quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

A culpa foi do Sampaio







Jorge esfregava o polegar no dedo indicador, levemente colados um ao outro, húmidos, pegajosos, tocados daquele fluído translúcido que tão bem conhecia, cujo cheiro acre lhe parecia doce, pelas memórias que trazia de uma vida passada, uma vida em que as mulheres lhe marcaram as alegrias. Um cheiro estranhamente longínquo … porque já há algum tempo que se afastara dessas lides. As mulheres, dantes tão presentes, foram perdendo importância real. Seria desinteresse? Ou antes o resultado do natural e lento processo de envelhecimento? Não havendo ainda uma fraqueza física relevante, o certo é que já se anunciavam algumas mudanças, mais de postura perante as rotinas, as situações ou as pessoas com quem cruzava … do que falhanço efetivo ou decisão fundamentada de “fechar a loja”. Ele não tinha fechado a loja, deliberadamente, não assumia a falência do negócio, mas não ia lá todos os dias, pensando que não talvez não houvesse clientes ou por preguiça para os procurar, motivar. O certo é que andava esquecido da coisa. E agora inopinadamente ela estava ali – como prova material, o dedo molhado, o seu dedo que tinha estado lá, algures muito perto de um local de prazer, a caminho de uma intimidade não atingida mas sonhada … como se o passado fosse um filme visto ao contrário, de trás para a frente. Um dedo mergulhado num lago de prazer não acontecido. Um dedo, não. O seu próprio dedo, tão próximo desse lago, símbolo de uma ou antes de muitas memórias felizes.

Olhava para o dedo como um troféu, mas também com espanto. Ultimamente, parecia-lhe que o corpo se começava a esquecer de muitas coisas. Os sentidos estariam gastos? Talvez esbatidos, menos nítidos e funcionais. O olfato milagrosamente hoje funcionou muito bem e com ele arrastou outros sentidos. A visão por exemplo…
A visão ainda era a melhor porta de entrada para as emoções e para a pulsão sexual. Perante uma mulher fêmea (bonita ou feia, não importava), uma mulher que despertasse os sentidos, ele reagia normalmente bem, com desejo e alegria. Mas logo a seguir, esquecia. Algo lhe tomava a atenção – um recado a cumprir, um telefonema a fazer até certa hora, um neto a pedir atenção, uma boleia a dar à cara-metade – tanta coisa para fazer, tanta cabeça cheia de tarefas, tanta gente que lhe exigia trabalho de corpo ou de mente. De tal forma era arrastado para o trabalho a bem dos outros que, por vezes, até parecia que o corpo não era dele, mas um instrumento ao serviço de outrem.
Em tempos, o corpo dera-lhe muitas alegrias, agora afastava-se daquilo que ainda lhe podia dar. No entanto, hoje foi diferente. Parte de si voltou a ter um uso adolescente, de forma súbita e inesperada … aconteceu. A Irina que andava lá por casa, supostamente limpando, lavando e varrendo, atravessou-se-lhe à frente e pareceu-lhe especialmente dengosa.

A culpa era dele, porque não tinha perdido o jeito de gabirú, sempre com piropos brejeiros, uma mania tão antiga e tão automática que já nem dava conta do efeito que provocava. Mandava bocas amiúde, mas não parava para ver o efeito. Aquilo saia-lhe, a Irina já devia estar habituada, ria e continuava na sua faina … enquanto a patroa punha as suas trombas nº 1, se por acaso ouvia algo de mais avantajado.
Piropo inofensivo, porque protegido pelo local e pela sua pessoa: era um gabirú encartado, porém educado. E afinal de contas, elas gostam! Elas gostam, sempre gostaram de ser notadas, apreciadas como mulher, pelos seus atributos femininos, pela aura, pelo élan, por tudo aquilo que transmitem e que chega ao macho. Elas gostam mesmo que digam que não, mesmo que se afastem do intruso, mesmo que barafustem, se ofendam, se empinem ou gritem, mesmo que se queixem de assédio… ou lhe preguem um par de estalos. Ao Jorge já tinha acontecido um pouco de tudo isso, ao longo da sua vida já longa. Ele era (ainda é?) metediço, não perde a oportunidade de testar o seu sorriso maroto, capaz de desarmar qualquer uma. Um sorriso picante, apetitoso, maravilhoso. Um sorriso promessa de pecado e de alegria, um sorriso capaz de afagar a auto-estima à mais triste e deprimida das mulheres. Um sorriso democrático: capaz de levantar o ânimo às feias, às jeitosas, às super-auto-cotadas, às pobres ou humildes mulheres comuns, às tias (pobres ou ricas), às mal–amadas, às apaixonadas sempre prontas para adorar o amor em qualquer altar onde o vislumbrem.


