terça-feira, 29 de outubro de 2019

O Elefante Voador


 
Era uma vez um elefante que voava...

Não, não vou contar a história do Dumbo. Essa ficção, adaptada pela Disney, conta a história de um pequeno elefante de circo de grandes orelhas, ridicularizado por todos. O nome é uma mistura de dumb (burro) com Jumbo, o grande elefante africano que a Europa viu pela primeira vez.
Um dia, Dumbo e o seu único amigo - o rato Timóteo - meteram-se nos copos (mais precisamente beberam o champanhe dos palhaços) e no meio de alucinações e fantasias, Timóteo deu-lhe uma pena mágica e convenceu Dumbo de que ele conseguiria voar. Com a sua auto-estima valorizada - afinal a feieza das suas orelhas tinha alguma utilidade - e seguro pela força do seu amuleto, Dumbo sentiu-se capaz de tudo, mesmo de voar...
Moral da história: a fantasia é capaz de levar muito longe quem nela acredita. É um pouco como a fé e as religiões. Dumbo tinha tudo a seu desfavor - era feio, fazia figura de parvo no circo, não tinha outros amigos para além do rato, quase orfão porque a mãe tinha sido presa, era pesado demais para voar - mas tinha fé na sua pena e... voou.

O meu elefante voador não tem orelhas grandes! É bonzinho, inteligente, não muito bonito, mas é de tal modo querido e simpático que tem muitos amigos ...
A única coisa em comum com o outro é que acredita piamente que pode voar. 
Tem uma mente prodigiosamente fantasista e otimista. Tudo de bom lhe pode acontecer... aliás, acredita que uma parte das coisas boas da vida já lhe aconteceram e, mesmo que o presente lhe ofereça alguns dissabores, crê que o futuro será mais promissor. 

Só lhe falta mesmo é voar, com destino ao castelo dos seus sonhos, onde à sua espera estará o príncipe encantado. 

Mas lá chegará o dia. Tão certo como ganhar a lotaria. Se não for a voar, será de bicicleta ou até de barco a remos. Porque este elefante nada teme e será capaz de grandes coisas - de atravessar o deserto a nado, de pedalar até às nuvens, de transformar um sapo em príncipe, de fazer fogo das frias pedras... 
Tem uma capacidade inaudita para transformar em beleza o mais feio dos desígnios, para transformar em bondade a bruxa mais ruim, para olhar as aversidades como uma benção dos céus, para agradecer aos deuses e aos espíritos as provações que, por ventura, lhe caibam em sorte... enfim, para virar o bico ao prego.

Ás vezes, até gosta de pregar o prego no coração do inimigo... Isso acontece apenas nos dias maus, porque em regra é bonzinho (ou imita muito bem)... os inimigos são incomodados com pequenas alfinetadas tão delicadas que mal se nota a ferida, assim não deixa rasto, nem cria inimizades e consegue ficar na história como um lindo elefante, bondoso e amoroso.

Tem um coração maior que o mundo e um ego que não cabe nele. Tão cheio de fantasia quanto de riscos. Alimenta-se de emoções e de afetos. A medicina julga mesmo que sofre de um qualquer distúrbio metabólico que não sabe explicar: 

   - Quanto menos come, mais engorda! E quanto mais engorda, mais leve fica e mais flutua...

E assim, sobe aos céus! Julga cavalgar romanticamente um cavalo branco, pedala infantilmente uma bicicleta fantástica e dorme aconchegado numa nuvem, sentindo a suavidade de quem o cobre ... 

Paira feliz sobre os amores terrenos (que vê ao longe, mas que ama tremendamente) e, da sua fantástica morada celeste, vendo o mundo a cor-de-rosa, tenta fugir aos escolhos que os caminhos pedregosos da vida a todos colocam.

Será que este feliz elefante voador chegará ao seu destino? Ou continuará a pairar nos céus a fazer figura de dumb?




terça-feira, 22 de outubro de 2019

A Mulher do Leme



Será que ser a mulher do leme da minha própria vida é uma ambição desmesurada?

