quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Macumba




Eu não acredito em bruxas mas, como todos sabemos, elas andam por aí!
E, sobretudo, acredito em bruxas com caras de anjo, boazinhas, bom coração, de quem todos gostam.
Interrogo-me muitas vezes como é que determinadas pessoas muito determinadas conseguem obter os seus intentos. Com determinação, certamente! Com perseverança, fé, paciência e força, são capazes de transformar energia positiva em algo de negativo para outrém, em proveito próprio.
Bruxas são aquelas que, para salvaguardar os seus interesses, ousam praticar o que for preciso... o que pode, eventualmente, traduzir-se no mal de alguém. Para isso, podem recorrer à mais variada gama de “instrumentos”... desde a persuasão ativa (as chatas), até às surpreendentes mudanças de ânimo (as manipuladoras)... desde o espiritualismo exacerbado e transcendental até à macumba ordinária (as espirituais).
Qualquer que seja a via, têm em comum saberem bem o que querem e saberem que só podem contar com a sua “arte” para atingir os seus objectivos. 
A bruxaria tem muitas casas e muitos rostos. Por isso é tão difícil de reconhecer. Normalmente só as vítimas percebem... por isso mesmo, porque são vítimas. As bruxas têm em comum a fé e a esperança de que conseguem tudo,  têm a força que lhes vem de imaginar que é para seu bem e quiçá dos seus mais queridos.
E bruxas somos todas nós, como se sabe! 
Bruxaria, manipulação ou determinação são folhas da mesma árvore, ditadas pelo instinto de sobrevivência e de luta pelo poder... pelo poder de dominar, quando o domínio implica arrasar a concorrência e quando se quer subir ao pódio sòzinho.
Puro engano. Os lugares de pódio são transitórios... como tudo na vida, aliás. Estamos todos de passagem e não somos donos de nada nem de ninguém. Dos bens materiais talvez se seja dono, a lei trata de salvaguardar alguns direitos. Quanto aos afetos ninguém é proprietário, talvez usufrutuário durante algum tempo. A única coisa que podemos ambicionar é esticar esse tempo – conseguir um domínio do afecto, mais pela via temporal do que real.
E quando não se consegue um lugar de poder, há que pedir aos deuses, aos astros ou aos espíritos que realizem os nossos sonhos. E aos homens que, confrontados com a força do sobrenatural, os concretizem, porque macumba tem muita força.
Macumba é um antigo instrumento musical de percussão africano, de toque repetitivo, irritante e martelador. Virou sinónimo de bruxaria, talvez por ser capaz de derreter os neurónios de quem o ouve, a ponto de este ceder e se deixar encantar... para se libertar do barulho, para acalmar nas mãos do macumbeiro, docemente... entregue, dominado e feliz.
Antes de mais é preciso um sonho e muita força para acreditar nele, para lutar por ele. Não ter medo do ridículo e ser cego para o mundo em redor. Ser chato, insistente, atiradiço, autista em relação ao impacto. É preciso prosseguir indiferente a quem possa estar a assistir ao cozinhado dessas mistelas de bruxaria... e continuar mexendo o caldeirão até estar no ponto. Cuidado, no entanto, para que o joão ratão não morra cozido e frito no caldeirão, para que fique apenas em lume brando, quentinho e bom.
Uma bruxa boa e competente sabe isso tudo. Uma bruxa inteligente é capaz de esperar com paciência por resultados a longo prazo, prefere fazer tudo com calma e com pensamento, concentrando em si todas as forças do universo – as que lhe dão paz para perseverar e clarividência para agir com eficácia. A meditação convoca os espíritos nesse sentido, se não for os espíritos do Além (o qual não deve existir) pelo menos o nosso espírito, atraindo as forças e as pessoas convenientes, repelindo as que não interessam, qual força centrífuga para além da mandala e agregando os afectos centripetamente para o núcleo fundador da mesma.

Não se pode fugir à energia cósmica de uma mandala, que representa a relação entre o homem e o universo, delimitação de um espaço sagrado, imagem simbólica do mundo interior de cada um, lugar de meditação e de congregação dos espíritos que reconciliem o indivíduo com os seus afectos num círculo apertado, absorvente e iluminado. Um círculo colorido, construído com luz e cor, mas cerrado sobre si mesmo como compete a quem é redondo. Fechado na matéria de que é feito, fechado no espírito que o enforma, sendo que este é a maior prisão.
Com mandalas ou macumbas, velas ou procissões, fria inteligência ou denguice amorosa, a estratégia de uma boa bruxa conseguirá os seus intentos. Porque elas andam por aí, são perigosas, velhas e sábias... mesmo as novas e sexy!



quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

A Prima




Ele há primas e primas! 
Há primas de quem gostamos e outras que são umas grandes chatas. Umas são úteis e presentes, outras conhecemos vagamente e nada nos dizem. 
Curiosamente, todas  elas mantêm o nome de prima, mesmo não sendo primeiras no nosso coração.
Algumas são bem secundárias. Injustiça que a genética nunca poderá resolver!
Mas hoje venho aqui para contar a história de uma prima verdadeira, uma prima primeira e premiada - a prima Antónia, mulher de leis, sangue na guelra e mão na anca. Não, não tinha prática de varina nem de peixeira, a mão na anca é em sentido figurado. Se bem que, por vezes quando discursava na barra dos tribunais, lhe apetecesse tal gesto. Advogada de causas duras, de gente dura a cheirar a peixe, a vício, a mundo pesado, de barra. Mulher habituada a vencer - a bem ou a mal - não por si mas pelo outros, a quem ajudava com gosto e que com gosto lhe pagavam para os defender,
Se fosse americana estaria rica. Em Portugal, não se enrica assim no submundo dos pequenos criminosos. Era uma mulher vistosa, não tão chique como aquelas das séries televisivas, mas que dava nas vistas e merecia comentários... nos meandros das cadeias, nos corredores dos tribunais...
- "Quem te prendia bem era eu", era o mínimo onde o piropo javardo podia chegar. 
- “Um juiz assim até se distrai e gagueja a sentença”.
De entre os vários sucessos profissionais da prima Antónia, houve um especialmente útil para o seu primo António.
Ao contrário da sua efusiva prima-irmã, António era um tipo pacato, apagado mesmo… sem ambição, pairava sobre a vida com uma ligeireza desinteressada, sem o gene da guerrilha que coube à prima por inteira.
Um dia, António concorreu a um concurso para admissão na função pública, em que exigiam licenciatura em Direito, para a carreira de técnico superior. Na altura dava aulas numa escola secundária, horários curtos, salário ainda mais curto. Andava descontente. No entanto, deixava-se estar, era pouco ativo na busca de uma vida melhor, lunático, escrevia poemas nos cafés nas muitas horas livres que o trabalho lhe deixava. E sonhava casar, lia romances e sonhava… Também aqui era pouco determinado, sonhava talvez que um dia uma menina reparasse nele, no seu ar compenetrado a escrever poemas e de repente lhe oferecesse flores, ou beijos, ou poesia escrita mesmo ali num guardanapo. Nada acontecia, porque ele nada fazia.
Um dia, porém, empurrado por uma colega, teve um assomo de ambição e concorreu a um anúncio público. Era para um departamento importante, ligado ao governo, para assessoria jurídica especializada na área educativa. Ele achou que talvez fizesse sentido: Direito era a sua formação e de educação sabia o muito que os galfarros de 15 anos lhe ensinavam todos os dias, na escola. Se alguém podia testemunhar a complexidade da tarefa educativa era ele… muitos anos de aplicação de várias metodologias educativas próprias. Pensou mesmo em escrever um manual: “Como sobreviver a 30 malfeitores de hormonas em riste, sem lhes pregar um par de estalos a cada 5 minutos”. Tinha técnicas fantásticas e podia gabar-se de nunca ter perdido o tino. Quando as coisas começavam a ficar feias, fechava os olhos, respirava fundo e pensava: “Pior do que estes miúdos são os colegas que me puxam para tomar café na sala de professores”. Tentava escapar sempre que podia ao convívio e a multidões, evitava sobretudo uma certa colega despenteada - de cabelo e de mente - fanática militante de tudo o que havia para militar, de quem até o delegado sindical fugia por não aguentar tanta militância e capacidade reivindicativa.
Não obstante, naquele dia, a senhora desmiolada pespegou-lhe com o Diário da República à frente e disse: 
  - António, tens de concorrer a isto! 
Ele só para não a ouvir, encheu-se de brios, puxou por uma réstia de ambição e de esperança e lá enviou o requerimento. Seis meses depois, a solícita colega apresentou-lhe o Diário da República com os resultados do concurso. Tinha ficado em 2º lugar, a escassos pontos do primeiro classificado. Encolheu os ombros, levou a fotocópia para casa, só para não desfazer na boa vontade da colega e falou por acaso no assunto à prima, que passou lá em casa ao final da tarde. 
Antónia olhou distraidamente para a fotocópia do jornal oficial, caíram-lhe os olhos na lista nominativa dos candidatos e deu um salto da cadeira. António pensou que era mais uma histeria qualquer da prima.
Ela disse:
- Esse Manuel Osório de Sousa é falso!
Ele perguntou:
- O candidato que ganhou é falso? Que disparate Antónia, se está aqui é porque existe!
- Claro que existe e até sei quem é. O que é falsa é a candidatura, ele não tem os requisitos necessários para ir a concurso. Tens de impugnar esta farsa!
Antónia – furibunda e esvoaçante de gestos e de roupa – circulava pela sala de António, contando o que sabia sobre o dito candidato ganhador. Disse que o tinha conhecido como solicitador num bairro problemático dos arrabaldes. Começara por ganhar dinheiro tratando de assuntos administrativos e fiscais junto de máfias sub-urbanas. Tinha mudado o seu escritório para Lisboa e sabia que agora estava mais bem relacionado, fruto sabe-se lá de que negociatas e trocas de favores. O rapaz era esperto mas não tinha habilitações, talvez tivesse frequentado Direito, por pouco tempo e com passagens administrativas, nos anos a seguir ao 25 de Abril. Mas estava certa de que não tinha feito nenhuma licenciatura.
No dia seguinte, arrastando um António meio contrariado e receoso, dirigiu-se ao departamento público responsável pelo tal concurso. Os dois primos entraram na receção, edifício antigo da baixa lisboeta, onde reinava uma paz chamada de monotonia e havia um cheiro a pó de repartição pública à moda antiga. No átrio amplo e cinzento, apenas duas pessoas – a recepcionista e o segurança. Ela era uma espécie de carro de combate com bigode, quadrada, morena, cara de susto, talvez tivesse uma verruga pilosa, mas se não tinha é como se tivesse... Parecia intemporal, estaria ali há quarenta anos, com o mesmo cabelo preto, sem corte definido e provavelmente sem tinta, porque o espirito do lugar - qual formol - o mantinha sempre igual. Contrastava como o jovem segurança, novinho e magro, na sua farda bem desenhada e ornada com o logotipo da empresa.
A advogada avançou decidida e pediu para ser recebida pela doutora presidente do júri, que assinara os resultados do concurso. Depois de contacto telefónico, a rececionista informa:
- A Senhora Doutora está em reunião, não os pode receber.
Ao que Antónia responde:
- Nós esperamos por ela, mas não saimos daqui!
E acrescentou, no seu tom de voz sonoro e duro, como se o balcão fosse a barra de um tribunal:
- Pode dizer à Senhora Doutora que vou dar ordens ao segurança para encerrar a porta, de imediato, e chamar a polícia. Represento legalmente este senhor – e apontou para António – venho consultar os documentos de um processo de concurso e, eventualmente, impugnar os resultados. A polícia evitará a saída de pessoas e de bens. A lei assiste-me, perante o risco de fuga de documentos relevantes para o processo.
A atarantada funcionária acordou ao fim de um longo sono de quarenta anos e, muito nervosa, desandou dali. Deixou o estupefacto segurança – que, pelo sim pelo não, fechou a porta – largou o telefone fora do lugar e desandou a correr pela escada acima, a caminho de uma qualquer autoridade do piso superior.
Desce ao fim de pouco tempo, saltitante e trôpega pela mesma escada antiga, agora mais sorridente, talvez aliviada e anuncia:
- O Senhor Diretor-Geral vem aí.
Fim de cena. Parecia uma peça em dois actos. O artista principal – leia-se o dirigente máximo daquela organização – aparece, calmamente saído da porta do elevador. Vem seguro, na aparência, mas delicado na abordagem, visando pacificar eminente problema. Dirige-se cerimoniosamente à advogada, pedindo credenciais. Enquanto a identificação se faz e o António é apresentado pela sua representante Antónia, o Diretor olha em redor e fixa-se no segurança.
- E a porta? – perguntou, timidamente, o jovem segurança.
- Fechada! – respondeu o chefe.
E abalaram os três para o gabinete do Diretor.
Dois dossiers volumosos colocados sobre a mesa de reuniões, uma consulta rápida e incisiva da senhora advogada e foi encontrado o documento do crime – o cartão de inscrição na Ordem dos Advogados, apresentado pelo candidato colocado em primeiro lugar era uma montagem – foto colada por cima de outra e nome rasurado.
Também a certidão de habilitações – licenciatura em Direito pela Universidade de Lisboa - em papel azul de vinte e cinco linhas, escriturada à mão em bonita letra da suposta chefe de secretaria, tinha uma particularidade: não dispunha de selo branco, nem qualquer tipo de carimbo. Alguém copiara a minuta no papel adequado, com os dizeres adequados, mas era falsa.
- Crime muito pouco perfeito...– diria Antónia, rapidamente, como era de seu timbre.
Perante a evidência do embuste e do arrazoado jurídico da prima Antónia, o Diretor-Geral gaguejava uma conciliação qualquer...
Antónia sugeria veladamente existirem indícios de conivência entre o candidato ganhador e a organização que abrira o concurso. A vaga para a qual tinha sido aberto o concurso não resultava de uma real necessidade de serviço, parecia tratar-se de um lugar criado especificamente para dar emprego ao tal senhor... quiçá a troco de favores. Por isso o Diretor-Geral titubeava, dando a entender que tinha sido por imposição superior – leia-se política – que o lugar tinha sido criado e o perfil funcional desenhado... por medida.
Por acaso mesmo à medida e à sorte do António, jurista e professor desinteressado. Quanto ao interessado naquele lugar, por sinal um posto mais bem pago do que é comum na função pública, esse ficaria a ver navios, que é como quem diz a ver o António navegar nas ondas da sua ambição. O António à boleia de dito Manuel de Sousa – mafioso, jeitoso e bem relacionado nos meandros dos jogos de interesses e da política – encontrou o seu rumo e uma vida um pouco mais equilibrada.
O concorrente falsário retirou a candidatura e António avançou na tabela classificativa. A prima Antónia negociou, de forma solene e discretamente ameaçadora, como era seu timbre, o futuro de António. Contrapôs com o silêncio de uma possível denúncia quanto aos contornos menos claros que estiveram na base da criação do lugar e não avançou com a queixa por desleixo/conivência na apreciação dos documentos concursais.
Ele há primas que fazem muito jeito!



segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Jardim Florido


Há dias assim, olha-se pela janela e vê-se um jardim alegre e cheio de cor. 
Ao lado, dizem-me que chove muito e que o vento sopra com força, arrasa as poucas folhas que as árvores ainda têm. Talvez chova mas eu não vejo. Sinto apenas o som de pétalas a cair na janela, não são gotas de água mas algo de alegre e colorido. Cheira bem! 
Equipas camarárias trabalham afadigadamente para limpar os estragos do temporal da véspera, parte do jardim está vedado ao acesso dos peões, o transito das ruas próximas interrompido, é o que dizem. Contam também que o céu está cinzento, mas eu olho e vejo azul, eu olho e as alamedas estão cobertas de flores, de todas as cores.
Trabalho com grande velocidade, o stress tornado produtividade, os problemas resolvem-se com leveza e eu continuo a ver tudo a cores.
Esperança de que me gostem, certeza de que há quem já goste, e que o mundo está cheio de pessoas interessantes e carentes. 
As cores são pessoas e afetos, são dúvidas e certezas, são o prazer da espera... Uma noite feliz para muitos dias felizes. Ou uma grande confusão porque tudo o que é bom tem o seu reverso? Hoje apetecia-me um café com calma... conversar de alma aberta... não sei se vou ter. Talvez consiga transformar o silêncio em flores, que caiam sobre mim em alegria... Talvez! Só amanhã saberei...
E amanhã será um novo dia, com sol e uma alameda cheia de flores. Depende de mim, semear mais cor e afastar os cinzentos desta vida.