O sorriso do Jorge era isso tudo…
Mas ele só o usava com quem era alegre e pronta para o receber, só se dirigia a quem tinha o mínimo de sex appeal, seja lá isso o que for, só dava a quem estava preparado para o receber, mesmo que não soubesse, mesmo que só teoricamente estivesse predisposto sabe-se lá a quê.
Foi o que aconteceu naquela manhã em que a patroa saiu para mais um compromisso de beleza (massagem ou manicure). A Irina andava por ali e as hormonas dele, um pouco adormecidas, acordaram. Vai daí, foi um passo até pôr a mão e, outro, para que a mão se instalasse na cintura da pequena ucraniana (nada pequena por sinal). E da cintura descesse um pouco mais abaixo, naquela zona perigosa da continuação das costas, operação permitida pelo facto de as calças de trabalho serem de tecido flexível, permeável à passagem de uma mão – um misto de algodão e de licra. Calça de trabalho, boa para as limpezas, muito prática, também servia para ir para a ginástica ou até à praia, sei lá! A roupa das mulheres, hoje em dia, serve para tudo. Pode-se ir a qualquer lado com qualquer tipo de trapo, quase tudo fica bem, muda-se a quinquilharia de apoio e o traje compõe-se, o trapinho do china fica ótimo. As calças de licra da Irina, com um bom vison em cima, davam para ir dar um pulinho ao cocktail da embaixada, desde que o cabelo, os brincos e o pedigree da sua proprietária ofuscassem a multidão.

Mas voltando à licrazinha tão prática da Irina e à mão deslizante do Jorge … ela continuou pelo fundo das costas, passou a fronteira da cintura - qual Equador, entre o hemisfério norte e o hemisfério sul – abrandou naquela curva que anuncia a subida do bumbum. E foi por aí que se fixou algum tempo, provando a macieza do local, aproveitando a liberalidade com que a I. se deixava tocar, preenchendo o tempo com risos e áis … forma que ela encontrou para ocupar aquele minuto comprometedor e promissor, para fazer render o prazer, para preencher a atrapalhação. Confinou aquele avanço a um espaço temporal razoavelmente decente, entre o primeiro toque dele e o necessário não dela. Sim, porque há um procedimento protocolar nestas coisas. A ele compete-lhe avançar e a ela dizer que não. Fica bem! A Irina era boa rapariga, tinha um mínimo de decência, sabia que não podia mostrar demasiado facilitismo, por isso foi dizendo que não, mas fazendo que sim.
E neste intervalo de tempo, esticado até ao limite do aceitável, ambos gozaram, saborearam lenta e gostosamemente o proibido. De tal modo que ainda houve tempo para ela se virar, quem sabe se com a intenção de dizer acabou, já basta, não seja malandro, porte-se bem … ainda houve tempo para a mão deslizar da parte fôfa de trás para o território da frente daquele planeta maravilhoso. Agora com a mão claramente pousada no hemisfério sul, viajante num espaço territorial mais líquido, ele deixou de pensar, não chegou sequer a interrogar-se sobre a localização geográfica da sua mão. Sentiu um calor percorre-lhe o corpo e uma rigidez airosa, inabitual e feliz começando a dar-lhe ânimo. Todo ele era estado líquido, por dentro e por fora, estado de desejo vagueando por local de promessas. Regressou ao passado, a uma geografia conhecida mas agora vaga, imprecisa. Uma coisa era certa: ali não era o deserto do Sarah, com a aridez das últimas viagens empreendidas com a sua princesa residente.
Ali, o seu dedo arrumado entre a licra e a doçura da Irina, era um barco deslizante na água turva e espessa dos sentidos … navegando talvez num escuro rio africano, talvez numa zona húmida amazónica. Não interessa. O que importa é que começou aí um pequeno safari hormonal e emocional, no local onde os seus dedos tocaram, onde se besuntaram, onde recolheram o cheiro das memórias antigas e boas … onde o passado se confundiu com o presente. Onde o território Irina, passageiro e fugidio lhe trouxe à memória outra I. – uma Irene portuguesa, 50 anos atrás.