Toda a vida andei a conduzir um barco alheio, que não meu, cujo destino não dominava por completo, seguindo uma rota que me era pedida (nunca exigida violentamente, mas discretamente imposta), zigue-zagueando ao sabor do vento dos bons costumes, da tradição, do que era esperado, do bom senso...

E eu - qual marinheiro cumpridor e um pouco tonto - lá ia pegando o leme e dando uma ajuda à viagem coletiva. No fim de contas, alguém tinha de pôr a coisa a navegar e era preciso seguir em frente, para que família chegasse a bom porto, para que as obrigações profissionais fossem cumpridas, para que tudo corresse bem e depois... só depois dos outros estarem satisfeitos e seguros, é que eu procurava descansar, desejando que houvesse uma cadeira no convés, para saborear os últimos raios de sol de mais um dia que morria no mar.
Nunca fui verdadeiramente uma mulher do leme . Era um grumete mais graduado e que se desenrascava ... só isso. 
Quanto a ter poder para desenhar a carta e determinar a rota, quanto a ter verdadeiro comando .... só recentemente aprendi.
Reconheço que com muita dificuldade.

Não sei navegar, não é fácil ser a mulher do leme, conduzir o meu próprio destino com firmeza e satisfação.
Gostaria de o ser, de navegar ao meu gosto, de visitar os locais que me fossem aprazíveis, de dar boleia a gente boa, de ir aonde me manda o coração... até, talvez, de partilhar o leme, pontual e voluntariamente, em parceria de boas vontades, com alguém que valesse a pena. 
Gostaria de ser o centro do meu mundo, sem perder os valores da solidariedade, dos afectos e da entre-ajuda familiar...

No entanto, o meu navio é frágil, a minha perícia náutica nula... a minha vida abana demasiado, as ondas assustam-me.
Em dias de bonança, ainda vá... consigo gozar a viagem e até fazer de conta que sou a mulher do leme!
Mas à primeira tempestadezita, balanço e enjoo.
Não me aguento com ventos soprados por espíritos maus e dominadores, vacilo submersa pelas ondas salpicadas, picadas, triturantes de inveja e obsessão, rodopio no remoinho profundo e negro da ganância, da concorrência que luta feroz e eficazmente pela disputa de territórios....
Perco as batalhas quase todas, navais ou terrestres, porque não tenho força contra a forma avassaladora de quem quer tudo, de quem tudo faz pela busca fantástica do Santo Graal, pela exarcebação de um bem maior apelidado de Amor, abstração idealizada e embrulhada em amuletos, que cresce e se alimenta de vazio.
Um mistério! Estranho como é possível, a ambição criar um "ser", que quanto menos come mais engorda, que aumenta a partir do nada e nos aparece grande, pela sombra que lança em seu redor.

Perco por falta de ambição, perco por falta de objetivos.
Não os tenho, é verdade. Não tracei um destino, um caminho para seguir, um porto a atingir. Não tenho rota, nem fim para ela. Não tenho nada, nem mesmo sei se não quero nada...
Fui assim durante muitos anos.


Um dia lembrei-me que estava na altura de partir só, pegar uma pequena embarcação e partir sozinha ao leme da minha vida. Não sabia bem o rumo, a carta de navegação não era das mais exatas, mas tinha um objetivo mais ou menos claro - ia para um lugar chamado Liberdade - esse El Dorado, que continuo a visualizar ao longe, apesar de a viagem ainda ir a meio e ter tido vários percalços.

Têm sido algumas as perturbações marítimas, por vezes as ondas foram tão altas que quase me engoliram, venho ao de cima, gozo o momento, até um outro dia em que o Adamastor acorda e me volta a tentar afogar. Mudo de rota, contorno o rochedo, desenho outra carta náutica, meia  légua mais longe da costa, tento aportar e descansar numa ilhota amigável, volto a partir, atenta às noites escuras do mar profundo, sei que o monstro marinho me espreita...

