quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Aquecimento Global



Penetro no bloco de gelo, para ver se existe! Penetro no desconhecido, que não é água, nem é ar, nem é nada de mim... Algo estranho e longínquo... Intriga-me saber se, lá bem no fundo, continua a ser frio e duro, se o iceberg é mesmo uma pedra de água endurecida pela natureza, pela rudeza da vida, pelo frio, pelo mal, pela falta de calor...
Intriga-me e estranho: será mesmo um espaço impenetrável e perigoso, impassível e rígido? Será uma coisa sem alma, sem nada,  água vazia e perigosa... à espera que o aquecimento global a acorde e a derrame para nos submergir a todos?
Para matar quem vive a quente... mais a sul.
Penetro tão fundo quanto posso, na esperança de que o aquecimento global seja verdade e faça o que lhe compete. Temo que possa estar muito atrasado, que já não seja coisa para acontecer no meu tempo e talvez não passe de um vago mito científico... que demorará de milhares e milhares de anos glaciares...
Espero, com otimismo, que um micro-segundo de aquecimento global possa ser o meu, aquele que virá descongelar a pontinha do iceberg de que preciso para ser feliz. 
Na imensa vida dos glaciares, no tempo não humano da natureza planetária, esse micro-segundo não é nada. Para mim, poderá ser suficiente para amolecer a entrada do meu iceberg e me deixar penetrar nele... um metro ou dois... que sou pequena e pouco espaço ocupo.
Na esperança de um pouco de calor, na fé de que um coração quente toca o frio e o traz consigo, para a lareira dos afetos que moram mais a Sul, longe da frieza nórdica e da rudeza dos homens do mar, que por vezes encalham no gelo e naufragam os seus titanics. 
Sim, porque como bem sabemos, o mais maravilhoso Titanic pode ir ao fundo e tudo se perder...
Cá no Sul, onde o sol esperta (às vezes, debaixo do nevoeiro mais quente) uma pequena embarcação navega, meio bamboleante,  temendo o mar, olhando com desgosto os blocos de gelo. Nunca estamos preparados para a possibilidade de encontrar um pico de iceberg debaixo do casco do nosso barco.
E reza a história que a orquestra continuou a tocar no salão, alegres valsas de amor... aquecendo os pares que bailavam, enquanto lá em baixo no porão o frio foi mais forte e venceu!
O frio, a força sob a forma de gelo, foi mais forte que a música, que os corações dos amantes, que as vidas mais belas ou mais sofredoras...
Impedrenido, o bloco de gelo avançou e derrubou o calor. 
Com o aquecimento global, mais blocos de gelo se irão despregar e vadiar por aí no mar das almas perdidas, à procura de um rumo. Mais embarcações andarão à deriva, empurradas pelas águas que crescem geladas, fruto dos desmoronamentos.
Temos de estar preparados, nunca sabemos qual o calhau gelado nos calhou em sorte, que ao derreter nos vai submergir e afogar...
Enquanto espero pelo aquecimento global - o tal de quem todos falam e muitos não acreditam - eu sonho com um pequeno aquecimento parcial, assim a modos que à minha diminuta escala, capaz de derreter a pontinha do gelo que me pica o casco, me ameaça a viagem e que impede de navegar, pacificamente num mar azul e feliz...



1 comentário:

  1. Adorei. Muito bom e penetrante. Aliás, penetrou-me na alma também.

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