sábado, 9 de dezembro de 2017

Poliamor



Difíceis são todas as relações, como bem sabemos.
No entanto, elas são essenciais à vida de qualquer ser humano, que é naturalmente gregário e quase sempre solidário para com o seu semelhante. Em regra, ninguém gosta de estar só, em permanência, para sempre, a tempo inteiro.
A solidão pontual até pode ser agradável, um espaço de libertação e sossego. Mas para sempre? Quem quer isso? Nem o mais eremita dos corações desiste da ideia de encontrar parcerias de afectos, de qualquer tipo... sejam elas a família nuclear, os amigos, as relações com o vizinho ou com a amante... ou tão só a procura de um cão ou de um gato para mimar.
Os afectos são a base de sustentação da vida na sua essência não material.
Amar é preciso! Tal como comer, ter um tecto, saúde,  etc.
Chamemo-lhe amor, para simplificar... mas visto no sentido amplo do termo, não necessariamente o conceito "amor-paixão". Alargando o termo a tudo o que nos gratifica sentimentalmente, no sentido em que é vital dar e receber afecto, construir intimidade onde encontrarmos empatia.
Há uma "química" que comanda a empatia e a simpatia, assim como há uma "física" que determina o impulso sexual e o desejo. Podem pensar (alguns homens talvez!) que nós ligamos sexualmente com qualquer um. Não é verdade!
Devem existir coisas estranhas - talvez as famosas feromonas - que fazem com que umas pessoas nos atraiam e outras não. E mais ! ... que fazem com que as relações carnais sejam explosivas com uns e, apenas, morninhas e confortáveis com outros.
Agora o que não faz muito sentido é acreditar que uma só pessoa preenche toda a nossa necessidade de afecto.
O amor é plural, elástico... infinito e grande. Senão como explicaríamos que uma mãe ou um pai possa gostar tanto de um filho único como de três ou quatro?
Se isto é normal em vários tipos de relacionamentos, porque não o é para uma relação homem-mulher, onde para além da amizade, do afecto e da intimidade psicológica, se junta também intimidade física?
Porque razão somos tão exclusivos nesta matéria?
Mas a verdade é que somos assim. A grande maioria prefere exclusividade sexual e amorosa.
Quantos de nós, podendo escolher, optaria por ter vários parceiros sexuais, quando pode ter apenas um que lhe agrade inteiramente?
Imagino que zero ou muito poucos.
A exclusividade amorosa numa relação de conjugalidade, de intimidade física, é o desejo de todos (ou quase todos)!
Talvez porque se suspeite que viver relações poliamorosas é muito difícil. Gestão de agendas complexas, faltas de atenção mútuas pela perda de "foco" numa só pessoa, dispersão de interesses, prioridades mal definidas, abandonos pontuais incompreensíveis, faltas de respeito involuntárias, insensibilidade acrescida como consequência do anterior ... e a dignidade de cada elemento da "rede" afectada... ciúme, medo de perda...
Muito amor e algumas desilusões!
Políamor pode significar liberdade e alegria por viver sentimentos amorosos vários, conforme mais agradar a cada um, em paz e com transparência - sem pesos na consciência nem culpas de traição - mas envolve algum sofrimento.
Sofrimento que vem quando surge uma sensação de injustiça ou de desequilíbrio, que resulta da forma como se gere a "confusão", leia-se a rede poliamorosa.
Pessoas diferentes têm visões diferentes do seu relacionamento. E se quando são dois, já há diferentes entendimentos das regras do jogo... a muitos, então, pior um pouco.
Chamar ciúme aos buracos negros, é redundante.
O ciúme é sempre uma perda. Pode resultar do facto de o parceiro nos ter roubado a atenção e o carinho para o dar a outro ou a outra... ou pode simplesmente ser por nos ter abandonado, temporária ou definitivamente.
Ciúme é o cancro das relações... bem pior do que a monotonia ou a falta de comunicação.
Porque ciúme é a constatação do nada, do vazio, da perda, do fracasso.
Pode ser transitório... felizmente é quase sempre passageiro, mas nos momentos em que ataca, dói, porque a perda de um espaço de tempo concreto é definitiva.
Os momentos em que o amor que me era dirigido foi transferido para outro objecto - mulher, homem ou jogo de futebol - são momentos perdidos, para sempre.
Mesmo que a atenção e o carinho voltem... aqueles momentos, os da troca de mim por outrem, foram perdidos em definitivo.
E a única solução é serem "compensados" com momentos bons.
Por isso, o grande segredo do sucesso para manter um equilíbrio poliamoroso é saber minimizar ou compensar as perdas.
As perdas que necessariamente vão cair sobre os elementos que estão "a mais" ou que estão em situação de maior dependência.
Ora o amor não pode ser uma contabilidade só de perdas... tem de ser também de ganhos e ambos devem estar equilibrados... só assim se pode ser feliz. Quem está numa relação (plural ou não), tem de ter uma capacidade quase ilimitada de amar, de estar atento ao outro ou aos outros, para compensar as falhas, para tapar os buracos que se criam. E isso exige sensibilidade e atenção.
Porque é difícil ser justo e equilibrado, nestas coisas do amor plural. É difícil amar "bem", porque amar não tem regras, nem balizas... só se ama muito... ou nada. Porque o amor não se mede, também não se sabe como repartir adequadamente.
Daí que seja tão prático concentrar o amor (o tal que é afecto e desejo) numa só pessoa. É prático e confortável, não dá chatice, minimiza as perdas, evita os ciúmes e seria a fonte de toda a felicidade... não fora o mundo não ser perfeito.
Não fora o facto de haver gente que nos agrada e que queremos guardar para nós, de preferência sem partilhar.
E é tão diferente saber que se é objecto de uma partilha por parte de alguém que gosta de nós mas não em exclusividade, ou de viver a situação inversa.
Quando sou eu que reparto a minha capacidade de amar por vários, acho tudo fácil, o afecto é ilimitado, o ciúme não existe, ninguém sai prejudicado. O negativo da foto, ou seja, ser uma entre muitas, dá-nos uma visão diferente. Aí percebe-se que não basta ser justa e tolerante.
Percebe que em "rede" há mais barreiras à possibilidade de amar do que seria expectável.
Porque aquilo que queremos dar - e nos parece ilimitado - esbarra nos limites da partilha do outro com os destinatários do seu afecto.
Eu posso querer dar e não haver, ali e agora, alguém para o receber!











quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

A culpa foi do Sampaio







Jorge esfregava o polegar no dedo indicador, levemente colados um ao outro, húmidos, pegajosos, tocados daquele fluído translúcido que tão bem conhecia, cujo cheiro acre lhe parecia doce, pelas memórias que trazia de uma vida passada, uma vida em que as mulheres lhe marcaram as alegrias. Um cheiro estranhamente longínquo … porque já há algum tempo que se afastara dessas lides. As mulheres, dantes tão presentes, foram perdendo importância real. Seria desinteresse? Ou antes o resultado do natural e lento processo de envelhecimento? Não havendo ainda uma fraqueza física relevante, o certo é que já se anunciavam algumas mudanças, mais de postura perante as rotinas, as situações ou as pessoas com quem cruzava … do que falhanço efetivo ou decisão fundamentada de “fechar a loja”. Ele não tinha fechado a loja, deliberadamente, não assumia a falência do negócio, mas não ia lá todos os dias, pensando que não talvez não houvesse clientes ou por preguiça para os procurar, motivar. O certo é que andava esquecido da coisa. E agora inopinadamente ela estava ali – como prova material, o dedo molhado, o seu dedo que tinha estado lá, algures muito perto de um local de prazer, a caminho de uma intimidade não atingida mas sonhada … como se o passado fosse um filme visto ao contrário, de trás para a frente. Um dedo mergulhado num lago de prazer não acontecido. Um dedo, não. O seu próprio dedo, tão próximo desse lago, símbolo de uma ou antes de muitas memórias felizes.

Olhava para o dedo como um troféu, mas também com espanto. Ultimamente, parecia-lhe que o corpo se começava a esquecer de muitas coisas. Os sentidos estariam gastos? Talvez esbatidos, menos nítidos e funcionais. O olfato milagrosamente hoje funcionou muito bem e com ele arrastou outros sentidos. A visão por exemplo…
A visão ainda era a melhor porta de entrada para as emoções e para a pulsão sexual. Perante uma mulher fêmea (bonita ou feia, não importava), uma mulher que despertasse os sentidos, ele reagia normalmente bem, com desejo e alegria. Mas logo a seguir, esquecia. Algo lhe tomava a atenção – um recado a cumprir, um telefonema a fazer até certa hora, um neto a pedir atenção, uma boleia a dar à cara-metade – tanta coisa para fazer, tanta cabeça cheia de tarefas, tanta gente que lhe exigia trabalho de corpo ou de mente. De tal forma era arrastado para o trabalho a bem dos outros que, por vezes, até parecia que o corpo não era dele, mas um instrumento ao serviço de outrem.
Em tempos, o corpo dera-lhe muitas alegrias, agora afastava-se daquilo que ainda lhe podia dar. No entanto, hoje foi diferente. Parte de si voltou a ter um uso adolescente, de forma súbita e inesperada … aconteceu. A Irina que andava lá por casa, supostamente limpando, lavando e varrendo, atravessou-se-lhe à frente e pareceu-lhe especialmente dengosa.

