sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Morte


Há quem diga que vida há só uma !
Mentira, a Morte é que é solitariamente solteira, única e irrepetível. Uma! Apenas uma e sem retorno. Apenas uma e sem destino (para aqueles que não acreditam no que existe para além do Além).
Por ser uma e única é tão especial e assustadora, Diferente de tudo aquilo que alguma vez vimos ou soubemos,  desconhecida para cada um de nós, pois ninguém sobreviveu para contar como foi...
Única e uma.
Uma e só!



Quanto à Vida, porém... não há só uma, pode haver várias, muitas até para alguns de nós...

Podemos escolher e mudar de vida. Ou ficar apenas parados naquela vida única que nos coube em sorte.
No entanto, mesmo quietamente sentados nessa nossa única vida... ela trama-nos e trata de se desdobrar em outras vidas. A mudança é o motor natural da corrente das coisas, faz com que ela, a Vida, ela seja plural e não singular como a Morte.


Para uns, a Vida é servida em doses avantajadas, com temperos desconhecidos, inovadores, assustadores ou desafiantes. Para outros parece sempre o mesmo prato, mas nem por isso sabe mal...

Os gulosos querem sempre experimentar mais uma e outra vida ... pensando que assim enganam a morte. E a verdade é que enganam mesmo. Porque enquanto se está ocupado a organizar, a desarrumar e a tentar embelezar a vida, enquanto se combate o fastio ou a doença...está-se a viver e a morte parece tão longe ...como única e irrelevante. Ponto final!

Há quem vá vivendo e carregue mais ou menos feliz um baú cheio de vidas, de amores e de desgostos...

Há que passe por cá apenas como uma leve pena, que passa sem  pousar. Não vive, esvoaça. Porque pensava que vida era só uma... e preguiçosamente acreditou.

Há quem queira uma só vida mas como se ela fosse um grande contentor, onde cabem todas as vidinhas que viveu eque vão ainda viver, ou que ambionam ter, carregadinho de coisa que vale a pena preservar.
Esses serão os eternos insatisfeitos, porque por muito grande que seja o contentor, por maior que seja o cargueiro, o gosto desmesurado por colecionar amores e ódios, amigos e memórias, coisas boas e más, emoções e movimento vital, energia e preguiça...é muita coisa para lá caber.
E um dia, rebenta!
Quando tudo o que quer , o tudo o que tem mas pensa que não, tudo o que ambiciona não lhe chega às mãos, salta-lhe a alma para fora de si mesma...e essa pessoa transborda. Como as cheias dos rios que rebentam os diques, por demasia, por excesso de amor,por execco de água, por execsso de sentimentos, por pressa de chegar ao ma , por isto e por aquilo... pelo exagero, pela insatisfação por querer Amar com A grande....e tal coisa já não se fabrica, caiu em desuso... foi-lhe roubado, sei lá ! Só sei que não há!

Rebenta no dia em que perceber que não pode guardar tudo... que precisa de deixar peças para trás, que a explosão é provável para quem não sabe escolher, para quem não sabe ser razoável e comedida... rebenta e morre.

E depois, ponto final. Aí só há uma oportunidade, a única que é unica - Morte.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Círculo




Não há amor como o primeiro, lá diz o ditado popular!
E depois, o que fazer?


Não há amor como o primeiro, que é total, fatal...e para sempre, afinal!

O segundo é uma emoção, uma descoberta inesperada, saudável e bem guardada...

O terceiro é ebulição inicial, depois caminho aprendido, calmo, de uma intimidade feliz... Que estranhamente se evapora, quando menos o quiz. Talvez por ser feito de água salgada, vivido ao sol da felicidade, apanhou tanto calor que ao estado gasoso  passou...

   O quarto, que trazia tanto para dar e levou tão pouco, num transtorno emocional e belo, veio para acalmar uma perda desastrosa e caiu num desastre maior. Tropeços e soluços... Pelo meio, desvarios, gostosos e inutéis... agora rio e penso: para quê tudo isto ?

   O quinto vem de mansinho, quando não fazia falta nenhuma e não trouxe nada para dar . Veio só, trazia fome e ao amor disse nada, por não saber como é. Veio só mas, num instante, juntou várias companhias - muitas almas generosas que intrigadas com sua carência, tudo lhe davam e voltavam  para casa vazias.

Restam as borboletas amorosas, que vão poisando no meu ombro, que são a alegria dos dias. Se o grande A não existe, todos os que nos amam são amor...

Ai, se este círculo se fechasse, meu anjo da sorte, se houvera um último igual ao primeiro, que soubesse o valor de ser inicial e total (nunca se sabe onde fica o início e o fim de um círculo...) , então essa argola de corações amados fecharia em beleza rumo ao infinito.
E eu morreria em paz... porque tudo o que sempre quiz foi um Amor total!

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Oportunidades


A vida é o resultado de um cabaz de oportunidades - umas aproveitadas, outras perdidas e outras que foram agarradas mas acabaram por fracassar.

É nesta mistura que está o segredo - ou seja, o segredo de um caminho harmonioso está em saber aproveitar bem os desafios e as novidades que nos caiem no colo, sem nunca desperdiçar as hipóteses de felicidade que surgem, sem ter medo de arriscar ao tocar nas mais complexas e...  sabendo transformar em experiência, em ensinamentos todas aquelas oportunidades que resultaram em projectos fracassados.
É deste equilíbrio - bastante desengonçado - que todos fazemos o nosso caminho, com mais ou menos sorte e sucesso. Sendo que a sorte também se fabrica... ou, pelo menos, pode dar-se um empurrãozinho nas circunstâncias para que aconteça....