Foi o cheiro, foi a gelatina colada aos dedos retirados (finalmente) do sossego ou do dessassosego escondido e íntimo da Irina, que lhe lembrou uma outra história, tão antiga.
Uma história de quando ele jovem, tão jovem que seria de esperar que não tivesse sossego de corpo. Tão jovem como hoje é, neste preciso momento em que toca os seus dedos aguados de desejo…de anúncio de prazer.

Uma história com uma Irene, cujo cheiro de fêmea, a Irina de agora lhe fazia lembrar.
Uma outra I. do seu passado, que o amou? Talvez, nunca saberá … mas certamente foi alguém a quem ele despertou sentimentos românticos, amorosos, afetuosos e não necessariamente carnais.

Ao contrário da presente I., que lhe suscitou o interesse animal, por via de algo que estava semi-adormecido, a  outra I. de há 50 anos, gostara dele,  porque ele era bonito. Alguém, que não ele, acrescentaria bonito e bom. Tão simples, assim!
Dezoito anos, 1,80m, pele branca e rosada (quase de menina), uma postura sem defeito, pernas altas e direitas, um todo que atraia as mulheres, talvez porque era um misto de carinha de menino do coro com ar de pecado. Foi certamente a postura militar, ia a caminho disso, para já apenas um potencial garboso oficial, em fase de preparação. E foi a farda, claro! As fardas e os carecas são vantagens competitivas com uma longa história no sucesso masculino. Foi tudo isto que a Irene viu (as outras também!), mas ela viu mais, viu a bondade; porque ela conhecia bem os homens, sabia ver para além da beleza e da farda, soube reconhecer um coração para colar à sua tristeza.

Ele estava há um ano na Academia Militar, ali para os lados da Estefânia. Uma juventude entre o campo onde nasceu e Coimbra onde estudou. Boa alimentação da vida rural abastada, uns genes adequados, praticante de exercício físico dentro e fora de portas, um crescimento saudável, deu um rapaz bonito. O treino militar do último ano, a par do crescimento ainda em andamento fizeram o resto. A vida na cidade, deu-lhe um toque diferente no polimento social que um bom rapaz da província não tinha, transformando um estudante provinciano inteligente num príncipe. Sempre teve mulheres, mesmo na aldeia … a vivência sexual foi mais rica e mais livre do que a maior parte dos rapazes do seu tempo. Não viveu as proibições, inibições e demais consequências das habituais lengalengas religiosas ou familiares. Ou se as teve, contornou-as, não o marcaram nem determinaram o seu percurso masculino, como tantos infelizes jovens dessas gerações da noite escura. Teve sorte, nasceu no sítio certo, na família certa ou com a cabeça no lugar certo. Também o meio rural era permissivo para os rapazes e havia algumas raparigas a jeito, vagas primas, vagas ajudas domésticas ou rurais. Ofereciam-se, ele estava lá… Não sabe porque foi assim, mas sempre foi assim, pela vida fora. Jovem ou adulto, elas gostavam dele e ele deixava.

Com a Irene de Lisboa, foi diferente. Não foi mais uma agradável aventura, uma voltinha atrás das moitas lá da terra. A I. não era uma menina bem, nem uma saloia da aldeia alucinada pelo menino bonito de sorriso maroto e muito virado para a brincadeira. Ela não procurava nele a tentação, o gozo de pisar o risco, a novidade, sensações libidinosas desconhecidas mas antecipadas. A I. não era uma menina ingénua, carente de experiência de vida, ansiosa para saber como era um homem. A I. era nova, talvez um pouco mais velha do que ele, mas ainda com a frescura em ordem. Mas não era uma menina como as outras.
A I. de Lisboa era uma puta!
Sim, isso mesmo: uma cachopa pobre que se desembrulhava como podia. Sobrevivia a uma emigração forçada, vinda da terra para a cidade, ao cuidado de uma madrinha-patroa que não percebeu até que ponto o seu homem amadrinhava a rapariga. Quando a madrinha acordou, a rua foi o caminho óbvio.