Desviei-me tantas vezes do rumo inicial que se calhar não vou chegar nunca a esse porto maravilhoso de que ouvi falar, chamado de Liberdade. Uma cidade ainda mais importante do que as vilas chamadas Amor, onde por tempos habitei feliz.

E interrogo-me: será que no meio de tanta tempestade, eu ainda sou a mulher do leme? 
Ou passei à categoria de náufraga? 
Será que não passo de um pobre ser solitário, que flutua na escuridão do mar, agarrada a uma tábua podre, pensando tratar-se de uma forma alternativa (mas difícil e pouco segura) de chegar a um lugar seguro e confortável?


Estou perdida. Perdida é diferente de desorientada. 

Ainda sei onde fica o norte e o sul e até sei ler um mapa. O que não sei é qual o meu objetivo-destino, o que quero, onde desejo chegar, com quem, porquê e para quê...


Ora, como diria o velho Séneca, todos os ventos são bons para quem navega sem destino.
Eu diria os ventos até podem ser bons, o destino é que não é bom, se não for nosso.
O bom porto é aquele que a mulher do leme escolher, é aquele a que se aporta por decisão, com precisão e jeito próprio... não o que é traçado pelos outros.
Se assim não for, mais vale ficar em terra...
E perceber que com a velhice se vão as ambições. Que com a velhice, há que aceitar que ao leme estarão outros, que a fraqueza trará a preguiça, o desinteresse ou a paz (que é tudo mais ou menos a mesma coisa), que se se for adaptável às contingências da vida, resignado e sem expetativas elevadas, se sofre menos mas também se viaja menos.
Fica -se em terra, desiste-se da aventura, do amor, da grandiosidade da vida. 
Desiste-se e morre-se.


Morrer ao leme de um navio é épico, romântico e grandioso... não é para todos.
Uma fantasia bonita, só isso !
Não será para mim, já não tenho tempo, nem força, nem jeito para ser a Mulher do Leme, para governar a minha vida e ser feliz.
Cheguei tarde!

terça-feira, 15 de outubro de 2019

A vida

A vida é difícil para todos, mas também é bela!
pe. José Tolentino 5.10.2019.

Está sol. A felicidade podia estar aqui, mas não sei por onde anda e estou demasiado preguiçosa para a procurar.



Em frente um lago com um repuxo, lembrando que a água é vida, alegria e movimento.
Água que sobe e que desce em pequenas gotas cheias de força.
Tudo o que sobe, desce! A felicidade vira tristeza num instante.
Quando se pensa...
Mais vale não pensar, viver sem pensar, sem sentir, sem sentimentos, poucas emoções.
Se a cabeça não elaborar muitas conjecturas sobre o devir, sobre horrores esperados ( e provavelmente nunca acontecidos), então só fica o sol!
Está quente, a primavera parece ter-se demorado e estar a entrar pelo outono dentro. A pele sente-se bem: o toque de um braço querido aquece o esquerdo, calor humano, enquanto o braço direito se vai deleitando com o calor celeste. 
Que mais se pode desejar? Um banco de jardim sobre o lago e o calor em redor, por dentro e por fora. E no entanto, há um buraco de vazio que não se vê. Uma nuvem negra que pairava imaginariamente num céu completamente azul.
Paz em frente à água e logo acima o museu, preciosidades tão antigas que a nossa civilização não alcança. 
Seculos de história e cultura preservadas até nós, com tanto percalço, com tanta tragedia, dedicação e sacrifício.
Cada livro, cada peça conta uma estória atribulada, gente que fez há muito e os guardou por séculos contra invasões, ataques e intempéries. 
Vida difícil a destes manuscritos, seus donos armênios e outros povos antigos. 
E eu ainda me queixo!
De quê? Se tenho tudo para ser feliz...
Falta o amor... mas será que isso faz mesmo falta?
Falta quem goste de mim e a quem eu faça falta.
Ninguém é insubstituível e a bem dizer não faço falta nenhuma.
Se desaparecer, alguns mais próximos ficarão tristes, mas com o tempo refazem as suas rotinas sem mim.
Se fosse o contrário, se eu perdesse alguém - um amor (maior ou menor), um amigo, um afecto... também haveria de prosseguir.
Com mais ou menos sofrimento ou solidão, a vida continua ... e é bela!
Saberia viver com essa falta e encontraria prazer noutras pequenas coisas - um passeio à beira mar, uma casinha para varrer, um copo de vinho e um amigo, uma cama boa para dormir quentinha, um bom livro, um beijo amado ou desamado, um toque humano qualquer.
Porque em qualquer ser humano bom se pode encontrar aconchego.