Quem fica parado é que não pode queixar-se de falta de sorte... pois se deixou fugir uma oportunidade rasante, então a responsabilidade passa a ser exclusivamente sua.
O medo do desconhecido, o medo da aprovação social por parte dos nossos mais caros e o medo de não estar à altura de ser capaz de agarrar oportunidades e de as cumprir ou de, eventualmente, vir a fracassar, é o que leva muitos de nós a ficarem passivamente à espera que o caminho seja fácil e que "alguém" o resolva por nós.
O medo, sempre o medo que tolhe a ação humana e deixa tanta coisa por acontecer.

O medo do Amor, por exemplo, é um receio muito paralisante e comum. Pode tornar-se um estrangulador de felicidade, um torniquete frustrante e coarcivo que assusta um candidato a “amante” e “amador” e o deixa a leste do paraíso, por timidez, por falta de jeito ou de coragem.

Porque amar assusta, muito! Porque aceitar o amor, os seus compromissos e responsabilidades, a par das suas delícias, pode ser castrador e um emperro na engrenagem mental que é preciso pôr em marcha para essa geringonça que é o Amor funcione.
E pode ser tão simples e tão bom, quando surge nas nossas vidas, aceitá-lo de braços abertos sem ligar a mais nada, ao que os outros dizem ou pensam.

Nunca perder uma oportunidade é agarrá-la, abraçá-la sem largar, fundir os corpos e as mentes nessa ilusão que se chama amor e que, apesar de ser uma construção mental, existe.

Tu, ilustre desconhecido ou velho amigo, que por sorte o encontraste, não o largues. Deixa-te estar aí, nesse lugar mágico de todas as ilusões, enquanto durar. 

Continuem a construir com carinho e persistência, lutem por ele - o grande A - pois ele não aparece feito num pronto a vestir, faz-se por medida, à medida de cada dois. Continuem a badalar aos quatro ventos que o Amor existe e que quando vem é um deslumbramento!

Pode ser um vento suave, discreto e tímido, é sempre inseguro (vive a prazo, na corda bamba)... nunca se sabe à partida  se haverá fusão de entendimento douradoura, depois de passada a fase louca do fascínio inicial. Mas mesmo correndo esse risco, que todos os amores iniciantes correm, é excitante e romântico.

Saber que se está em equilíbrio instável, mas voar no meio da beleza, com riscos e com medos, é uma aventura que vale a pena.

O Amor é a única coisa por que vale a pena estar vivo, qualquer forma de amor... filhos incluídos, como é óbvio,

Mesmo o sobressalto de saber se é ele verdadeiro e correspondido, ou entender se a relação é exclusiva ou poliamorosa, mesmo quando há omissões (que nos podem parecer traições mas são tão só ausência de informação verdadeira, o que é diferente!), mesmo que haja em geral um que ama mais que o outro, até esse desequilíbrio dá graça e até solidez...
Apesar de tantos emperranços, amar vale a pena.

Não amar é que é uma tragédia. O amor é tudo o que interessa e tem valor real. 

Poder partir para um novo rumo - onde outras pessoas e espaços alargados de afeto nos esperam, com
carinhos e beijos que nos confortam -  é uma benção, o melhor que a vida nos pode dar.

Viajar é bom. Não é só conhecer lugares novos, terras, espaços e culturas diferentes, é também percorrer novos caminhos de afecto, de ternura, de calor humano, de famílias alargadas e coesas, de bem estar, de alegria, num clima bom de tolerância, porque haverá sempre uns chatos por aí, antipáticos e do "contra", que se atravessam no caminho.

Quem é velho e crescidinho como nós, já não deve ligar a pormenores. Contornam-se os maus e escolhe-se quem vem por bem. Garantido que quem vem por bem, está sem esquemas escondidos. Que só trás verdade, mesmo que essa verdade contenham um magote de “defeitos”... genuínos, claro.

Construir um novo  rumo, um caminho melhor de solidões vencidas, de paz conquistada, uma solidão partilhada a dois, um mundo seu rodeado por outro, que não belisca este “seu eu”.
É isto amor?

Eu acho que se não for amor, pelo menos é vida!
Aquela que é única e finita, e que deve ser agarrada com toda a força.  A única que vale a pena viver!
Á outra - que não é Vida -  chamo o sono dos tristes, depressivos ou sem coragem para ser feliz.

Quando fui nova tive coragem de romper com os obstáculos e ganhei o Amor a pulso . Não foi fácil, uma vida a remar contra quase todos, sem a aceitação familiar e a inserção social que tanta falta faz.

Quando depois de velha tive que optar, também recuperei a coragem suficiente para sair à procura da Liberdade... esperando que, com tempo, ela venha a criar espaço para um verdadeiro Amor.
Sonhar não custa! Haja força para lutar por aquilo que é melhor para cada um de nós .
Somos o centro da nossa vida sempre, mesmo que em certos caminhos nos juntemos a parceiros que nos trazem momentos felizes, que vivamos um pequeno, em vez de um grande Amor.
Este é um bem escasso, reservado a poucos e que tive a sorte de trazer no baú.
Por tudo isto, valeu e vale a pena viver.