Naquela altura (tal como hoje e assim sucessivamente) ela encontrou uma solução de vida: homens, homens de preferência rentáveis. O seu destino, por essa altura, era pôr o corpinho a render, para arredondar o miserável salário de vendedeira de copos num bar manhoso do Intendente – hoje seria chamada de bar woman, profissão ainda não inventada, mas muito equivalente. Era isso que a I. fazia: um quartito alugado algures ali perto do bar. Depois de lavar os últimos copos, saía e, com sorte, haveria um cliente ou um homem distraidamente à procura de distração. Tanto podia esperá-la a ela como a outra qualquer… Mas a I. tinha sorte, era jovem, jeitosinha, facilmente tinha quem a levasse. Sítios melhores ou piores, eram eles quem escolhia. Já tinha conhecido casas lindas e ricas, já tinha andado pelas betesgas, já lhe tinha acontecido de tudo, menos cair de amores a sério… Contudo, houve tempos, mais miúda, em que sonhava com isso, ouvia falar as amigas dos seus golpes de coração, havia aquela curiosidade, mas nada que a preocupasse em demasia… sem que isso fosse um desejo, uma esperança sequer. Era algo que não lhe dizia respeito. Não pensava.

O Jorge lembra hoje a sua história com a Irene. Não era consumidor de putedo, nunca precisou, apesar de ter sido curioso o bastante para ir com os compinchas do costume, à experiência do costume. Sem grande continuidade e sem grandes memórias.
No entanto, aconteceu com essa I., algo de extraordinário – uma puta que se apaixonou por ele. Uma puta que o adotou, o levou para casa, o guardou na cama … como um menino seu.
Como é que tudo começou? Até podia ter sido de uma maneira normal. Um jovem cadete vai beber um copo e dá troco à menina do bar, a qual está lá para lhe dar troco e também para dar o seu corpinho em troca de uns trocos.
Seria o normal. Mas não foi assim.
Tudo começou por causa do Sampaio. Jorge recorda que se não fosse o Sampaio e o seu mau feitio não tinha sido adotado por uma profissional do ramo, ainda para mais jovem e apaixonada.
Sim, a culpa foi do Sampaio.
O Sampaio era um tipo desagradável, em tempos tinha sido um gajo porreiro mas um trauma mais ou menos recente, alterara-lhe os humores. Provavelmente, foi uma mudança conjuntural – mudar de humores não é o mesmo que mudar de caráter, esse não muda assim.

Pois rezava a lenda (veiculada pelos oficiais instrutores da AM) que o Sampaio era quase o santo protetor dos jovens cadetes. O Sampaio era o dono do café – pastelaria de manhã e taberna à tarde – ali em frente do Liceu Camões. À 6ª feira à tarde, era o porto de chegada dos cadetes que saiam para o fim-de-semana. Saiam em bando, apressados para ir à terra ou, mais frequentemente, para a vida lisboeta, o que acontecia sobretudo a quem tinha família por perto ou hipóteses de gozar umas horas fora. O regulamento disciplinar exigia que a saída se fizesse de farda. Absolutamente necessário sair corretamente fardado, como forma de demostração pública da força militar, da sua beleza, rigor e poder. Era assim! Havia que cumprir. Claro que a primeira prioridade, em especial para os mais atrevidos e espertalhotes, era despir a farda … e ir gozar a vida à paisana. Descartar-se do invólucro militar, era urgente, havia que ser um civil anónimo, igual aos outros rapazes, circular e viver, como aos dezoito, vinte anos se gosta de viver… ou seja, tudo ao mesmo tempo e apressadamente.

Passado o portão da escola, a primeira corrida era para o café do Sampaio – apelidado oficialmente de A Ideal das Beiras – com o objetivo aparente de beber uma bica mas com uma urgência maior que era ir à retrete dos fundos, despir a farda e trocar de roupa com o fatinho que levavam na mala. Era um corropio, a dita casinha dos fundos era pequena e porca, a clientela era muita e tinha pressa. Uns empurravam-se aos outros, um chinfrim de frases soltas, gargalhadas e atropelos, galarotes novos, contentes consigo próprios e com o tempo que iam viver. Uns ficavam ao balcão e entravam numa de dichotes, cada qual mais parvo, afirmativos da sua masculinidade criança. O senhor Sampaio vira passar gerações de cadetes palermas e até os acarinhava, fechando os olhos ao uso interesseiro do seu espaço mais apetecido, pequeno mas de grande utilidade.

