segunda-feira, 5 de agosto de 2019

A Rosa Vermelha


Um quarto de hotel: branco, anónimo, quase invísivel, quase omisso sob o fio de nevoeiro mental que a assolava, imagem turvada pela ansiedade, pelo nó que trazia dentro si. 
Nessa névoa desfocada, Isabel entrou e só viu a rosa.


É dela que se lembra, ainda hoje, quando passa naquela rua onde o hotel permanece, agitado ao sabor das entradas e das saídas de gentes de cá e de lá, de turistas por um ou mais dias, no centro daquela cidade. 

Uma rosa vermelha deitada sobre a roupa branca de um quarto branco, de luz coada suavemente pela mousseline da janela, onde se desconfiava uma persiana semi-fechada. 

Era disso que ela se lembrava: da rosa. 

Vermelha, de certeza! Cor da paixão que não existia ainda... talvez por isso, tão chocante quanto desadequada à situação.

Mas ela adorou. Naquele minuto, tudo mudou nos seus medos e vergonhas, na estranheza da razão que a trouxera até ali. Alegremente, é verdade. Caminhara alegre e leve até ao hotel, ao encontro de um quase desconhecido. Leve, talvez formosa e decerto não segura... Tudo era tão bizarro, inositado face aos seus costumes, sentia-se a levitar de irrealidade, rumo ao desconhecido, era uma coisa de loucos. Sim, tinha consciência da loucura, mas curiosamente não sentia o risco... 

Um encontro marcado num impulso, quando ele lhe mandara uma mensagem... quase sem possibilidade de recusa. Afinal, ela tinha-lhe dado esperanças, tinha sido descaradamente oferecida (mandara uma das suas habituais "bocas foleiras" a raiar o picante e depois olha... deu no que deu...). 
A verdade é que ela andada meio varrida pelo desgosto, perdida de si... pronta para qualquer disparate e foi ele quem lhe saiu na rifa: atiradiço e carente, fiável, contudo, mais velho do que ela, julgava-se mesmo demasiado velho, um exagero porque era tão só um homem maduro... talvez por isso, ela se sentira tão segura... 
Porque não ? Há que dizer sim ao destino... E foi. Foi tontamente ao encontro de alguém com quem tinha estado apenas duas vezes - uma num contexto social, outra numa situação coloridamente ambígua... à terceira foi de vez, sabia que seria a sério...

Foi ao encontro de um desconhecido (não totalmente, mas enfim...), num lugar que não dava margem para dúvidas.
Se teve dúvidas, se teve medo, já o esqueceu. Ia determinada a sair de si. 
Não pensou no encontro como uma aventura, foi mais uma inevitabilidade. Tinha de ser! Um acto de coragem, como saltar de paraquedas para provar que se está vivo. Bora lá! Se a vida lhe dava uma prenda, há que ir atrás dela... ao encontro dele...

A loucura pode ser a solução, quando se precisa de quebrar algo. Ela ia quebrar a sua travessia do deserto e ajudá-lo a renascer no seu (dele) deserto, tão diferentes que eram.

Quanto viu a rosa, percebeu que iria ser bom, achou-se em paz, apesar da excitação do momento, entendeu nela a delicadeza e o respeito. A rosa varreu-lhe a sombra de putice, a vulgaridade do encontro e dos atos, sei lá... a rosa derramou um branco de donzela, sobre o leito dos prazeres que a esperavam... 

Daí para a frente tudo foi fácil e natural. Foi uma princesa, uma verdadeira cortesã do prazer, que ele tratou com carinho e dedicação, com o fulgor físico possível, com o imenso jeito e gosto pela coisa, com a experiência de homem faminto e ousado, conhecedor antigo de mulheres, sedutor natural, habituado a que elas lhe caíssem na sopa (e na cama) só graças ao seu sorriso maroto, ao seu corpo alto e escorreito. 

Era lindo em tudo, na cara... de um quase velho, que escondia a juventude dentro de si, na pele que se adivinhava sedosa, onde em cada ruga espreitava o loiro e garboso rapaz de outrora. E a nudez surgiu natural ... e os corpos reconhecerem-se como se tivessem vindo de um passado comum e jovem, que nunca existiu.

Aquela rosa levou-a a domínios nunca antes experimentados, por serem vividos a sós se bem que com companhia. Coisa contraditória e estranha, mas enfim! Levou-a por cumes e vales de alegria... Ela corria doida, ele incentivava e fazia por a acompanhar... díficil, porém...
Ele tentou pedalar, comprovar que ainda sabia andar de bicicleta, convicto de que bicicleta nunca esquece, que o equilíbrio interior prevalece quando o corpo se encavalita sobre as duas rodas e que, com mais ou menos energia, ela, a bicicleta, avançaria aguentando a gravidade instável, suportada na velocidade... 

Helás! É preciso pedalar um pouco mais porque, sem movimento, duas rodas não dão equilíbrio suficiente... É preciso algum esforço e energia, para arrancar e manter o compasso. 

Isabel sentia-se poderosa e invencível, estava feliz. Maravilhosa a descoberta desta empatia solta, livre e natural... 
Parecia-lhe óbvio que a bicicleta chegaria ao seu destino, com mais ou menos empurrão. Nunca lhe tinha acontecido o contrário.

Nunca pensou que não seria capaz de dar balanço a uma bicicleta, mesmo antiga e desgastada, a uma bicicleta incrédula das suas potencialidades, talvez destreinada pelo desamor e emparvecida pela vida parva...

Ela pensou: se uma rosa me transforma numa rainha, se estas mãos me levam ao céu... porque não levar o meu príncipe comigo. Tão lindo, tão lindo... tão bom...

Isabel continuou com empenho e sincera satisfação a puxar pela bicicleta, a pedalar alegremente ao vento das emoções, saboreando cada descida e cada subida, vendo o prazer a chegar. Eram ondas de uma maré que se espraiava, com salpicos de beijos que pingavam nos sítios certos. Ele sabia. Ele sabia onde tocar, acender uma fogueira de gritos, desvairar, amar, entontar... Ele sabia quase tudo, menos pedalar direito.

Horas de prazer derramaram-se pela tarde, rodando e saltando, percorrendo todas etapas de um caminho que, como todos sabem, tem veredas e recantos maravilhosos, tem atalhos e calçadas diversas, que permitem todos os estilos e exercitam a criatividade...

O amor é para quem tem coragem, para quem não teme a entrega total, para quem gosta do seu corpo, para quem sabe apreciar o corpo daquele que sobre si dedilha e afaga... com as mãos, a língua, os beijos, a pele, as partes fofas ou rijas, as covas e as saliências... por escolha, com prazer...

O amor é para quem tem coragem e avança sem medo dos resultados, é para quem colhe alegria e soma vitórias com os seus fracassos. Para quem não teme fazer a coisa ao gosto da coisa, mesmo sem muita coisa, em vez de o fazer ao gosto do gosto comum e vulgar.
É para quem prefere dar, em vez de receber...

Essa imagem - a rosa primordial - é o que guarda dele como memória especial e única. 

Muitas tardes e dias de alegria viveram juntos, depois disso. Muitas horas felizes que sabiam sempre a pouco... muitas rosas recebidas, com carinho e dedicação, quase que com regularidade suiça, mas aquela tinha sido a primeira. 

Foi essa rosa que marcou a diferença entre aquilo que poderia ter sido um encontro colorido e, ao invés, foi um bacanal de sentimentos e de respeito afetuoso, a diferença entre sentir-se uma galdéria ou uma flor bem amada.

Foi a rosa, no principio de tudo, que assinalou a distância entre ser donzela ou messalina.




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