Porque nós somos feitos de buracos para encher - se não for amor, haverá outras coisas para guardar lá dentro e fazer-nos bem ... manuscritos, escritos, poesia e sonhos.


segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Como matar a saudade?


Que eu saiba, ainda ninguém escreveu um manual de sobrevivência, de auto-ajuda para ensinar - de um modo prático e eficaz - a melhor forma de matar a saudade.

O povo diz, quando vê alguém que esteve ausente por um tempo, que assim matou as saudades.

Mas não é desta receita de matança de que falo.
Não se trata da saudade tipo "constipação ligeira", daquela que se cura com aspirina, ou seja, que se resolve com um beijinho a um parente afastado que regressa ou em tomar café com um amigo que não se vê há muito.

Trata-se de Saudade mesmo! Doença grave, endémica, persistente, feroz... debilitante - falo daquela saudade que, por vezes, nem tem objeto, não é saudade de ninguém, não é do passsado... nem mesmo saudade do futuro (sendo certo que esta também existe e que  é terrível doença!).

Para essa forma séria de Saudade há que encontrar soluções.

Estou em crer que o melhor nem é curar a doença, é agir a montante - evitar que a saudade se instale, matar o próprio sentimento em si.
Criar uma vacina, para que nunca se venha a sentir isso.
Matar, mesmo. Fazer com que o conceito deixe de existir e de nos perturbar.
Porque ter saudades é uma chatice dos diabos!


"Ai quem me dera sofrer e não sentir,
sorrir ao te ver partir,
saber que nem fazes falta, 
e que o melhor mesmo é cantar,
é dançar e ir com a malta.

Ai quem me dera que a saudade fosse água...

azul, transparente ou branca,
que não fosse mágoa.
Fosse gota caída na areia, 
que não molha, não quebra, nem balança 
que na sua aridez se dilui e do coração nada arranca.

Ai quem me dera arrasar da face da terra essa erva daninha

que corrói e que dói, que nos tortura e mói.
Quem me dera ser um chão estéril e deserto
onde a saudade não medrasse e aí morresse, por certo."



Podemos ter saudade de quem se quer e não se tem, de quem se afastou e não voltou, de quem nunca veio, mas existirá algures num lugar de fantasia dentro de nós.
Podemos sentir a perda do passado ou a saudade do futuro.


Erradicar a saudade da lista de sentimentos humanos parece-me um assunto quase tão importante como encontrar a curar para a lepra. Parecia dificil há uns anos, mas até se conseguiu (ou quase).


Os leprosos iam para um lugar afastado, uma ilha deserta... assim se fazia de conta que a doença não existia e não contaminavam os outros. Podíamos fazer o mesmo com os saudosos crónicos - todos para uma ilha, já!
Aí, poderiam chorar sòzinhos até morrerem de aborrecimento e não faziam mal a ninguém.

Como esta medida me parece obsoleta e complicada, há que encontrar algumas ações mitigadoras para ir curando os saudosos, ou seja, aqueles seres desgraçados que sofrem de saudades, com muita frequência e intensidade.