Por tudo isto, é com um sentimento agridoce que assisto ao nascimento de um novo rumo, cuja carga amorosa espero que seja boa, gratificante e verdadeira.

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Novos rumos




Buscando um novo rumo, sem fazer resumo não me acostumo.
De vez enquanto, sumo, para ver se acerto,
sòzinho no deserto.

Mago Robert





E a vida mudou! Não foi a minha, não foi para mim que as coisas mudaram, mas é como se fosse.

A vida muda todos os dias para toda a gente, nós é que tendemos a julgar que o mundo é estático, que somos eternos, que as nossas crianças não crescem, que o guarda-roupa não passa de moda, que as rotinas se repetem, que os Natais são sempre natais. 

Os natais são chatos, natalícios, stressantes, desesperantes mesmo. Mas quando passam, deixam a alegria do dever cumprido, de mais uma prova superada. Mais um! Consegui, passei no exame, sobrevivi... agora descanso até ao próximo ano, até à próxima situação de mal-estar coletivo, um coletivo-família que deveria ser um lugar de prazer.

O facto de o Natal ser igual e seguro, sem percalços de maior, estarmos juntos e vivos já de si faz dele um bom Natal... o de sempre. 
Porque o que  mais nos assusta, em tudo na vida, é o desconhecido. O conhecido, mal ou bem, dá confiança e sossego. Um Natal igual a tantos, iguais e conhecidos, transporta consigo a ilusão de continuidade e de eternidade (como se tal fosse possível).

E depois percebemos que não é bem assim, que a vida muda, mesmo para quem é arreigadamente conservador...
Percebemos que algumas bolas da árvore de Natal, até daquelas mais antigas, se partiram ou perderam ou partiram pelo seu pé...
E que outras foram sendo compradas, foram chegando, até talvez mais bonitas. 

As bolas pouco importam. E as pessoas? Algumas também se partem porque frágeis, outras partiram para outro rumo e são essas de quem se sente a ausência e se recorda a presença. 

Até num lugar estaticamente igual e inemutável como o meu sítio, até aí onde nada acontece na aparência, aliás, onde é proibido acontecer alguma coisa, tem havido acidentes e desvios à norma.
Uns pequenos: novas chegadas, alguns afastamentos mais colaterais e, agora, um mais marcante: uma bola antiga de vidro frágil, partiu-se e partiu!
Foi a consertar e talvez já esteja reparada, inteira e boa. 


Que volte a brilhar num outro pinheiro, na natureza onde os há tão verdes ou no plástico da cidade. 
Que a bola brilhe no campo bucólico e frio do Inverno nortenho, tremeluzente pelo reflexo das chamas de uma lareira. 
Que brilhe, de coração quente, no enlevo inicial e limpo de quem encontrou outro rumo.
Que essa bola-estrela possa trilhar um caminho novo ou, pelo  menos, que pense estar a descobrir a origem do bem, uma vida onde todo o passado deixa de ter sentido e espaço.

Tudo novo, tudo certo, tudo assente numa pessoa, que condense em si esse ideal de mudança e de conforto. 
No fundo de um caminho a desbravar, na escuridão do verde minhoto das serras, entre as árvores, uma estrela brilha e chama, oferece repouso e cama... 

De repende (ou aos poucos), percebe-se que este é o presente que faz sentido, esta é a vida que importa...  tudo o que ficou para trás se esvaiu, aparece esbatido pela névoa do passado. 
Rumo ao Norte com destino à luz, o que ficou tornou-se deslocado, desfocado, irrelevante, imerecido e esquecido.

Há que seguir a estrela - qual rei mago, cheio de magia - aquela que aquece a alma e promete um novo voo, perdendo nesse passeio alado, o que havia de velho e secundário.

O amor alumia tanto mais, quanto quem dele precisa.

É tomado num cálice na justa proporção da sua precisão.

A muita carência engrandece a oferenda e tudo é demasiado importante e bom.... tão absorvente e óbvio, que nem se compreende como possa haver quem isto não compreenda.


Eu compreendo... eu entendo bem, com o meu romantismo primário, que há momentos únicos e totais, capazes de concentrar toda a grandeza e apetência em estar vivo e amante.
Bons são os dias únicos do deslumbramento inicial, devem ser vividos em toda a sua plenitude.
E devem ser feitos e perfeitos, num caminho a sós, em parceria despojada de tropeços e de emplastros. Seguindo em frente num mar limpo, numa montanha verde, numa vereda lisa rodeada de pedras protetoras e solenes. A pé, de carro ou a cavalo, mas sós. Numa solidão de par.

A melhor solidão é aquela que se faz a dois, numa travessia com espaço e silêncio, com risos e beijos, com descobertas interiores e exteriores, na paisagam que se olha e se interioriza depois, com o sabor permanente a felicidade nos lábios, como se se tivese comido um doce tão enjoativo que o sabor não passa, mantendo-se presente por muito tempo, ao longo dessa caminhada de alegria e distanciamento.


Porque a lonjura desse rumo novo é indispensável para que a vida comece do zero, inicial e limpa, renascida para a noção maravilha de que há outra vida, muitas mais vidas se quisermos, há muito mundo e, ainda, há algum tempo. 

