato ganhador. Disse
que o tinha conhecido como solicitador num bairro problemático dos arrabaldes.
Começara por ganhar dinheiro tratando de assuntos administrativos e fiscais junto
de máfias sub-urbanas. Tinha mudado o seu escritório para Lisboa e sabia que
agora estava mais bem relacionado, fruto sabe-se lá de que negociatas e trocas
de favores. O rapaz era esperto mas não tinha habilitações, talvez tivesse
frequentado Direito, por pouco tempo e com passagens administrativas, nos anos
a seguir ao 25 de Abril. Mas estava certa de que não tinha feito nenhuma
licenciatura.
No dia seguinte, arrastando um António meio contrariado e receoso,
dirigiu-se ao departamento público responsável pelo tal concurso. Os dois primos
entraram na receção, edifício antigo da baixa lisboeta, onde reinava uma paz
chamada de monotonia e havia um cheiro a pó de repartição pública à moda
antiga. No átrio amplo e cinzento, apenas duas pessoas – a recepcionista e o
segurança. Ela era uma espécie de carro de combate com bigode, quadrada,
morena, cara de susto, talvez tivesse uma verruga pilosa, mas se não tinha é
como se tivesse... Parecia intemporal, estaria ali há quarenta anos, com o
mesmo cabelo preto, sem corte definido e provavelmente sem tinta, porque o espirito
do lugar - qual formol - o mantinha sempre igual. Contrastava como o jovem
segurança, novinho e magro, na sua farda bem desenhada e ornada com o logotipo
da empresa.
A advogada avançou decidida e pediu para ser recebida pela doutora
presidente do júri, que assinara os resultados do concurso. Depois de contacto
telefónico, a rececionista informa:
- A Senhora Doutora está em reunião, não os pode receber.
Ao que Antónia responde:
- Nós esperamos por ela, mas não saimos daqui!
E acrescentou, no seu tom de voz sonoro e duro, como se o balcão
fosse a barra de um tribunal:
- Pode dizer à Senhora Doutora que vou dar ordens ao segurança
para encerrar a porta, de imediato, e chamar a polícia. Represento legalmente
este senhor – e apontou para António – venho consultar os documentos de um
processo de concurso e, eventualmente, impugnar os resultados. A polícia
evitará a saída de pessoas e de bens. A lei assiste-me, perante o risco de fuga
de documentos relevantes para o processo.
A atarantada funcionária acordou ao fim de um longo sono de
quarenta anos e, muito nervosa, desandou dali. Deixou o estupefacto segurança –
que, pelo sim pelo não, fechou a porta – largou o telefone fora do lugar e desandou
a correr pela escada acima, a caminho de uma qualquer autoridade do piso
superior.
Desce ao fim de pouco tempo, saltitante e trôpega pela mesma
escada antiga, agora mais sorridente, talvez aliviada e anuncia:
- O Senhor Diretor-Geral vem aí.
Fim de cena. Parecia uma peça em dois actos. O artista principal –
leia-se o dirigente máximo daquela organização – aparece, calmamente saído da
porta do elevador. Vem seguro, na aparência, mas delicado na abordagem, visando
pacificar eminente problema. Dirige-se cerimoniosamente à advogada, pedindo
credenciais. Enquanto a identificação se faz e o António é apresentado pela sua
representante Antónia, o Diretor olha em redor e fixa-se no segurança.
- E a porta? – perguntou, timidamente, o jovem segurança.
- Fechada! – respondeu o chefe.
E abalaram os três para o gabinete do Diretor.
Dois dossiers volumosos colocados sobre a mesa de reuniões, uma
consulta rápida e incisiva da senhora advogada e foi encontrado o documento do
crime – o cartão de inscrição na Ordem dos Advogados, apresentado pelo candidato
colocado em primeiro lugar era uma montagem – foto colada por cima de outra e
nome rasurado.
Também a certidão de habilitações – licenciatura em Direito pela
Universidade de Lisboa - em papel azul de vinte e cinco linhas, escriturada à
mão em bonita letra da suposta chefe de secretaria, tinha uma particularidade:
não dispunha de selo branco, nem qualquer tipo de carimbo. Alguém copiara a
minuta no papel adequado, com os dizeres adequados, mas era falsa.
- Crime muito pouco perfeito...– diria Antónia, rapidamente,
como era de seu timbre.
Perante a evidência do embuste e do arrazoado jurídico da prima
Antónia, o Diretor-Geral gaguejava uma conciliação qualquer...
Antónia sugeria veladamente existirem indícios de conivência entre
o candidato ganhador e a organização que abrira o concurso. A vaga para a qual
tinha sido aberto o concurso não resultava de uma real necessidade de serviço,
parecia tratar-se de um lugar criado especificamente para dar emprego ao tal
senhor... quiçá a troco de favores. Por isso o Diretor-Geral titubeava, dando a
entender que tinha sido por imposição superior – leia-se política – que o lugar
tinha sido criado e o perfil funcional desenhado... por medida.
Por acaso mesmo à medida e à sorte do António, jurista e professor
desinteressado. Quanto ao interessado naquele lugar, por sinal um posto mais
bem pago do que é comum na função pública, esse ficaria a ver navios, que é
como quem diz a ver o António navegar nas ondas da sua ambição. O António à
boleia de dito Manuel de Sousa – mafioso, jeitoso e bem relacionado nos
meandros dos jogos de interesses e da política – encontrou o seu rumo e uma
vida um pouco mais equilibrada.
O concorrente falsário retirou a candidatura e António avançou na
tabela classificativa. A prima Antónia negociou, de forma solene e
discretamente ameaçadora, como era seu timbre, o futuro de António. Contrapôs com
o silêncio de uma possível denúncia quanto aos contornos menos claros que
estiveram na base da criação do lugar e não avançou com a queixa por
desleixo/conivência na apreciação dos documentos concursais.
Ele há primas que fazem muito jeito!
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