quinta-feira, 8 de setembro de 2022

O Medo

 

(Capela Sistina: Imagem do medo, homem sendo puxado por figura diabólica , para o inferno)

Tenho medo! Muitas vezes e de quase tudo… medo do presente “imaginado” e, sobretudo, do futuro próximo. Do longínquo, não tenho. Estarei morta, ou inválida ou demente, já não conta para aqui.

O meu medo é resultado de uma educação sobre protegida e (felizmente) sem acidentes, nem grandes traumas: não fui abusada em criança, nem violada em adulta, não vivi numa família disfuncional com bebedeiras e pancada, nao conheço a violência doméstica senão da TV, não sou órfã, nem bastarda . Tenho filhos saudáveis, dinheiro , saúde e amigos. Não tenho ainda um abrigo, mas tenho esperança de vir a ter já um tecto para os dias de chuva e para guardar os livros. Agora o que eu não tenho nem sei se um vida alcançarei, é um tecto para a chuva do desamor, para a violência verbal, nem para a indiferença humilhante . Nem estofo para aguentar demasiada mentira e traição. 

Fui demasiado mimada. Durante muito tempo, gostaram de mim e eu habituei-me mal. Pensava que bastava ser boa, para que os outros vissem e tivessem prazer em estar ao meu lado. Pensava que a minha fonte inesgotável de beijos seriam suficientes para as carências de quem me quer bem (supostamente), pensava que com amor e carinho se consegue tudo: evitar a guerra e manter um clima de conforto prazeiroso e pacífico.

Ou seja, via os outros à minha imagem e semelhança - pensava: se é bom para mim e se dou com prazer, se sou útil e me agradecem (mesmo que sem palavras), então os outros também gostam.

Mas isto é não é bem assim: é tique de menina mimada que não sofreu agruras na vida, que não carrega traumas de maior … E ele há gente com um lastro tão grande de desgraças, com vivências tristes e marcantes, que não as impede de  aceitar e de amar, da mesma maneira que eu julgo ser a única. 

Os mimados em regra são um pouco intolerantes, neste aspecto. Por não perceberem.

Tento contrariar este defeito e a vida fez-me, aos poucos, melhorar os meus graus de tolerância… de melhorar a minha comunicação com os seres diferentes e mais infelizes que eu.

Ainda não sou perfeita. A capacidade de abnegação  e de sacrifício, a aceitação da dureza com que a vida nos brinda, não se aprende de repente. Tive até há pouco tempo uma vida calma, com segurança e proteção, não passei fome, nem tive falta de dinheiro para o essencial… estou mal habituada, portanto. Tenho falta de endurance.

Não sou comparável com as aventureiras que arriscam, para subir na vida, que tiveram de largar casas.famílias e países. Que não têm  um lugar a que pertençam, nem um coração que as acolha, que tiveram azares e abusos vários, que foram traídas e mal amadas… que enfim tiveram muito treino da dureza da vida. E logo maior capacidade para resistir sem chorar.

Acho que sou corajosa quando a vida me coloca desafios e que tenho aproveitado as oportunidades quando surgem… até hoje nunca me arrependi de não ter feito algo por preguiça. Escolho o caminho mais difícil, quando é preciso optar. O que não faz de mim uma heroína. Se a Pátria precisasse de mim, daria o corpo às balas, com orgulho. Nunca aconteceu. Nem por isso sou uma cobarde ou uma cidadã que mereça menos apreço.

Agora reconheço que há gente com vidas bem difíceis e com uma capacidade de superação exemplar (ver o programa da Júlia de hoje à tarde).

A sociedade parece gostar mais dos coitadinhos que se superaram e foram corajosos, por uma questão de sobrevivência, ou ambição, do que daqueles que foram “heróis” fazendo muito bem o seu dever. Criar 2 filhos e fazer carreira custou ! E o mimo que tive, não aquece nem arrefece o meu mérito próprio, nesta matéria. Aí consegui! Sei que valorizam mais uma empresária aventureira e talvez irresponsável , do que uma mãe de família que põe sopa na mesa aos filhos todos os dias , depois de fazer 2 h de transportes públicos debaixo de chuva numa noite de inverno. Ou que arranja 2 empregos para pagar a prestação da casa. Não tem glamour nenhum. Digno de dó é quem não tem casa e vive aos caídos, porque se aventurou demasiado alto. 

Todos têm méritos e desméritos. Uns não são melhores nem piores que os outros. São simplesmente diferentes, percursos de vida diversos que até podem ter sido feito com o mesmo grau de heroísmo. 

Só que dos “certinhos” não reza a história! Os heróis apreciados são os aventureiros! 

O problema - e voltando ao mimo - é que quem nasceu e viveu mais burguesmente protegido , tem menos skills para aguentar os dias difíceis .

Sofre mais , quando falha ou é traído, porque não ganhou o calo dos duros. 

Alguém disse que depressão é doença de rico, pobre não tem tempo para isso. Aguenta!

O tal rico-mimado precisa de mais amor, carinho, conforto afetivo e prazeres físicos e intelectuais. Pobre só precisa de comer, de um tecto e de não levar muita pancada.

Claro que isto são esteriótipos.

Aonde eu quero chegar é que eu tenho medo da vida porque fui mimada (tive sorte, nasci do lado certo do mundo…) como tal, não tenho como fugir às agressões. 

Não tenho culpa da vida que tive, se tivesse nascido algures num bairro da lata da pesada, não teria medo de nada. Andava de faca na liga, conhecia os mal feitores certos para me defender ou ajudar a por em marcha os maus intentos, teria um gang para meter medo aos outros e me ajudar a pôr a vingança ao lume !

Mas agora é tarde. Estou velha e tenho medo, não conheço ninguém no bidonville mais nogento da outra banda, nem engenho para os contratar. 

Por isso tenho medo, medo de não conseguir ter uma vida direita, medo de ninguém gostar de mim, medo de falta de amor e carinho, de não ter alguém para me levar ao médico quando estiver doente, medo de que quem eu quero não esteja ao meu lado para evitar o abuso dos Lexotan e afins, medo de não conseguir deixar de chorar… medo de partir deste mundo (e já falta pouco) sem me cumprir, sem me realizar como pessoa boa que julgo ser … medo de tão ter feito bem o meu papel de ser util… medo de não ser capaz de me fazer compreender.

Medo de estar só ( não fisicamente) mas só em afetos e compreensão. De passar dias e dias sem ter um ombro onde chorar, um telefone para onde ligar.

Estou farta de ter medo. De apanhar sem merecer… sem ter coragem de fugir …

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