Nos últimos tempos, porém, andava macambúzio, irritadiço e especialmente chato para os militarzinhos do edifício da frente. Dizia-se que lhe tinha morrido um filho em África, na guerra. E que, desde aí ele mudara, transtornado, sem paciência para tudo o que metesse tropa. Mas a bem dizer essa história devia ser falsa, afinal nunca ninguém lhe conhecera um filho, mesmo os sargentos mais antigos que há muito frequentavam o café.
Naquele dia, porém, o Sampaio mostrou quão mal estava. Era mais uma sexta feira como as outras. Um dos cadetes começou uma conversa tola a propósito do lanche – ó Sampaio, tens cá paio? Era uma bucha de paio, para levar de farnel.
Ao que se juntou o compincha do lado: Com paio ou sem paio, ó Sampaio? Porque o paio, se é do Sampaio, queremos saber de que parte do dito é o paio. Se vem do Sam de cima ou do Sam de baixo, porque se ele é sem…paio então é porque não tem paio e nós não levamos um pão ser saber de onde vem o que está lá dentro. Se ele é com…paio, então podemos arriscar a ser do paio de baixo e nós não somos desses. Ou será que por aí não há paio, ó Sampaio? Os disparates – que como todos sabem – não pagam imposto e são de uso livre, continuaram num tom cada vez mais destrambelhado.
O Sampaio aí passou-se. Tinham-lhe tocado num ponto sensível, absolutamente insuportável, pela memória atiçado de um trauma recente. O Sampaio, que já não andava bem, endoidou mesmo, rodou um braço sobre o balcão e foi uma razia de estragos. Com fúria e sem tino, varreu tudo com o braço, uma chuva de coisas a cair – copos, chávenas, cinzeiros (sim, ainda se fumava), um estaminé dos furos dos chocolates Regina, um vasito de flores secas que a tia Arlete, velhota da casa da frente, lhe tinha dado talvez porque a planta já não andava com muita saúde lá em casa, por via das visitas frequentes do gato. Ao mesmo tempo que caía uma caixa de limões no pé de um dos presentes e este saltava de dor e se sentava derrotado e em peso sobre a mala de um outro, ouve-se um grito na casa de banho. Um bivaque mergulhado na sujeira da retrete, com a ideia peregrina de tentar pescar uma nota de 20 escudos – caída do bolso da farda e que tanta falta fazia para a noitada de sábado – uma mão que foi atrás, salvar o bivaque e a sua cativa nota e que ficou entalada, cortada e ferida na loiça rachado do dito buraco. Não se pode dizer que o ambiente fosse de gritos e histerismos, não, eles eram homens – o desatino era barulhento, ecoava com um som fundo que aliava o peso da desgraça vivida naquele espaço à parte cómica da retrete, alvo de troça e de risos. A cena poderia ter continuado por mais tempo, mas acabou quase de repente, aos poucos perceberam que a cara do Sampaio estava tão transtornada que o braço sangrante do cadete – finalmente retirado a custo e a golpe de mais ferida de dentro do inopinado sítio – passou para segundo plano. Afinal a nota salvara-se, o bivaque seria lavado por alguma mãe ou irmã generosa, com sorte e sol, o cheirete passaria. O bravo e ferido jovem recuperaria, a troco de umas gotas de aguardente e de uma ligadura improvisada. Mas o Sampaio não. O Sampaio continuava branco e quando recuperou um pouco o tino, só disse: Na minha casa, nunca mais! Isto aqui não é vestiário de marmanjos, acabou!

A razão para a excessiva reação do Sampaio só mais tarde a vieram a saber. Naquele dia, tudo lhes pareceu dramático (para não dizer trágico, porque efetivamente ninguém morreu) e injustificado. Afinal, os cadetes eram habitualmente espevitados e verbalmente desapropriados. Pensando bem, aquela rábula do com paio fora um pouco ofensiva, mas mesmo assim não era expetável tanto desatino.
O certo é que a partir daquele dia, os cadetes tiveram que encontrar outras formas de se safarem da farda, se queriam viver uma boémia civil, por um dia, uma noite que fosse.
E assim, quem não tinha família ou lugar onde deixar a farda, andaria tristemente penando uma vida de bom comportamento, um cinema, um chá dançante (para os mais bem relacionados), ficando os programas mais pícaros para os outros, os sem farda. Talvez esta visão das coisas não passasse de uma falsa ideia, fruto do imaginário juvenil e masculino, próprio de quem anda à procura do lado mais escuro, desconhecido e por isso potencialmente mais interessante da vida.

Uma tarde qualquer, depois de tudo, um grupo de cadetes discutia os estranhos acontecimentos do café-vestiário. A malta tinha assentado arreais numa tasca do Intendente, por ali ficou a lamentar-se e a rir a propósito da questão de desroupamento desejado.