A culpa era dele, porque não tinha perdido o jeito de gabirú, sempre com piropos brejeiros, uma mania tão antiga e tão automática que já nem dava conta do efeito que provocava. Mandava bocas amiúde, mas não parava para ver o efeito. Aquilo saia-lhe, a Irina já devia estar habituada, ria e continuava na sua faina … enquanto a patroa punha as suas trombas nº 1, se por acaso ouvia algo de mais avantajado.
Piropo inofensivo, porque protegido pelo local e pela sua pessoa: era um gabirú encartado, porém educado. E afinal de contas, elas gostam! Elas gostam, sempre gostaram de ser notadas, apreciadas como mulher, pelos seus atributos femininos, pela aura, pelo élan, por tudo aquilo que transmitem e que chega ao macho. Elas gostam mesmo que digam que não, mesmo que se afastem do intruso, mesmo que barafustem, se ofendam, se empinem ou gritem, mesmo que se queixem de assédio… ou lhe preguem um par de estalos. Ao Jorge já tinha acontecido um pouco de tudo isso, ao longo da sua vida já longa. Ele era (ainda é?) metediço, não perde a oportunidade de testar o seu sorriso maroto, capaz de desarmar qualquer uma. Um sorriso picante, apetitoso, maravilhoso. Um sorriso promessa de pecado e de alegria, um sorriso capaz de afagar a auto-estima à mais triste e deprimida das mulheres. Um sorriso democrático: capaz de levantar o ânimo às feias, às jeitosas, às super-auto-cotadas, às pobres ou humildes mulheres comuns, às tias (pobres ou ricas), às mal–amadas, às apaixonadas sempre prontas para adorar o amor em qualquer altar onde o vislumbrem.


O sorriso do Jorge era isso tudo…
Mas ele só o usava com quem era alegre e pronta para o receber, só se dirigia a quem tinha o mínimo de sex appeal, seja lá isso o que for, só dava a quem estava preparado para o receber, mesmo que não soubesse, mesmo que só teoricamente estivesse predisposto sabe-se lá a quê.
Foi o que aconteceu naquela manhã em que a patroa saiu para mais um compromisso de beleza (massagem ou manicure). A Irina andava por ali e as hormonas dele, um pouco adormecidas, acordaram. Vai daí, foi um passo até pôr a mão e, outro, para que a mão se instalasse na cintura da pequena ucraniana (nada pequena por sinal). E da cintura descesse um pouco mais abaixo, naquela zona perigosa da continuação das costas, operação permitida pelo facto de as calças de trabalho serem de tecido flexível, permeável à passagem de uma mão – um misto de algodão e de licra. Calça de trabalho, boa para as limpezas, muito prática, também servia para ir para a ginástica ou até à praia, sei lá! A roupa das mulheres, hoje em dia, serve para tudo. Pode-se ir a qualquer lado com qualquer tipo de trapo, quase tudo fica bem, muda-se a quinquilharia de apoio e o traje compõe-se, o trapinho do china fica ótimo. As calças de licra da Irina, com um bom vison em cima, davam para ir dar um pulinho ao cocktail da embaixada, desde que o cabelo, os brincos e o pedigree da sua proprietária ofuscassem a multidão.

Mas voltando à licrazinha tão prática da Irina e à mão deslizante do Jorge … ela continuou pelo fundo das costas, passou a fronteira da cintura - qual Equador, entre o hemisfério norte e o hemisfério sul – abrandou naquela curva que anuncia a subida do bumbum. E foi por aí que se fixou algum tempo, provando a macieza do local, aproveitando a liberalidade com que a I. se deixava tocar, preenchendo o tempo com risos e áis … forma que ela encontrou para ocupar aquele minuto comprometedor e promissor, para fazer render o prazer, para preencher a atrapalhação. Confinou aquele avanço a um espaço temporal razoavelmente decente, entre o primeiro toque dele e o necessário não dela. Sim, porque há um procedimento protocolar nestas coisas. A ele compete-lhe avançar e a ela dizer que não. Fica bem! A Irina era boa rapariga, tinha um mínimo de decência, sabia que não podia mostrar demasiado facilitismo, por isso foi dizendo que não, mas fazendo que sim.
E neste intervalo de tempo, esticado até ao limite do aceitável, ambos gozaram, saborearam lenta e gostosamemente o proibido. De tal modo que ainda houve tempo para ela se virar, quem sabe se com a intenção de dizer acabou, já basta, não seja malandro, porte-se bem … ainda houve tempo para a mão deslizar da parte fôfa de trás para o território da frente daquele planeta maravilhoso. Agora com a mão claramente pousada no hemisfério sul, viajante num espaço territorial mais líquido, ele deixou de pensar, não chegou sequer a interrogar-se sobre a localização geográfica da sua mão. Sentiu um calor percorre-lhe o corpo e uma rigidez airosa, inabitual e feliz começando a dar-lhe ânimo. Todo ele era estado líquido, por dentro e por fora, estado de desejo vagueando por local de promessas. Regressou ao passado, a uma geografia conhecida mas agora vaga, imprecisa. Uma coisa era certa: ali não era o deserto do Sarah, com a aridez das últimas viagens empreendidas com a sua princesa residente.
Ali, o seu dedo arrumado entre a licra e a doçura da Irina, era um barco deslizante na água turva e espessa dos sentidos … navegando talvez num escuro rio africano, talvez numa zona húmida amazónica. Não interessa. O que importa é que começou aí um pequeno safari hormonal e emocional, no local onde os seus dedos tocaram, onde se besuntaram, onde recolheram o cheiro das memórias antigas e boas … onde o passado se confundiu com o presente. Onde o território Irina, passageiro e fugidio lhe trouxe à memória outra I. – uma Irene portuguesa, 50 anos atrás.

Foi o cheiro, foi a gelatina colada aos dedos retirados (finalmente) do sossego ou do dessassosego escondido e íntimo da Irina, que lhe lembrou uma outra história, tão antiga.
Uma história de quando ele jovem, tão jovem que seria de esperar que não tivesse sossego de corpo. Tão jovem como hoje é, neste preciso momento em que toca os seus dedos aguados de desejo…de anúncio de prazer.

