quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Uma Mãe


Uma mãe também é gente, se bem que quando se começa a ser mãe perde-se um pouco a noção da individualidade própria. 
Passa-se a existir um função de outrém, a utilidade sobrepõe-se à essência. O que a mãe faz é mais importante do que aquilo que ela é. 
A pessoa já não é mais a mesma, passa a ser a mãe de ..., passa a ser uma mulher de compromissos e prisões, para sempre (ou, pelo menos, nos próximos 20 anos), será alguém que existe em função de... 
Uma espécie de agente de uma missão - transcendente é certo, respeitável sem dúvida, socialmente muito útil, porém, limitadora - a de criar, apoiar, prover, justificar, sofrer com outro ser, que não ela. O que lhe dá uma voz diferente e um rótulo inconturnável - ser mãe de... E isto acontece na rua, na escola, no médico, na família alargada...

Ser mãe é uma condição permanente...  não é um part time. Ser mãe sòzinha ainda mais.

Clemência era mãe solteira, quase analfabeta, trabalhadora, tão intensamente ocupada que nem cabeça nem tempo tinha para pensar. Filosofias como estas não a perturbavam - ela era mãe e pronto e vai daí esqueceu-se de ser outra coisa.
Aliás, ninguém a ensinou a pensar (se é que isso se ensina!), tentaram ensiná-la a ler... mas pouco e com pouco sucesso.

Vivia numa pequena aldeia alentejana, numa casa térrea - como eram quase todas por ali - branca debruada a azul, numa rua alegre de casas brancas à sombra de laranjeiras amargas.

A sua era a mais pobre e a mais velha, herdada de uma avó, e ela sem posses para a alindar... Apenas um toque de cal, obrigatório na Primavera, mantinha o orgulho e a limpeza alentejana do seu lar. Clemência aprendeu assim e amou sempre a limpeza alentejana como se de uma religião se tratasse.
De resto era mulher de pouca fé... Ia à procissão anual da Senhora das Campinas, as festas da terra, porque era o ponto alto da vida daquele lugar, dos poucos momentos animados que havia. Pensava-se o ano inteiro nas festas, nos emigrantes que voltavam, nas famílias reunidas, nos vestidos novos a estrear, nos cozinhados bons a imaginar.

Clemência criou um filho, com a alegria da sua alma de mãe, com o conforto de um lugar onde todos se conheciam e de alguns parentes que ajudavam no que podiam. Alguns, nem todos, porque outros foram fazendo de conta que ela não existia, o estigma de ser mãe solteira e pobre ainda pesava. 
O filho cresceu e emigrou como tantos outros. Vinha nas férias, enquanto solteiro... mas cada vez com menos frequência, quando ganhou uma companheira estrangeira.
Clemência envelheceu, como a todos acontece.
Dizia que ele era um filho dedicado, que telefonava, que ajudava, mas enfim ... lá tinha a sua vida.  
De uma calma otimista, Clemência era uma figura forte, de coragem e determinação. 
Era assim que a viam na aldeia - trabalhava no campo, pegava qualquer biscate doméstico que surgisse, mesmo os mais duros - sempre desenrascada e de sorriso aberto, sempre pronta a ajudar, a desculpar e chegar-se à frente quando as dificuldades dos outros precisam dela. 

Sentia-se bem, sem nada ter: um gato, um pátio para varrer, um poço para tirar água, uns vasitos de flores que eram a sua perdição. As vizinhas para um bom-dia. As comadres para discutir o preço do bacalhau ou para trocar uns legumes, no tempo deles e segundo as posses e a produção caseira de cada uma... 
A vida: simples, aldeosa, pobre, sofrida... sem que, contudo, disso se tivesse uma perceção real. 
Talvez por viverem afastados dos grandes centros, as pessoas não se sentiam especialmente desfavorecidas. A noção de cidade, de vidas diferentes das suas era um pouco vaga, chegava sobretudo através das telenovelas. Era coisa da televisão, meio fantasia, magia, irrealidade talvez... era outra coisa,  outra gente, não era a vida deles, por ali. Claro que havia ricos, sempre houvera... pouco questionavam e gente que chegava com outros hábitos... pouco importava...

Eles, os de sempre, os da aldeia, os que ali estavam há gerações e gerações, com os mesmos rostos, ocupações, sofrimentos e pobrezas é que eram a massa humana normal. O resto, era de fora!

Não eram pobres, nem infelizes. Isto é: não pensavam muito nisso ou talvez o tivessem interiorizado de tal maneira que nem o sentiam.
Eram assim. 
Uns mais alegres, outros não, uns mais fracos ou mais corajosos, uns com mais sorte outros mais palermas, uns certinhos e outros destravados. Não havia bons e maus, mas havia certamente gente com maus hábitos: o Careca sempre bêbado, a Domitília sempre a criar intrigas, o Piruças que tinha a mania de enganar todos, a aldrabar e a sacar umas massas aos amigos (tontos). Mas coitado, se tinha apelido de cão, que mais se podia esperar dele?!

E neste pequeno mundo, a dureza da vida de Clemência mal se via, o que mais sobresaía não era a inclemência do destino de uma mulher trabalhadora e só. O que todos notavam era a vitória espelhada no sorriso que esta mãe transportava, como uma medalha de "coragem e determinação".

Os "fortes" nunca são objeto de pena e congregam fracos apoios solidários. Quem está de fora, pensa que são seres brindados com a sorte de serem automaticamente felizes, só porque encaram a vida com alegria e segurança. Esquecem que por detrás de uma mulher resistente e corajosa, existe um ser humano com fragilidades comuns e carências de afeto. Os depressivos e os tristes são mais facilmente acarinhados. Aos vencedores ninguém dá nada.

No entanto, eles também são gente e Clemência sabia quão frágil era a sua força. A solidão apertava, com a idade trabalhava menos, ganhava pouco e futuro não tinha, evidentemente. 
Uma morte digna ser dar trabalho a ninguém - já que ninguém existia para lhe segurar a mão - era tudo o que ambiciovava.

No fundo, o que todos queremos: morrer bem e ser feliz enquanto se por cá anda...
E para isso é preciso tão pouco: ter um pátio para varrer, alguém para amar (um filho longínquo ou um outro pilar de afeto virtual) e umas flores para regar...






Sem comentários:

Enviar um comentário