Sabendo que esse tempo poderá ser inventado e desenhado à medida do tempo que há, será vivido à medida e ao gosto de cada um (ou dos dois), para que a alegria caiba no espaço certo que inventaram para si próprios, para acolher a sua solidão exterior e fazer florir a solidão interior. 
Duas solidões e silêncios juntos podem fazer muito barulho!
Um som que nós, os de fora, mal ouvimos, porque estará bem fundo dentro deles, quiçá para ser descoberto ainda.


E dá tanto gozo descobrir! Ir ao fundo do poço ver o que lá existe. A novidade é tão excitante, empolgante, maravilhosa. Dá a ideia, talvez ilusória, que se está a descobrir o que ainda não foi inventado, que tudo é novo e único.

É bom manter esse ritmo de magia e ilusão realista, enquanto for possível, o mais tempo possível.
É bom acreditar que até num circo, os artistas cheios de lantejoulas dançam no ar sem cair (na maior parte das vezes, não caiem), brilhando por muito tempo sob a luzes da tenda, na ponta do trapézio, ao sabor da corda que balança, mas os traz de volta em segurança. 
E se um dia deixarem de dançar sobre a corda é por velhice e cansaço, mas poderão fazê-lo em sonhos de memória do dever e da alegria de o ter feito e bem feito.
Quem ficou na pista ou na bancada e não arriscou o trapézio, nunca pode sentir o mesmo de quem subiu às alturas e viveu a emoção de um voo.
Partiram na aventura da descoberta, montaram um circo brilhante para dois, com ou sem espetadores, pouco importa. O que vale é serem felizes enquanto for verdade o rumo que traçaram.
O que importa mesmo é esse rumo seja de convergência para os dois, num mesmo sentido de verdade.

Estar atento para que que não haja uma cilada à espreita atrás de um carvalho ou de um abeto, na montanha verde deste Inverno com sabor a Primavera. 

Ter tino e segurança na certeza de que as intenções são as melhores. Esperar que não haja desvios da rota, praticados pelo diabo do costume,o qual tem a forma que todos sabemos...

Avaliar que não haverá desvio de bens e de ilusões, quebrando a fé e roubando a alma que ia dentro da carteira, nem a materialidade que sustentará a vida e a velhice. 

Que todo este novo rumo seja bom e feliz, com pequenas pedras que não atrapalhem a caminhada no meio dos vales e das serras  onde se encontram as raízes e que, no mar bravo e belo,  se refresquem as alegrias lúdicas de uma nova tribo.

Do passado que se preserve tão só o que vale a pena - a prole e a felicidade que transporta, o sinal de que mesmo os maus momentos foram um cimento de experiência e de vida gerada, que dá solidez a um novo rumo. 

Quem aprendeu a caminhar difícil, com sustos e suspeições, com tristezas e depressões, mas com amor vivido e verdadeiro no baú, está certamente muito melhor habilitado a experimentar um mundo novo e melhor. Conhece a diferença e aprecia a mudança.

Sabe que pode partir e levar na mala o que na vida anterior reuniu de bom.
Se do passado nada houver, restam os filhos, porque esses são presente. 
E com a mala bem feita, cheia de coisas que vale a pena transportar se fará uma vida nova - amigos, família e amores diferentes - tão renovadora e promissora.

Haverá a certeza de que depois de um pôr do sol escurecido, um novo dia despontará num recomeço feliz. Quer o dia acorde nevoento como uma manhã de jagozes, quer ensolarado como na Costa do Sol, é um novo dia... e isso basta.
Novo, com ternura e calor, sem nada na manga, sem enganos, nem estratégias ou premiditações, sem interesses materiais, cada um levando na mala apenas afetos,  compromissos leves e doces, com verdade.

A isto se chama felicidade... a qual não existe, mas pode haver momentos felizes.
convém agarrar todos esses momentos - nunca se deve perder uma oportunidade que apareça - agarrá-los, abraçá-los sem largar, fundir os corpos nessa ilusão a que se chama amor, que existe mesmo, apesar de todos sabermos que é uma construção humana e mental. 

O homem é um ser prodigioso que tudo constrói, desde pontes e estradas a caminhos mentais para um novo rumo de afecto.

Que quem vem, venha por bem!


quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Valsa




Abre a alma à poesia,
à alegria, à música que arrepia...
Dança...
Dança porque o corpo pede, porque algo chama por ele.
Segue os sons que a matéria engole sem querer nem pedir.
Dança, porque dançar é movimento, o que nos faz girar na vida, sejam os rápidos ou lentos movimentos a caminho do trabalho, os pesados caminhos com o saco das compras, os passos estremunhados de um acordar cansado…
Tudo o que é movimento é vida.
Mas o melhor de tudo é dançar com música e fazer amor com amor… porque também se faz muito amor só com movimentos desapaixonados.

É magia, dançar assim.
É raridade amar como se dança.

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Quando o telefone toca...



Quando o telefone toca, eu sei que do lado de lá do fio há uma voz de silêncio, que tudo diz...
Diz o que eu não ouço, mas sinto, diz aquilo que sei, sem precisar de palavras, nem de sons, nem de música.
O som do silêncio vem cheio de maravilhas não ditas.
É um espaço habitado por boas coisas, carregado de amizade e intenso de sentimento.
É o vazio mais cheio que conheço e que amo!

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Ambição



Da vida não quero muito. 
Quero apenas saber que tentei tudo o que quis, 
tive tudo o que pude, 
amei tudo o que valia 
e perdi apenas o que, no fundo, nunca foi meu.