Uma história com uma Irene, cujo cheiro de fêmea, a Irina de agora lhe fazia lembrar.
Uma outra I. do seu passado, que o amou? Talvez, nunca saberá … mas certamente foi alguém a quem ele despertou sentimentos românticos, amorosos, afetuosos e não necessariamente carnais.

Ao contrário da presente I., que lhe suscitou o interesse animal, por via de algo que estava semi-adormecido, a  outra I. de há 50 anos, gostara dele,  porque ele era bonito. Alguém, que não ele, acrescentaria bonito e bom. Tão simples, assim!
Dezoito anos, 1,80m, pele branca e rosada (quase de menina), uma postura sem defeito, pernas altas e direitas, um todo que atraia as mulheres, talvez porque era um misto de carinha de menino do coro com ar de pecado. Foi certamente a postura militar, ia a caminho disso, para já apenas um potencial garboso oficial, em fase de preparação. E foi a farda, claro! As fardas e os carecas são vantagens competitivas com uma longa história no sucesso masculino. Foi tudo isto que a Irene viu (as outras também!), mas ela viu mais, viu a bondade; porque ela conhecia bem os homens, sabia ver para além da beleza e da farda, soube reconhecer um coração para colar à sua tristeza.

Ele estava há um ano na Academia Militar, ali para os lados da Estefânia. Uma juventude entre o campo onde nasceu e Coimbra onde estudou. Boa alimentação da vida rural abastada, uns genes adequados, praticante de exercício físico dentro e fora de portas, um crescimento saudável, deu um rapaz bonito. O treino militar do último ano, a par do crescimento ainda em andamento fizeram o resto. A vida na cidade, deu-lhe um toque diferente no polimento social que um bom rapaz da província não tinha, transformando um estudante provinciano inteligente num príncipe. Sempre teve mulheres, mesmo na aldeia … a vivência sexual foi mais rica e mais livre do que a maior parte dos rapazes do seu tempo. Não viveu as proibições, inibições e demais consequências das habituais lengalengas religiosas ou familiares. Ou se as teve, contornou-as, não o marcaram nem determinaram o seu percurso masculino, como tantos infelizes jovens dessas gerações da noite escura. Teve sorte, nasceu no sítio certo, na família certa ou com a cabeça no lugar certo. Também o meio rural era permissivo para os rapazes e havia algumas raparigas a jeito, vagas primas, vagas ajudas domésticas ou rurais. Ofereciam-se, ele estava lá… Não sabe porque foi assim, mas sempre foi assim, pela vida fora. Jovem ou adulto, elas gostavam dele e ele deixava.

Com a Irene de Lisboa, foi diferente. Não foi mais uma agradável aventura, uma voltinha atrás das moitas lá da terra. A I. não era uma menina bem, nem uma saloia da aldeia alucinada pelo menino bonito de sorriso maroto e muito virado para a brincadeira. Ela não procurava nele a tentação, o gozo de pisar o risco, a novidade, sensações libidinosas desconhecidas mas antecipadas. A I. não era uma menina ingénua, carente de experiência de vida, ansiosa para saber como era um homem. A I. era nova, talvez um pouco mais velha do que ele, mas ainda com a frescura em ordem. Mas não era uma menina como as outras.
A I. de Lisboa era uma puta!
Sim, isso mesmo: uma cachopa pobre que se desembrulhava como podia. Sobrevivia a uma emigração forçada, vinda da terra para a cidade, ao cuidado de uma madrinha-patroa que não percebeu até que ponto o seu homem amadrinhava a rapariga. Quando a madrinha acordou, a rua foi o caminho óbvio.

Naquela altura (tal como hoje e assim sucessivamente) ela encontrou uma solução de vida: homens, homens de preferência rentáveis. O seu destino, por essa altura, era pôr o corpinho a render, para arredondar o miserável salário de vendedeira de copos num bar manhoso do Intendente – hoje seria chamada de bar woman, profissão ainda não inventada, mas muito equivalente. Era isso que a I. fazia: um quartito alugado algures ali perto do bar. Depois de lavar os últimos copos, saía e, com sorte, haveria um cliente ou um homem distraidamente à procura de distração. Tanto podia esperá-la a ela como a outra qualquer… Mas a I. tinha sorte, era jovem, jeitosinha, facilmente tinha quem a levasse. Sítios melhores ou piores, eram eles quem escolhia. Já tinha conhecido casas lindas e ricas, já tinha andado pelas betesgas, já lhe tinha acontecido de tudo, menos cair de amores a sério… Contudo, houve tempos, mais miúda, em que sonhava com isso, ouvia falar as amigas dos seus golpes de coração, havia aquela curiosidade, mas nada que a preocupasse em demasia… sem que isso fosse um desejo, uma esperança sequer. Era algo que não lhe dizia respeito. Não pensava.

O Jorge lembra hoje a sua história com a Irene. Não era consumidor de putedo, nunca precisou, apesar de ter sido curioso o bastante para ir com os compinchas do costume, à experiência do costume. Sem grande continuidade e sem grandes memórias.
No entanto, aconteceu com essa I., algo de extraordinário – uma puta que se apaixonou por ele. Uma puta que o adotou, o levou para casa, o guardou na cama … como um menino seu.
Como é que tudo começou? Até podia ter sido de uma maneira normal. Um jovem cadete vai beber um copo e dá troco à menina do bar, a qual está lá para lhe dar troco e também para dar o seu corpinho em troca de uns trocos.
Seria o normal. Mas não foi assim.
Tudo começou por causa do Sampaio. Jorge recorda que se não fosse o Sampaio e o seu mau feitio não tinha sido adotado por uma profissional do ramo, ainda para mais jovem e apaixonada.
Sim, a culpa foi do Sampaio.
O Sampaio era um tipo desagradável, em tempos tinha sido um gajo porreiro mas um trauma mais ou menos recente, alterara-lhe os humores. Provavelmente, foi uma mudança conjuntural – mudar de humores não é o mesmo que mudar de caráter, esse não muda assim.