Á saída, foram-se dispersando e o Jorge tinha à sua espera uma miúda alta, um pouco macilenta e de sorriso aberto para si. Não disse nada, encostou o seu passo ao dele, foi andando … e sorrindo. Tinha um olhar escuro e distante que contrastava com o sorriso alegre, os olhos não combinavam com a boca, tinha um corpo bem feito e mal vestido, uma postura que não ficava mal ao lado do Jorge, um passo rápido … enquanto o dele abrandava agora. Levou algum tempo a falar, em geral, eram os homens que falavam, ela limitava-se a anuir com a proposta, a ir ou a não ir. Às vezes, o não-ir não era opção, mas adiante.
Daquela vez quem falou foi ela. Queres vir comigo, tenho um quarto que te posso emprestar para deixares a farda e ires à tua vida. Ele foi. Foi, despiu a farda e tudo o mais. Foi e ficou, com a Irene, encantada com o seu achado, aninhados na caminha estreita daquele quartinho estreito, num quarto andar tipo mansarda de um prédio velho.
Combinaram um pequeno negócio: alugar o uso do quarto para ele deixar a farda, tal qual café do Sampaio, em dias de saída.

O que se passou a seguir foi que o negócio não vingou. Não por falta do cadete, que o Jorge agarrou a oportunidade, mas porque a Irene não aceitou dinheiro. Ele passou a ir mais vezes ao bar da Irene, bebia um copo, deixava uma gorjeta e sentia-se mais confortável pela compensação. Quanto ao quarto, por lá deixava as suas coisas e dormia sempre que a sua agenda o fixava em Lisboa. Era um acordo muito razoável, prático para ele. Para ela, era um sonho. Adorava o seu valete de copas, estava senão apaixonada pelo menos enleada, ele não era igual aos seus outros passantes.
Este adormecia cedo, hábitos rurais ou talvez apenas o seu bio-ritmo, vinha cansado de uma semana de instrução. Caía na cama e adormecia rápido. Além disso, ela regressava tarde, o tasco tinha gente pela noite fora, chegava ao quarto e encontrava-o adormecido. Metia-se na cama, apertadinha, quente e feliz. Sonhava com o seu príncipe e quando acordava, muitas vezes confirmava que o amor realmente era um sonho, ele já não estava lá. Ele tinha os seus horários e ela dormia até tarde, para descansar do trabalho noturno. Outras vezes, por alegria, coincidiam no tempo e no espaço, cumprindo-se a juventude dele e o devaneio dela, com o fulgor expetável.



Hoje, visto à distância, esta história parece-lhe um retrato mas em versão negativo. A lembrança do não feito sobrepõe-se ao feito. O preto no lugar do branco, o branco no lugar do preto. O que o marcou não foram as cambalhotas valentes que certamente aconteceram. Dessas teve muitas e boas ao longo da vida, não se pode queixar. O que ficou de excecional foi a memória das noites adormecidas, sozinho naquela cama demasiado pequena, que partilhavam por turnos, abdicando preguiçosamente do prazer oferecido, trocado por uma noite de sono. Esqueceu calores e acrobacias testadas. Lembrou os estados de sonolência com uma mulher jovem ao lado, corpo adormecido que muitas vezes não usou. O que ficou foi o mundo ao contrário: o sujeito passivo e o sujeito ativo invertidos, face ao padrão habitual. Não foi ele que procurou mulher no trottoir do Cais do Sodré, que escolheu entre as várias propostas tristemente coloridas, ditado pela urgência do corpo. Foi ela que o elegeu. Nunca saberá se foi levada pelo desejo de concretizar um ideal romântico ou se apenas o fez inconscientemente para lavar os olhos e a alma num rapaz bonito, saudável. Ou se foi porque, apesar do seu toque maroto, ele lhe parecia confiável.
Miúdo maroto … tão próximo do velho maroto, que hoje se avantajou sobre a I. presente. Maroto não é conceito que se aplique a um velho, se esta história se soubesse seria apelidado de velho javardo, no mínimo, tarado e sem pudor. Babado por uma rapariga nova e apetitosa. Posta a seu jeito por simpatia, interesse, quiçá por gozo real, pelo prazer de se deixar derreter sem responsabilidades e sem rasto, num ato entre o obsceno e o infantil.

A I. de hoje e a de ontem. Ambas viram nele a bondade escondida por de dentro do desejo carnal, a bondade tão difícil de identificar, porque o pudor tem por norma escondê-la. Há mais primor em usar o mal, como capa ou como arma. Ser duro é uma vaidade, ser bom uma cobardia. Uma incongruência: ter a coragem de ser cobardemente bom, fardado de gabirú predador.


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