Pablo Neruda






quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Esquecida...




Perdeste a cueca no fundo daquela cama,
Deixaste a pantufa arrumadinha,
Do pijama, nem rasto… saltou voando no meio do repasto…

Pensei, pobre coitada, coitadinha…
Pobre de quem se abre, pensando que assim se ama.

Achei tudo isso um despautério, de uma inutilidade cruel.
Fazer de conta que ali havia, como que um leito de mel.

De que serve tentar mostrar que se é,
a quem não quer saber quem é ou não é?

De que serve molhar os lençóis de mágoas e de lágrimas, travestidas de húmidos prazeres?
Melhor seria, dares ao corpo outro uso, outros afazeres.

Para quê sentir com o coração, o que à carne pertence reconhecer?
Pôr o sexo no meio do peito, suspirando ais em vez de gritar uis!
Mudar o sentido das coisas, não é natural, é fingir
É como cantar calada, ou descer a subir.


O Pateta Alegre


Ser doido-alegre, que maior ventura!
Morrer vivendo p'ra além da verdade.
É tão feliz quem goza tal loucura
Que nem na morte crê, que felicidade!

Encara, rindo, a vida que o tortura,
Sem ver na esmola, a falsa caridade,
Que bem no fundo é só vaidade pura,
Se acaso houver pureza na vaidade.

Já que não tenho, tal como preciso,
A felicidade que esse doido tem
De ver no purgatório um paraíso...

Direi, ao contemplar o seu sorriso,
Ai quem me dera ser doido também
P'ra suportar melhor quem tem juízo.
Antonio Aleixo

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Para onde foi o elefante voador?


O elefante voador continua...






Era um dia de nevoeiro, tudo branco à volta, o mar estava onde não se via e o céu tinha a sua mesma cor. Cor de nada, cor de água condensada, cor de chuva que não o é ainda... 

Um dia daqueles em que apetece ficar quieto, hibernar num ninho confortável e nosso, um dia de recolhimento e paz, fora do buliço do sol que acende os sentidos e convida ao trabalho. Um dia assim pode ser bom ou ser mau! Tudo depende do tempo que faz dentro de nós e, mais ainda, da companhia, de haver quem olhe o nevoeiro com os nossos olhos... de ter quem ame o espaço e o tempo em sintonia... 

Meti a cabeça numa greta de janela, só para confirmar que era mesmo uma massa opaca de água em estado incerto o que me esperava lá fora, que nem valia a pena olhar o céu, muito menos sair de casa. Que o quentinho do sofá era o lugar da felicidade, daquele pequeno nico de realidade que nos é dado saborear, porque felicidade não existe (está provado cientificamente), mas existem momentos felizes. 

Estava preparada para aceitar esse niquinho de prazer dentro de portas, resguardada do nevoeiro. Veio-me à memória uma qualquer história de cinema com final feliz: uma sala acolhedora, uma tv tremeluzente e, no fim, a imagem suave e translúcida de uma manta macia, abrigando um velho casal, vendo um velho filme...

Enquanto espreitava o nevoeiro, que pensava oco e pacífico, reparei uma leve sombra para lá do horizonte, na zona em que o céu pega com o mar e se confundem, numa cor sem limites nem precisão. 

Algo me dizia que uma coisa estranha furava a névoa do meu conforto. 

Seria um barco? Seria um pescador corajoso que se aventurara naquele dia tempestuoso e regressava a terra? A mancha era indistinta... redonda... não era embarcação, nem pescador, não se mexia, mantinha-se flutuando no ar, algures no meio dos elementos que a natureza fundira de cinzento-água. Então percebi. Percebi, mesmo fechando a janela e voltando à segurança e conforto do sofá, percebi que quem pairava na bruma era o elefante voador.

Lá estava ele, o querido elefante romântico, pairando feliz sobre os amores terrenos e os males do mundo a partir da sua nuvem cor-de-rosa (hoje um pouco pardacenta ou mesmo invisível)!

Voltei a questionar: o que será que ele faz ali, naquele lugar nevoento e sem pousar os pés no chão? Será que este feliz elefante voador chegará ao seu destino? Ou continuará a pairar nos céus a fazer figura de dumb?

Vi-o esbatido pelo nevoeiro, que lhe amolecia as supostas asas invisiveis, aquelas que lhe permitiram subir às alturas, as asas da fantasia, capazes de o transportar através do Atlântico e de o fazer mudar de continente, suficientes de o pôr a flutuar na ilusão do amor cinéfilo, romanesco ou oportunístico. 
Era ele, sim, o querido elefante aventureiro, inteligente e bom, fiel ao príncipio de que o melhor do mundo são os amigos. Aquele para quem o prazer advém de amar toda a gente, em dar e em dar-se (a uns mais do que a outros, evidentemente). 

Não que essa mania da dádiva fosse uma forma de altruísmo, era mais um canal de auto promoção. 

Ele tinha chegado a um lugar bem etéreo, onde esperava a sua vez de descer sobre a terra, para tentar encantar mais um ser. 
Acreditava que a bondade e os bons sentimentos hão de prevalecer no mundo dos homens e que toda a dádiva terá a sua paga. Queria muito um homem por amigo... não queria um rato, um mero rato Timóteo, não! Ao contrário do Dumbo, este é um elefante normal que não gosta e tem medo de ratos...
Quer aconchegar, com o seu corpanzil quente e fofo, um qualquer humano que se deixe amar, que goste de colar a pele à sua, ciente de que o afeto de um elefante é um bem, que voa para todo o lado: nas nuvens da fantasia, no calor do sexo ou na doçura de um afago, no alimento do estômago ou no da alma, tudo coisas tão precisas e desejadas...