Pois rezava a lenda (veiculada pelos oficiais instrutores da AM) que o Sampaio era quase o santo protetor dos jovens cadetes. O Sampaio era o dono do café – pastelaria de manhã e taberna à tarde – ali em frente do Liceu Camões. À 6ª feira à tarde, era o porto de chegada dos cadetes que saiam para o fim-de-semana. Saiam em bando, apressados para ir à terra ou, mais frequentemente, para a vida lisboeta, o que acontecia sobretudo a quem tinha família por perto ou hipóteses de gozar umas horas fora. O regulamento disciplinar exigia que a saída se fizesse de farda. Absolutamente necessário sair corretamente fardado, como forma de demostração pública da força militar, da sua beleza, rigor e poder. Era assim! Havia que cumprir. Claro que a primeira prioridade, em especial para os mais atrevidos e espertalhotes, era despir a farda … e ir gozar a vida à paisana. Descartar-se do invólucro militar, era urgente, havia que ser um civil anónimo, igual aos outros rapazes, circular e viver, como aos dezoito, vinte anos se gosta de viver… ou seja, tudo ao mesmo tempo e apressadamente.

Passado o portão da escola, a primeira corrida era para o café do Sampaio – apelidado oficialmente de A Ideal das Beiras – com o objetivo aparente de beber uma bica mas com uma urgência maior que era ir à retrete dos fundos, despir a farda e trocar de roupa com o fatinho que levavam na mala. Era um corropio, a dita casinha dos fundos era pequena e porca, a clientela era muita e tinha pressa. Uns empurravam-se aos outros, um chinfrim de frases soltas, gargalhadas e atropelos, galarotes novos, contentes consigo próprios e com o tempo que iam viver. Uns ficavam ao balcão e entravam numa de dichotes, cada qual mais parvo, afirmativos da sua masculinidade criança. O senhor Sampaio vira passar gerações de cadetes palermas e até os acarinhava, fechando os olhos ao uso interesseiro do seu espaço mais apetecido, pequeno mas de grande utilidade.

Nos últimos tempos, porém, andava macambúzio, irritadiço e especialmente chato para os militarzinhos do edifício da frente. Dizia-se que lhe tinha morrido um filho em África, na guerra. E que, desde aí ele mudara, transtornado, sem paciência para tudo o que metesse tropa. Mas a bem dizer essa história devia ser falsa, afinal nunca ninguém lhe conhecera um filho, mesmo os sargentos mais antigos que há muito frequentavam o café.
Naquele dia, porém, o Sampaio mostrou quão mal estava. Era mais uma sexta feira como as outras. Um dos cadetes começou uma conversa tola a propósito do lanche – ó Sampaio, tens cá paio? Era uma bucha de paio, para levar de farnel.
Ao que se juntou o compincha do lado: Com paio ou sem paio, ó Sampaio? Porque o paio, se é do Sampaio, queremos saber de que parte do dito é o paio. Se vem do Sam de cima ou do Sam de baixo, porque se ele é sem…paio então é porque não tem paio e nós não levamos um pão ser saber de onde vem o que está lá dentro. Se ele é com…paio, então podemos arriscar a ser do paio de baixo e nós não somos desses. Ou será que por aí não há paio, ó Sampaio? Os disparates – que como todos sabem – não pagam imposto e são de uso livre, continuaram num tom cada vez mais destrambelhado.
O Sampaio aí passou-se. Tinham-lhe tocado num ponto sensível, absolutamente insuportável, pela memória atiçado de um trauma recente. O Sampaio, que já não andava bem, endoidou mesmo, rodou um braço sobre o balcão e foi uma razia de estragos. Com fúria e sem tino, varreu tudo com o braço, uma chuva de coisas a cair – copos, chávenas, cinzeiros (sim, ainda se fumava), um estaminé dos furos dos chocolates Regina, um vasito de flores secas que a tia Arlete, velhota da casa da frente, lhe tinha dado talvez porque a planta já não andava com muita saúde lá em casa, por via das visitas frequentes do gato. Ao mesmo tempo que caía uma caixa de limões no pé de um dos presentes e este saltava de dor e se sentava derrotado e em peso sobre a mala de um outro, ouve-se um grito na casa de banho. Um bivaque mergulhado na sujeira da retrete, com a ideia peregrina de tentar pescar uma nota de 20 escudos – caída do bolso da farda e que tanta falta fazia para a noitada de sábado – uma mão que foi atrás, salvar o bivaque e a sua cativa nota e que ficou entalada, cortada e ferida na loiça rachado do dito buraco. Não se pode dizer que o ambiente fosse de gritos e histerismos, não, eles eram homens – o desatino era barulhento, ecoava com um som fundo que aliava o peso da desgraça vivida naquele espaço à parte cómica da retrete, alvo de troça e de risos. A cena poderia ter continuado por mais tempo, mas acabou quase de repente, aos poucos perceberam que a cara do Sampaio estava tão transtornada que o braço sangrante do cadete – finalmente retirado a custo e a golpe de mais ferida de dentro do inopinado sítio – passou para segundo plano. Afinal a nota salvara-se, o bivaque seria lavado por alguma mãe ou irmã generosa, com sorte e sol, o cheirete passaria. O bravo e ferido jovem recuperaria, a troco de umas gotas de aguardente e de uma ligadura improvisada. Mas o Sampaio não. O Sampaio continuava branco e quando recuperou um pouco o tino, só disse: Na minha casa, nunca mais! Isto aqui não é vestiário de marmanjos, acabou!

A razão para a excessiva reação do Sampaio só mais tarde a vieram a saber. Naquele dia, tudo lhes pareceu dramático (para não dizer trágico, porque efetivamente ninguém morreu) e injustificado. Afinal, os cadetes eram habitualmente espevitados e verbalmente desapropriados. Pensando bem, aquela rábula do com paio fora um pouco ofensiva, mas mesmo assim não era expetável tanto desatino.
O certo é que a partir daquele dia, os cadetes tiveram que encontrar outras formas de se safarem da farda, se queriam viver uma boémia civil, por um dia, uma noite que fosse.
E assim, quem não tinha família ou lugar onde deixar a farda, andaria tristemente penando uma vida de bom comportamento, um cinema, um chá dançante (para os mais bem relacionados), ficando os programas mais pícaros para os outros, os sem farda. Talvez esta visão das coisas não passasse de uma falsa ideia, fruto do imaginário juvenil e masculino, próprio de quem anda à procura do lado mais escuro, desconhecido e por isso potencialmente mais interessante da vida.

Uma tarde qualquer, depois de tudo, um grupo de cadetes discutia os estranhos acontecimentos do café-vestiário. A malta tinha assentado arreais numa tasca do Intendente, por ali ficou a lamentar-se e a rir a propósito da questão de desroupamento desejado.