Algumas receitas que podem ser utéis:


Receita nº 1: Não amar

Aqui, Amar é um conceito abrangente, que inclui versões mais ligeiras como "gostar de", estar dependente afetivamente, ter carência disto e daquilo...
Uma alma fria e desprendida, liberta de sentimentos amorosos ou de prisões afetivas, não ama... mas também não sofre nem tem saudades.



Receita nº 2: Micro-Chip eletrónico

Trata-se de encontrar um substituto para o vírus da saudade, ou seja ocupações mentais que se instalem no cérebro e que evitem a usurpação do espaço por sentimentos dolorosos, como a saudade. Por exemplo, inserir um chip de inteligência artificial, que dotasse o paciente de uma incapacidade permanente para sentir saudade, dando-lhe outras hipóteses de ocupação da mente. A saudade entrava pelo cérebro a dentro e, zás, esbarrava no chip! Este rapidamente a curto-circuitava e pimba, a saudade morria ali. No seu lugar, naquele neuroniozinho onde a saudade se costumava alojar, o chip criaria coisas lindas para a mente se ocupar e para entreter o coração.



Receita nº 3: Metadona

Juntar os saudosos numa associação de partilha de experiências, onde todos se encontrassem numa mesma fé e passassem a ter saudades apenas uns dos outros e não dos antigos objetos da sua saudade. É a solução estilo metadona, deixam de estar dependentes de um antigo afeto, por quem tinham muita saudade e sofrimento, que estava a criar uma dependência perniciosa, e passavam a ter uma saudade muito mais light e inofensiva, pelo um grupo de ajuda colectiva.


Receita nº 4: Deitar fora as agendas

Quem não tem programação de vida, também não tem expetativas. E quem nada ambiciona, também não tem desilusões. Ora a saudade é desejar o impossível... por isso, não vale a pena forçar o pensamento nesse sentido. Não se pode ter, então paciência... não se tem! Não há que agendar um regresso ou um retorno ao passado, uma vivência semelhante ao que se teve de bom, nem esperar o cumprimento de um desejo futuro.
Matar o desejo e a expetativa é meio caminho andado para não ter saudades, nem desilusões. A nossa agenda de boas coisas para fazer (que depois não acontecem) ou de boas coisas que foram feitas (mas não se repetem) é um documento a abolir! Só serve para trazer dor ao presente.

Receita nº 5: Ginástica

Existe uma panóplia de filosofias, práticas e metodologias que incluem exercícios de ginástica mental, para ensinar uma pessoa a centrar-se em si mesma e no momento presente. Por exemplo, o mindfulness ou yoga... Qualquer forma de meditação serve!
É de difícil treino e implementação, mas quem o consegue é um sortudo.
Encontrar a paz interior... des-sentimentalizar a vida...
Eis a solução!









sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Desilusão



A desilusão, não sendo o pior dos sentimentos, deita abaixo até quem tenta andar de pé e em frente.
Não mata, mas mói!
Há um desalento, um tom de fim.... de algo que desaba e cai.
A desilusão é uma queda e uma perda. 
Um sonho sonhado que, de repente, se tornou impossível de realizar.
É nestas alturas que penso que não devo sonhar muito, nem embarcar em fantasias.
Quem não tem expetativas também não tem desilusões.
Nada esperar, nada obter...
Não há ilusões, também não há trambolhões! 
O melhor é ir vivendo, um dia de cada vez, sem pensar muito no amanhã... é melhor assim.
Sofre-se menos.
Quem espera, nem sempre alcança.
Mais vale não esperar. Não fazer projetos, não ter objetivos, não contar com as pessoas... sobretudo, não contar com as pessoas de quem se gosta...
Mais vale não viver, não rir, não amar...
O melhor é passar pela vida meio a dormir, ir contornando os icebergs e tentar sobreviver.
Andar em frente e não pensar. Dormir...
Não fazer projetos, não ter ideias, esquecer agendas, algoritmos ou programações... nem gostar muito de ninguém.
Receber de coração aberto os amigos que se atravessarem  no nosso caminho, sem fazer perguntas, nem esperar muito deles. 
Ir vivendo, tentando sorrir e ser alegre, voando baixinho... como que sobrevoando o terreno minado das desilusões. Nunca pousar, em lado nenhum. Nunca me agarrar a pilar nenhum... vivendo só, desacompanhada e sem ilusões... para que não haja espaço para que a desilusão se instale.
Ela (a desilusão) que vá chatear outro. Eu terei de encontrar uma carapaça de indiferença para que esse mal não me atinja.
Não sei se há vacina contra essa doença (a que sou atreita) , mas conheço quem seja imune.
Felizes e sortudos aqueles que nada esperam e se limitam a ir vivendo um dia de cada vez, recebendo o que o presente lhes dá.