Nesse entretanto em que o vislumbrei, não voava, jazia dormente na sua nuvem, espesso, soturno, insonso, esbatido pela fraca luz, confundido nas gotas de água iguais que o enchiam de humidade e de lágrimas.

Coitadinho do elefante voador - pensa o homem comum, que o vê perdido nos ares - é um desgraçado, uma vítima da sorte, um estúpido  obsessivo amoroso... digno de dó.


O elefantinho, contudo, sabia bem o valor dessa postura, dessa aparente  vitimização em relação ao objeto amado, procurando sempre a sua pena e, consequentemente, a sua atenção.

Uma obsessão comandava o seu destino, a de garantir um lugar presente na vida do seu objeto/humano/amado, qualquer que fosse o caminho que tivesse que percorrer para lá chegar: ou na fofura dos lençóis terrenos ou na quentura da nuvem cor de rosa do andar de cima, lugar celeste onde tudo vê e tudo pensa dominar.

A obsessão  transformara-se em dependência amorosa e criara uma permanente sensação de excitação, de satisfação moral e de poder.
Esta estranha figura voadora sofria de um tipo de amor - natural de quem não sabe amar saudavelmente e que procura ser amado - que era um meio de auto afirmação. 

O elefantinho tinha bons amigos na terra, era um fofo! Mas isso não lhe chegava - precisava de voar, de se elevar nos céus para que os seus compinchas o achassem superior, para que o reconhecessem como algo maior, mais perto do sonho, mais perto do céu dos seus desejos, mais perto do castelo do princípe encantado

Achava que assim, elevado e omnipresente, poderia modificar o olhar dos outros sobre si - afinal ele era um elefante-maravilhas, sabia amar, longe da matéria e introduzir-se no pensamento dos homens e dos bichos comuns, modificando a sua visão dos factos. 
Era capaz de coisas prodigiossas, dignas de espanto: tal como mudar os outros pela sua transcêndencia e originalidade. Era capaz de se tornar humano na cama e espírito presente nos céus.

E quanto mais pensava, quanto mais se focava num amor vazio de objeto, quanto mais se enchia de nada e se elevava nos ares, rodeado de tudo o que há de mais bonito: cestos de flores, résticas de luas, flocos de nuvens cor de rosa, lençóis revoltos, tachos de amor, doces de leite, beijos de ar... mais o elefante engordava de nada e leve ficava... cada vez mais longe da vulgar matéria de que é feita a vida comum. 

Quanto em espírito se tornava, mais o seu corpo era impálpavel. Apesar de continuar visível e redondo, flutuava mais e mais longe, esvaía-se para além do universo e subia, subia ... a caminho da solidão.

Subia como um balão de hélio que fatalmente se perderá  no espaço...

Voava rumo ao sofrimento, que queria evitar, julgando-se protegido pela elevação das coisas do espírito. Sem saber, tornara-se mais só. 

Por vezes, tentava agarrar-se à carne como veículo de transmissão do seu espírito: um beijo para abrir um sentimento (tal como existem facas próprias para abrir as ostras, tão fechadas), um encosto de pele para cendalha de fogo fátuo, uma humidade aberta para perdição maior e, quiçá, introdução de um compromisso verdadeiro. Pequenas concessões terrenas visando um objetivo espiritual e transcendente: despido de corpo, molhado de concupiscência e vestido de romantismo (o que dá um colorido diferente à nudez).

Lutava contra a ansiedade e a solidão, querendo amar demais, querendo ser admiravelmente melhor que todos, pedalando numa roda de fantasia que não o deixava sair do mesmo lugar e o fazia distante dos seres amáveis. 
Querendo ser melhor e diferente, perdera o norte e o sul,  vagueava na estratoesfera  sem gravidade, à distância do chão onde vivem os elefantes normais e felizes e também os infelizes. 

E assim afastou-se do mundo real, onde há tristes e contentes, amantes e desamados, gente que anda a pé, a cavalo ou de bicicleta, só ou acompanhada... mas que não voa!

Essa era uma peça de fição, que teimava em desempenhar num palco só seu, mas não tinha jeito, coitado! Ele sabê-lo-ia, se parasse para pensar. Mas este elefante não pensava muito, ou pensava torto, talvez... achava que pedalar e amar, voar e cantar seriam suficientes para atingir a felicidade. Perdera-se na nuvem e afastara-se da realidade e já ia tão longe que nem o seu amor fantasiado, nem a sua bicicleta voadora, nem os seus amigos terrenos, nem a sombra da sua tromba no chão... se viam.

The show must go on... continuava a representar essa cena sem fim, de uma fição impossível de realizar, sem espetadores que lhe dessem o espelho da sua maravilhosa atuação.


E assim, vogando para o Além, acordou um dia num lugar que não era mundo, no palco de um velho teatro abandonado... sem gente, nem aplausos.

Um lugar onde nunca tinha atuado um elefante... e que até os homens desprezavam e evitavam, um lugar de morte... de solidão... de fim da fantasia que habitara aquele palco, tal como ela tinha habitado a sua vida. 
Uma vida que não tinha sido muito real, porque tentara sempre imitar os modelos teatrais, a fição sonhada...
Uma vida que se evaporara na neblina, do mesmo modo que se extingue a fama das estrelas outrora brilhantes de um qualquer palco...

