quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

A Prima




Ele há primas e primas! 
Há primas de quem gostamos e outras que são umas grandes chatas. Umas são úteis e presentes, outras conhecemos vagamente e nada nos dizem. 
Curiosamente, todas  elas mantêm o nome de prima, mesmo não sendo primeiras no nosso coração.
Algumas são bem secundárias. Injustiça que a genética nunca poderá resolver!
Mas hoje venho aqui para contar a história de uma prima verdadeira, uma prima primeira e premiada - a prima Antónia, mulher de leis, sangue na guelra e mão na anca. Não, não tinha prática de varina nem de peixeira, a mão na anca é em sentido figurado. Se bem que, por vezes quando discursava na barra dos tribunais, lhe apetecesse tal gesto. Advogada de causas duras, de gente dura a cheirar a peixe, a vício, a mundo pesado, de barra. Mulher habituada a vencer - a bem ou a mal - não por si mas pelo outros, a quem ajudava com gosto e que com gosto lhe pagavam para os defender,
Se fosse americana estaria rica. Em Portugal, não se enrica assim no submundo dos pequenos criminosos. Era uma mulher vistosa, não tão chique como aquelas das séries televisivas, mas que dava nas vistas e merecia comentários... nos meandros das cadeias, nos corredores dos tribunais...
- "Quem te prendia bem era eu", era o mínimo onde o piropo javardo podia chegar. 
- “Um juiz assim até se distrai e gagueja a sentença”.
De entre os vários sucessos profissionais da prima Antónia, houve um especialmente útil para o seu primo António.
Ao contrário da sua efusiva prima-irmã, António era um tipo pacato, apagado mesmo… sem ambição, pairava sobre a vida com uma ligeireza desinteressada, sem o gene da guerrilha que coube à prima por inteira.
Um dia, António concorreu a um concurso para admissão na função pública, em que exigiam licenciatura em Direito, para a carreira de técnico superior. Na altura dava aulas numa escola secundária, horários curtos, salário ainda mais curto. Andava descontente. No entanto, deixava-se estar, era pouco ativo na busca de uma vida melhor, lunático, escrevia poemas nos cafés nas muitas horas livres que o trabalho lhe deixava. E sonhava casar, lia romances e sonhava… Também aqui era pouco determinado, sonhava talvez que um dia uma menina reparasse nele, no seu ar compenetrado a escrever poemas e de repente lhe oferecesse flores, ou beijos, ou poesia escrita mesmo ali num guardanapo. Nada acontecia, porque ele nada fazia.
Um dia, porém, empurrado por uma colega, teve um assomo de ambição e concorreu a um anúncio público. Era para um departamento importante, ligado ao governo, para assessoria jurídica especializada na área educativa. Ele achou que talvez fizesse sentido: Direito era a sua formação e de educação sabia o muito que os galfarros de 15 anos lhe ensinavam todos os dias, na escola. Se alguém podia testemunhar a complexidade da tarefa educativa era ele… muitos anos de aplicação de várias metodologias educativas próprias. Pensou mesmo em escrever um manual: “Como sobreviver a 30 malfeitores de hormonas em riste, sem lhes pregar um par de estalos a cada 5 minutos”. Tinha técnicas fantásticas e podia gabar-se de nunca ter perdido o tino. Quando as coisas começavam a ficar feias, fechava os olhos, respirava fundo e pensava: “Pior do que estes miúdos são os colegas que me puxam para tomar café na sala de professores”. Tentava escapar sempre que podia ao convívio e a multidões, evitava sobretudo uma certa colega despenteada - de cabelo e de mente - fanática militante de tudo o que havia para militar, de quem até o delegado sindical fugia por não aguentar tanta militância e capacidade reivindicativa.
Não obstante, naquele dia, a senhora desmiolada pespegou-lhe com o Diário da República à frente e disse: 
  - António, tens de concorrer a isto! 
Ele só para não a ouvir, encheu-se de brios, puxou por uma réstia de ambição e de esperança e lá enviou o requerimento. Seis meses depois, a solícita colega apresentou-lhe o Diário da República com os resultados do concurso. Tinha ficado em 2º lugar, a escassos pontos do primeiro classificado. Encolheu os ombros, levou a fotocópia para casa, só para não desfazer na boa vontade da colega e falou por acaso no assunto à prima, que passou lá em casa ao final da tarde. 
Antónia olhou distraidamente para a fotocópia do jornal oficial, caíram-lhe os olhos na lista nominativa dos candidatos e deu um salto da cadeira. António pensou que era mais uma histeria qualquer da prima.
Ela disse:
- Esse Manuel Osório de Sousa é falso!
Ele perguntou:
- O candidato que ganhou é falso? Que disparate Antónia, se está aqui é porque existe!
- Claro que existe e até sei quem é. O que é falsa é a candidatura, ele não tem os requisitos necessários para ir a concurso. Tens de impugnar esta farsa!
Antónia – furibunda e esvoaçante de gestos e de roupa – circulava pela sala de António, contando o que sabia sobre o dito candidato ganhador. Disse que o tinha conhecido como solicitador num bairro problemático dos arrabaldes. Começara por ganhar dinheiro tratando de assuntos administrativos e fiscais junto de máfias sub-urbanas. Tinha mudado o seu escritório para Lisboa e sabia que agora estava mais bem relacionado, fruto sabe-se lá de que negociatas e trocas de favores. O rapaz era esperto mas não tinha habilitações, talvez tivesse frequentado Direito, por pouco tempo e com passagens administrativas, nos anos a seguir ao 25 de Abril. Mas estava certa de que não tinha feito nenhuma licenciatura.
