terça-feira, 22 de outubro de 2019

A Mulher do Leme



Será que ser a mulher do leme da minha própria vida é uma ambição desmesurada?

Toda a vida andei a conduzir um barco alheio, que não meu, cujo destino não dominava por completo, seguindo uma rota que me era pedida (nunca exigida violentamente, mas discretamente imposta), zigue-zagueando ao sabor do vento dos bons costumes, da tradição, do que era esperado, do bom senso...

E eu - qual marinheiro cumpridor e um pouco tonto - lá ia pegando o leme e dando uma ajuda à viagem coletiva. No fim de contas, alguém tinha de pôr a coisa a navegar e era preciso seguir em frente, para que família chegasse a bom porto, para que as obrigações profissionais fossem cumpridas, para que tudo corresse bem e depois... só depois dos outros estarem satisfeitos e seguros, é que eu procurava descansar, desejando que houvesse uma cadeira no convés, para saborear os últimos raios de sol de mais um dia que morria no mar.
Nunca fui verdadeiramente uma mulher do leme . Era um grumete mais graduado e que se desenrascava ... só isso. 
Quanto a ter poder para desenhar a carta e determinar a rota, quanto a ter verdadeiro comando .... só recentemente aprendi.
Reconheço que com muita dificuldade.

Não sei navegar, não é fácil ser a mulher do leme, conduzir o meu próprio destino com firmeza e satisfação.
Gostaria de o ser, de navegar ao meu gosto, de visitar os locais que me fossem aprazíveis, de dar boleia a gente boa, de ir aonde me manda o coração... até, talvez, de partilhar o leme, pontual e voluntariamente, em parceria de boas vontades, com alguém que valesse a pena. 
Gostaria de ser o centro do meu mundo, sem perder os valores da solidariedade, dos afectos e da entre-ajuda familiar...

No entanto, o meu navio é frágil, a minha perícia náutica nula... a minha vida abana demasiado, as ondas assustam-me.
Em dias de bonança, ainda vá... consigo gozar a viagem e até fazer de conta que sou a mulher do leme!
Mas à primeira tempestadezita, balanço e enjoo.
Não me aguento com ventos soprados por espíritos maus e dominadores, vacilo submersa pelas ondas salpicadas, picadas, triturantes de inveja e obsessão, rodopio no remoinho profundo e negro da ganância, da concorrência que luta feroz e eficazmente pela disputa de territórios....
Perco as batalhas quase todas, navais ou terrestres, porque não tenho força contra a forma avassaladora de quem quer tudo, de quem tudo faz pela busca fantástica do Santo Graal, pela exarcebação de um bem maior apelidado de Amor, abstração idealizada e embrulhada em amuletos, que cresce e se alimenta de vazio.
Um mistério! Estranho como é possível, a ambição criar um "ser", que quanto menos come mais engorda, que aumenta a partir do nada e nos aparece grande, pela sombra que lança em seu redor.

Perco por falta de ambição, perco por falta de objetivos.
Não os tenho, é verdade. Não tracei um destino, um caminho para seguir, um porto a atingir. Não tenho rota, nem fim para ela. Não tenho nada, nem mesmo sei se não quero nada...
Fui assim durante muitos anos.


Um dia lembrei-me que estava na altura de partir só, pegar uma pequena embarcação e partir sozinha ao leme da minha vida. Não sabia bem o rumo, a carta de navegação não era das mais exatas, mas tinha um objetivo mais ou menos claro - ia para um lugar chamado Liberdade - esse El Dorado, que continuo a visualizar ao longe, apesar de a viagem ainda ir a meio e ter tido vários percalços.

Têm sido algumas as perturbações marítimas, por vezes as ondas foram tão altas que quase me engoliram, venho ao de cima, gozo o momento, até um outro dia em que o Adamastor acorda e me volta a tentar afogar. Mudo de rota, contorno o rochedo, desenho outra carta náutica, meia  légua mais longe da costa, tento aportar e descansar numa ilhota amigável, volto a partir, atenta às noites escuras do mar profundo, sei que o monstro marinho me espreita...

Desviei-me tantas vezes do rumo inicial que se calhar não vou chegar nunca a esse porto maravilhoso de que ouvi falar, chamado de Liberdade. Uma cidade ainda mais importante do que as vilas chamadas Amor, onde por tempos habitei feliz.

E interrogo-me: será que no meio de tanta tempestade, eu ainda sou a mulher do leme? 
Ou passei à categoria de náufraga? 
Será que não passo de um pobre ser solitário, que flutua na escuridão do mar, agarrada a uma tábua podre, pensando tratar-se de uma forma alternativa (mas difícil e pouco segura) de chegar a um lugar seguro e confortável?


Estou perdida. Perdida é diferente de desorientada. 

Ainda sei onde fica o norte e o sul e até sei ler um mapa. O que não sei é qual o meu objetivo-destino, o que quero, onde desejo chegar, com quem, porquê e para quê...


Ora, como diria o velho Séneca, todos os ventos são bons para quem navega sem destino.
Eu diria os ventos até podem ser bons, o destino é que não é bom, se não for nosso.
O bom porto é aquele que a mulher do leme escolher, é aquele a que se aporta por decisão, com precisão e jeito próprio... não o que é traçado pelos outros.
Se assim não for, mais vale ficar em terra...
E perceber que com a velhice se vão as ambições. Que com a velhice, há que aceitar que ao leme estarão outros, que a fraqueza trará a preguiça, o desinteresse ou a paz (que é tudo mais ou menos a mesma coisa), que se se for adaptável às contingências da vida, resignado e sem expetativas elevadas, se sofre menos mas também se viaja menos.
Fica -se em terra, desiste-se da aventura, do amor, da grandiosidade da vida. 
Desiste-se e morre-se.


Morrer ao leme de um navio é épico, romântico e grandioso... não é para todos.
Uma fantasia bonita, só isso !
Não será para mim, já não tenho tempo, nem força, nem jeito para ser a Mulher do Leme, para governar a minha vida e ser feliz.
Cheguei tarde!

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