O elefante sonhador acordou para a realidade da ruína, quando esta já era o fim da fama. 
Perdeu-se no espaço, ao diluir-se no éter, voando para além do nevoeiro, chegou ao fundo das trevas lá de baixo. 
Sendo que, no universo alargado não existe o "de baixo" e o "de cima", nem o norte e o sul, nem o céu e a terra. 
Existe, apenas, o espaço galático e vazio, onde tudo é redondo e oco, sem contornos, envolto em nevoeiro polvilhado de estrelas e de pó de nada, um lugar onde nada importa: nem os elefantes, nem os homens, nem o amor, nem a sopa de batatas... 
Apenas, a inexistência existe!





terça-feira, 29 de outubro de 2019

O Elefante Voador


 
Era uma vez um elefante que voava...

Não, não vou contar a história do Dumbo. Essa ficção, adaptada pela Disney, conta a história de um pequeno elefante de circo de grandes orelhas, ridicularizado por todos. O nome é uma mistura de dumb (burro) com Jumbo, o grande elefante africano que a Europa viu pela primeira vez.
Um dia, Dumbo e o seu único amigo - o rato Timóteo - meteram-se nos copos (mais precisamente beberam o champanhe dos palhaços) e no meio de alucinações e fantasias, Timóteo deu-lhe uma pena mágica e convenceu Dumbo de que ele conseguiria voar. Com a sua auto-estima valorizada - afinal a feieza das suas orelhas tinha alguma utilidade - e seguro pela força do seu amuleto, Dumbo sentiu-se capaz de tudo, mesmo de voar...
Moral da história: a fantasia é capaz de levar muito longe quem nela acredita. É um pouco como a fé e as religiões. Dumbo tinha tudo a seu desfavor - era feio, fazia figura de parvo no circo, não tinha outros amigos para além do rato, quase orfão porque a mãe tinha sido presa, era pesado demais para voar - mas tinha fé na sua pena e... voou.

O meu elefante voador não tem orelhas grandes! É bonzinho, inteligente, não muito bonito, mas é de tal modo querido e simpático que tem muitos amigos ...
A única coisa em comum com o outro é que acredita piamente que pode voar. 
Tem uma mente prodigiosamente fantasista e otimista. Tudo de bom lhe pode acontecer... aliás, acredita que uma parte das coisas boas da vida já lhe aconteceram e, mesmo que o presente lhe ofereça alguns dissabores, crê que o futuro será mais promissor. 

Só lhe falta mesmo é voar, com destino ao castelo dos seus sonhos, onde à sua espera estará o príncipe encantado. 

Mas lá chegará o dia. Tão certo como ganhar a lotaria. Se não for a voar, será de bicicleta ou até de barco a remos. Porque este elefante nada teme e será capaz de grandes coisas - de atravessar o deserto a nado, de pedalar até às nuvens, de transformar um sapo em príncipe, de fazer fogo das frias pedras... 
Tem uma capacidade inaudita para transformar em beleza o mais feio dos desígnios, para transformar em bondade a bruxa mais ruim, para olhar as aversidades como uma benção dos céus, para agradecer aos deuses e aos espíritos as provações que, por ventura, lhe caibam em sorte... enfim, para virar o bico ao prego.

Ás vezes, até gosta de pregar o prego no coração do inimigo... Isso acontece apenas nos dias maus, porque em regra é bonzinho (ou imita muito bem)... os inimigos são incomodados com pequenas alfinetadas tão delicadas que mal se nota a ferida, assim não deixa rasto, nem cria inimizades e consegue ficar na história como um lindo elefante, bondoso e amoroso.

Tem um coração maior que o mundo e um ego que não cabe nele. Tão cheio de fantasia quanto de riscos. Alimenta-se de emoções e de afetos. A medicina julga mesmo que sofre de um qualquer distúrbio metabólico que não sabe explicar: 

   - Quanto menos come, mais engorda! E quanto mais engorda, mais leve fica e mais flutua...

E assim, sobe aos céus! Julga cavalgar romanticamente um cavalo branco, pedala infantilmente uma bicicleta fantástica e dorme aconchegado numa nuvem, sentindo a suavidade de quem o cobre ... 

Paira feliz sobre os amores terrenos (que vê ao longe, mas que ama tremendamente) e, da sua fantástica morada celeste, vendo o mundo a cor-de-rosa, tenta fugir aos escolhos que os caminhos pedregosos da vida a todos colocam.

Será que este feliz elefante voador chegará ao seu destino? Ou continuará a pairar nos céus a fazer figura de dumb?




terça-feira, 22 de outubro de 2019

A Mulher do Leme



Será que ser a mulher do leme da minha própria vida é uma ambição desmesurada?

Toda a vida andei a conduzir um barco alheio, que não meu, cujo destino não dominava por completo, seguindo uma rota que me era pedida (nunca exigida violentamente, mas discretamente imposta), zigue-zagueando ao sabor do vento dos bons costumes, da tradição, do que era esperado, do bom senso...