O que tenho ainda que andar para lá chegar! Para aprender a viver do pouco que me dão e dar-me por satisfeita, sem depender emocionalmente de ninguém, convencer-me que todos os homens e mulheres são uma cambada de egoistas, que fazem o que querem sem olhar ao sofrimento alheio ...
Eu incluída!!
Somos todos uma merda! Salvam-se alguns (poucos) santos, que sabem o que é o amor e a solidariedade . Esses não têm desilusões, perdoam e são felizes.
Como diria o Pe. Tolentino: felizes, varrendo o pátio e tirando água do poço, sem mais, em solidão !
E cada vez mais estou só e tenho de me capacitar disso, para que a desilusão não se instale e magoe tanto!

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Uma Mãe


Uma mãe também é gente, se bem que quando se começa a ser mãe perde-se um pouco a noção da individualidade própria. 
Passa-se a existir um função de outrém, a utilidade sobrepõe-se à essência. O que a mãe faz é mais importante do que aquilo que ela é. 
A pessoa já não é mais a mesma, passa a ser a mãe de ..., passa a ser uma mulher de compromissos e prisões, para sempre (ou, pelo menos, nos próximos 20 anos), será alguém que existe em função de... 
Uma espécie de agente de uma missão - transcendente é certo, respeitável sem dúvida, socialmente muito útil, porém, limitadora - a de criar, apoiar, prover, justificar, sofrer com outro ser, que não ela. O que lhe dá uma voz diferente e um rótulo inconturnável - ser mãe de... E isto acontece na rua, na escola, no médico, na família alargada...

Ser mãe é uma condição permanente...  não é um part time. Ser mãe sòzinha ainda mais.

Clemência era mãe solteira, quase analfabeta, trabalhadora, tão intensamente ocupada que nem cabeça nem tempo tinha para pensar. Filosofias como estas não a perturbavam - ela era mãe e pronto e vai daí esqueceu-se de ser outra coisa.
Aliás, ninguém a ensinou a pensar (se é que isso se ensina!), tentaram ensiná-la a ler... mas pouco e com pouco sucesso.

Vivia numa pequena aldeia alentejana, numa casa térrea - como eram quase todas por ali - branca debruada a azul, numa rua alegre de casas brancas à sombra de laranjeiras amargas.

A sua era a mais pobre e a mais velha, herdada de uma avó, e ela sem posses para a alindar... Apenas um toque de cal, obrigatório na Primavera, mantinha o orgulho e a limpeza alentejana do seu lar. Clemência aprendeu assim e amou sempre a limpeza alentejana como se de uma religião se tratasse.
De resto era mulher de pouca fé... Ia à procissão anual da Senhora das Campinas, as festas da terra, porque era o ponto alto da vida daquele lugar, dos poucos momentos animados que havia. Pensava-se o ano inteiro nas festas, nos emigrantes que voltavam, nas famílias reunidas, nos vestidos novos a estrear, nos cozinhados bons a imaginar.