No dia seguinte, arrastando um António meio contrariado e receoso, dirigiu-se ao departamento público responsável pelo tal concurso. Os dois primos entraram na receção, edifício antigo da baixa lisboeta, onde reinava uma paz chamada de monotonia e havia um cheiro a pó de repartição pública à moda antiga. No átrio amplo e cinzento, apenas duas pessoas – a recepcionista e o segurança. Ela era uma espécie de carro de combate com bigode, quadrada, morena, cara de susto, talvez tivesse uma verruga pilosa, mas se não tinha é como se tivesse... Parecia intemporal, estaria ali há quarenta anos, com o mesmo cabelo preto, sem corte definido e provavelmente sem tinta, porque o espirito do lugar - qual formol - o mantinha sempre igual. Contrastava como o jovem segurança, novinho e magro, na sua farda bem desenhada e ornada com o logotipo da empresa.
A advogada avançou decidida e pediu para ser recebida pela doutora presidente do júri, que assinara os resultados do concurso. Depois de contacto telefónico, a rececionista informa:
- A Senhora Doutora está em reunião, não os pode receber.
Ao que Antónia responde:
- Nós esperamos por ela, mas não saimos daqui!
E acrescentou, no seu tom de voz sonoro e duro, como se o balcão fosse a barra de um tribunal:
- Pode dizer à Senhora Doutora que vou dar ordens ao segurança para encerrar a porta, de imediato, e chamar a polícia. Represento legalmente este senhor – e apontou para António – venho consultar os documentos de um processo de concurso e, eventualmente, impugnar os resultados. A polícia evitará a saída de pessoas e de bens. A lei assiste-me, perante o risco de fuga de documentos relevantes para o processo.
A atarantada funcionária acordou ao fim de um longo sono de quarenta anos e, muito nervosa, desandou dali. Deixou o estupefacto segurança – que, pelo sim pelo não, fechou a porta – largou o telefone fora do lugar e desandou a correr pela escada acima, a caminho de uma qualquer autoridade do piso superior.
Desce ao fim de pouco tempo, saltitante e trôpega pela mesma escada antiga, agora mais sorridente, talvez aliviada e anuncia:
- O Senhor Diretor-Geral vem aí.
Fim de cena. Parecia uma peça em dois actos. O artista principal – leia-se o dirigente máximo daquela organização – aparece, calmamente saído da porta do elevador. Vem seguro, na aparência, mas delicado na abordagem, visando pacificar eminente problema. Dirige-se cerimoniosamente à advogada, pedindo credenciais. Enquanto a identificação se faz e o António é apresentado pela sua representante Antónia, o Diretor olha em redor e fixa-se no segurança.
- E a porta? – perguntou, timidamente, o jovem segurança.
- Fechada! – respondeu o chefe.
E abalaram os três para o gabinete do Diretor.
Dois dossiers volumosos colocados sobre a mesa de reuniões, uma consulta rápida e incisiva da senhora advogada e foi encontrado o documento do crime – o cartão de inscrição na Ordem dos Advogados, apresentado pelo candidato colocado em primeiro lugar era uma montagem – foto colada por cima de outra e nome rasurado.
Também a certidão de habilitações – licenciatura em Direito pela Universidade de Lisboa - em papel azul de vinte e cinco linhas, escriturada à mão em bonita letra da suposta chefe de secretaria, tinha uma particularidade: não dispunha de selo branco, nem qualquer tipo de carimbo. Alguém copiara a minuta no papel adequado, com os dizeres adequados, mas era falsa.
- Crime muito pouco perfeito...– diria Antónia, rapidamente, como era de seu timbre.
Perante a evidência do embuste e do arrazoado jurídico da prima Antónia, o Diretor-Geral gaguejava uma conciliação qualquer...
Antónia sugeria veladamente existirem indícios de conivência entre o candidato ganhador e a organização que abrira o concurso. A vaga para a qual tinha sido aberto o concurso não resultava de uma real necessidade de serviço, parecia tratar-se de um lugar criado especificamente para dar emprego ao tal senhor... quiçá a troco de favores. Por isso o Diretor-Geral titubeava, dando a entender que tinha sido por imposição superior – leia-se política – que o lugar tinha sido criado e o perfil funcional desenhado... por medida.
Por acaso mesmo à medida e à sorte do António, jurista e professor desinteressado. Quanto ao interessado naquele lugar, por sinal um posto mais bem pago do que é comum na função pública, esse ficaria a ver navios, que é como quem diz a ver o António navegar nas ondas da sua ambição. O António à boleia de dito Manuel de Sousa – mafioso, jeitoso e bem relacionado nos meandros dos jogos de interesses e da política – encontrou o seu rumo e uma vida um pouco mais equilibrada.
O concorrente falsário retirou a candidatura e António avançou na tabela classificativa. A prima Antónia negociou, de forma solene e discretamente ameaçadora, como era seu timbre, o futuro de António. Contrapôs com o silêncio de uma possível denúncia quanto aos contornos menos claros que estiveram na base da criação do lugar e não avançou com a queixa por desleixo/conivência na apreciação dos documentos concursais.
Ele há primas que fazem muito jeito!



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