E eu - qual marinheiro cumpridor e um pouco tonto - lá ia pegando o leme e dando uma ajuda à viagem coletiva. No fim de contas, alguém tinha de pôr a coisa a navegar e era preciso seguir em frente, para que família chegasse a bom porto, para que as obrigações profissionais fossem cumpridas, para que tudo corresse bem e depois... só depois dos outros estarem satisfeitos e seguros, é que eu procurava descansar, desejando que houvesse uma cadeira no convés, para saborear os últimos raios de sol de mais um dia que morria no mar.
Nunca fui verdadeiramente uma mulher do leme . Era um grumete mais graduado e que se desenrascava ... só isso. 
Quanto a ter poder para desenhar a carta e determinar a rota, quanto a ter verdadeiro comando .... só recentemente aprendi.
Reconheço que com muita dificuldade.

Não sei navegar, não é fácil ser a mulher do leme, conduzir o meu próprio destino com firmeza e satisfação.
Gostaria de o ser, de navegar ao meu gosto, de visitar os locais que me fossem aprazíveis, de dar boleia a gente boa, de ir aonde me manda o coração... até, talvez, de partilhar o leme, pontual e voluntariamente, em parceria de boas vontades, com alguém que valesse a pena. 
Gostaria de ser o centro do meu mundo, sem perder os valores da solidariedade, dos afectos e da entre-ajuda familiar...

No entanto, o meu navio é frágil, a minha perícia náutica nula... a minha vida abana demasiado, as ondas assustam-me.
Em dias de bonança, ainda vá... consigo gozar a viagem e até fazer de conta que sou a mulher do leme!
Mas à primeira tempestadezita, balanço e enjoo.
Não me aguento com ventos soprados por espíritos maus e dominadores, vacilo submersa pelas ondas salpicadas, picadas, triturantes de inveja e obsessão, rodopio no remoinho profundo e negro da ganância, da concorrência que luta feroz e eficazmente pela disputa de territórios....
Perco as batalhas quase todas, navais ou terrestres, porque não tenho força contra a forma avassaladora de quem quer tudo, de quem tudo faz pela busca fantástica do Santo Graal, pela exarcebação de um bem maior apelidado de Amor, abstração idealizada e embrulhada em amuletos, que cresce e se alimenta de vazio.
Um mistério! Estranho como é possível, a ambição criar um "ser", que quanto menos come mais engorda, que aumenta a partir do nada e nos aparece grande, pela sombra que lança em seu redor.

Perco por falta de ambição, perco por falta de objetivos.
Não os tenho, é verdade. Não tracei um destino, um caminho para seguir, um porto a atingir. Não tenho rota, nem fim para ela. Não tenho nada, nem mesmo sei se não quero nada...
Fui assim durante muitos anos.


Um dia lembrei-me que estava na altura de partir só, pegar uma pequena embarcação e partir sozinha ao leme da minha vida. Não sabia bem o rumo, a carta de navegação não era das mais exatas, mas tinha um objetivo mais ou menos claro - ia para um lugar chamado Liberdade - esse El Dorado, que continuo a visualizar ao longe, apesar de a viagem ainda ir a meio e ter tido vários percalços.

Têm sido algumas as perturbações marítimas, por vezes as ondas foram tão altas que quase me engoliram, venho ao de cima, gozo o momento, até um outro dia em que o Adamastor acorda e me volta a tentar afogar. Mudo de rota, contorno o rochedo, desenho outra carta náutica, meia  légua mais longe da costa, tento aportar e descansar numa ilhota amigável, volto a partir, atenta às noites escuras do mar profundo, sei que o monstro marinho me espreita...

Desviei-me tantas vezes do rumo inicial que se calhar não vou chegar nunca a esse porto maravilhoso de que ouvi falar, chamado de Liberdade. Uma cidade ainda mais importante do que as vilas chamadas Amor, onde por tempos habitei feliz.

E interrogo-me: será que no meio de tanta tempestade, eu ainda sou a mulher do leme? 
Ou passei à categoria de náufraga? 
Será que não passo de um pobre ser solitário, que flutua na escuridão do mar, agarrada a uma tábua podre, pensando tratar-se de uma forma alternativa (mas difícil e pouco segura) de chegar a um lugar seguro e confortável?


Estou perdida. Perdida é diferente de desorientada. 

Ainda sei onde fica o norte e o sul e até sei ler um mapa. O que não sei é qual o meu objetivo-destino, o que quero, onde desejo chegar, com quem, porquê e para quê...


Ora, como diria o velho Séneca, todos os ventos são bons para quem navega sem destino.
Eu diria os ventos até podem ser bons, o destino é que não é bom, se não for nosso.
O bom porto é aquele que a mulher do leme escolher, é aquele a que se aporta por decisão, com precisão e jeito próprio... não o que é traçado pelos outros.
Se assim não for, mais vale ficar em terra...
E perceber que com a velhice se vão as ambições. Que com a velhice, há que aceitar que ao leme estarão outros, que a fraqueza trará a preguiça, o desinteresse ou a paz (que é tudo mais ou menos a mesma coisa), que se se for adaptável às contingências da vida, resignado e sem expetativas elevadas, se sofre menos mas também se viaja menos.
Fica -se em terra, desiste-se da aventura, do amor, da grandiosidade da vida. 
Desiste-se e morre-se.


Morrer ao leme de um navio é épico, romântico e grandioso... não é para todos.
Uma fantasia bonita, só isso !
Não será para mim, já não tenho tempo, nem força, nem jeito para ser a Mulher do Leme, para governar a minha vida e ser feliz.
Cheguei tarde!