Clemência criou um filho, com a alegria da sua alma de mãe, com o conforto de um lugar onde todos se conheciam e de alguns parentes que ajudavam no que podiam. Alguns, nem todos, porque outros foram fazendo de conta que ela não existia, o estigma de ser mãe solteira e pobre ainda pesava. 
O filho cresceu e emigrou como tantos outros. Vinha nas férias, enquanto solteiro... mas cada vez com menos frequência, quando ganhou uma companheira estrangeira.
Clemência envelheceu, como a todos acontece.
Dizia que ele era um filho dedicado, que telefonava, que ajudava, mas enfim ... lá tinha a sua vida.  
De uma calma otimista, Clemência era uma figura forte, de coragem e determinação. 
Era assim que a viam na aldeia - trabalhava no campo, pegava qualquer biscate doméstico que surgisse, mesmo os mais duros - sempre desenrascada e de sorriso aberto, sempre pronta a ajudar, a desculpar e chegar-se à frente quando as dificuldades dos outros precisam dela. 

Sentia-se bem, sem nada ter: um gato, um pátio para varrer, um poço para tirar água, uns vasitos de flores que eram a sua perdição. As vizinhas para um bom-dia. As comadres para discutir o preço do bacalhau ou para trocar uns legumes, no tempo deles e segundo as posses e a produção caseira de cada uma... 
A vida: simples, aldeosa, pobre, sofrida... sem que, contudo, disso se tivesse uma perceção real. 
Talvez por viverem afastados dos grandes centros, as pessoas não se sentiam especialmente desfavorecidas. A noção de cidade, de vidas diferentes das suas era um pouco vaga, chegava sobretudo através das telenovelas. Era coisa da televisão, meio fantasia, magia, irrealidade talvez... era outra coisa,  outra gente, não era a vida deles, por ali. Claro que havia ricos, sempre houvera... pouco questionavam e gente que chegava com outros hábitos... pouco importava...

Eles, os de sempre, os da aldeia, os que ali estavam há gerações e gerações, com os mesmos rostos, ocupações, sofrimentos e pobrezas é que eram a massa humana normal. O resto, era de fora!

Não eram pobres, nem infelizes. Isto é: não pensavam muito nisso ou talvez o tivessem interiorizado de tal maneira que nem o sentiam.
Eram assim. 
Uns mais alegres, outros não, uns mais fracos ou mais corajosos, uns com mais sorte outros mais palermas, uns certinhos e outros destravados. Não havia bons e maus, mas havia certamente gente com maus hábitos: o Careca sempre bêbado, a Domitília sempre a criar intrigas, o Piruças que tinha a mania de enganar todos, a aldrabar e a sacar umas massas aos amigos (tontos). Mas coitado, se tinha apelido de cão, que mais se podia esperar dele?!

E neste pequeno mundo, a dureza da vida de Clemência mal se via, o que mais sobresaía não era a inclemência do destino de uma mulher trabalhadora e só. O que todos notavam era a vitória espelhada no sorriso que esta mãe transportava, como uma medalha de "coragem e determinação".

Os "fortes" nunca são objeto de pena e congregam fracos apoios solidários. Quem está de fora, pensa que são seres brindados com a sorte de serem automaticamente felizes, só porque encaram a vida com alegria e segurança. Esquecem que por detrás de uma mulher resistente e corajosa, existe um ser humano com fragilidades comuns e carências de afeto. Os depressivos e os tristes são mais facilmente acarinhados. Aos vencedores ninguém dá nada.

No entanto, eles também são gente e Clemência sabia quão frágil era a sua força. A solidão apertava, com a idade trabalhava menos, ganhava pouco e futuro não tinha, evidentemente. 
Uma morte digna ser dar trabalho a ninguém - já que ninguém existia para lhe segurar a mão - era tudo o que ambiciovava.

No fundo, o que todos queremos: morrer bem e ser feliz enquanto se por cá anda...
E para isso é preciso tão pouco: ter um pátio para varrer, alguém para amar (um filho longínquo ou um outro pilar de afeto virtual) e umas flores para regar...