Á saída, foram-se dispersando e o Jorge tinha à sua espera uma miúda alta, um pouco macilenta e de sorriso aberto para si. Não disse nada, encostou o seu passo ao dele, foi andando … e sorrindo. Tinha um olhar escuro e distante que contrastava com o sorriso alegre, os olhos não combinavam com a boca, tinha um corpo bem feito e mal vestido, uma postura que não ficava mal ao lado do Jorge, um passo rápido … enquanto o dele abrandava agora. Levou algum tempo a falar, em geral, eram os homens que falavam, ela limitava-se a anuir com a proposta, a ir ou a não ir. Às vezes, o não-ir não era opção, mas adiante.
Daquela vez quem falou foi ela. Queres vir comigo, tenho um quarto que te posso emprestar para deixares a farda e ires à tua vida. Ele foi. Foi, despiu a farda e tudo o mais. Foi e ficou, com a Irene, encantada com o seu achado, aninhados na caminha estreita daquele quartinho estreito, num quarto andar tipo mansarda de um prédio velho.
Combinaram um pequeno negócio: alugar o uso do quarto para ele deixar a farda, tal qual café do Sampaio, em dias de saída.

O que se passou a seguir foi que o negócio não vingou. Não por falta do cadete, que o Jorge agarrou a oportunidade, mas porque a Irene não aceitou dinheiro. Ele passou a ir mais vezes ao bar da Irene, bebia um copo, deixava uma gorjeta e sentia-se mais confortável pela compensação. Quanto ao quarto, por lá deixava as suas coisas e dormia sempre que a sua agenda o fixava em Lisboa. Era um acordo muito razoável, prático para ele. Para ela, era um sonho. Adorava o seu valete de copas, estava senão apaixonada pelo menos enleada, ele não era igual aos seus outros passantes.
Este adormecia cedo, hábitos rurais ou talvez apenas o seu bio-ritmo, vinha cansado de uma semana de instrução. Caía na cama e adormecia rápido. Além disso, ela regressava tarde, o tasco tinha gente pela noite fora, chegava ao quarto e encontrava-o adormecido. Metia-se na cama, apertadinha, quente e feliz. Sonhava com o seu príncipe e quando acordava, muitas vezes confirmava que o amor realmente era um sonho, ele já não estava lá. Ele tinha os seus horários e ela dormia até tarde, para descansar do trabalho noturno. Outras vezes, por alegria, coincidiam no tempo e no espaço, cumprindo-se a juventude dele e o devaneio dela, com o fulgor expetável.



Hoje, visto à distância, esta história parece-lhe um retrato mas em versão negativo. A lembrança do não feito sobrepõe-se ao feito. O preto no lugar do branco, o branco no lugar do preto. O que o marcou não foram as cambalhotas valentes que certamente aconteceram. Dessas teve muitas e boas ao longo da vida, não se pode queixar. O que ficou de excecional foi a memória das noites adormecidas, sozinho naquela cama demasiado pequena, que partilhavam por turnos, abdicando preguiçosamente do prazer oferecido, trocado por uma noite de sono. Esqueceu calores e acrobacias testadas. Lembrou os estados de sonolência com uma mulher jovem ao lado, corpo adormecido que muitas vezes não usou. O que ficou foi o mundo ao contrário: o sujeito passivo e o sujeito ativo invertidos, face ao padrão habitual. Não foi ele que procurou mulher no trottoir do Cais do Sodré, que escolheu entre as várias propostas tristemente coloridas, ditado pela urgência do corpo. Foi ela que o elegeu. Nunca saberá se foi levada pelo desejo de concretizar um ideal romântico ou se apenas o fez inconscientemente para lavar os olhos e a alma num rapaz bonito, saudável. Ou se foi porque, apesar do seu toque maroto, ele lhe parecia confiável.
Miúdo maroto … tão próximo do velho maroto, que hoje se avantajou sobre a I. presente. Maroto não é conceito que se aplique a um velho, se esta história se soubesse seria apelidado de velho javardo, no mínimo, tarado e sem pudor. Babado por uma rapariga nova e apetitosa. Posta a seu jeito por simpatia, interesse, quiçá por gozo real, pelo prazer de se deixar derreter sem responsabilidades e sem rasto, num ato entre o obsceno e o infantil.

A I. de hoje e a de ontem. Ambas viram nele a bondade escondida por de dentro do desejo carnal, a bondade tão difícil de identificar, porque o pudor tem por norma escondê-la. Há mais primor em usar o mal, como capa ou como arma. Ser duro é uma vaidade, ser bom uma cobardia. Uma incongruência: ter a coragem de ser cobardemente bom, fardado de gabirú predador.


domingo, 3 de dezembro de 2017

Caminho parado


Há dias em que apetece corrrer, em frente, sem destino. Correr como se fosse a fugir, como se houvesse pressa de deixar para trás o que incomoda, atrapalha ou magoa. Corrida sem nexo nem objetivo, só porque sim. Talvez lá no fundo se busque a esperança de algo melhor... mas não sabemos bem o quê. Nem ambicionamos alcançar nada em especial. O próprio movimento é o objetivo final, o simples sentir do vento no rosto já vale a pena, tal como o cansaço, o frio ou o calor nas pernas. Pode-se correr ou andar apenas... dependendo da força, da juventude ou da elasticidade do corpo. Quem não tem estofo nem treino de atleta também pode correr, ou seja, pode andar ... ir indo mais devagar. O que interessa é o movimento e não a velocidade. O que importa é sentir que se anda, porque parado no lugar onde se está, não há nada de importante para fazer, nada acontece, nada apetece. Andar, correr, olhar para o infinito. Sim, o infinito é uma ideia maravilhosa, pensar em lá chegar seria o melhor dos prémios ...
Deve ser isso o que pensam os alpinistas quando sonham com a subida do Everest, algo que lhes aparece quase inatíngível e desafiante. Ao mesmo tempo, impróvavel mas não impossível.

Para muitos a vida é um caminho, por onde se passa a correr ou devagar. Para outros, é um lugar, um sítio parado, onde se fica... não necessariamente quieto nem sem fazer nada, mas um lugar de geometria real ou funcional limitada pelas balizas da normalidade, pelas regras do quotidiano ordinário.

A vida pode ser um caminho - às vezes, uma vereda pedregosa, outras um passadiço suave ou uma auto-estrada de trajeto rápido. 
Mas também pode ser um lugar sossegado.


  

Um prado verde onde se constrói um espaço de fixação permanente, ou uma praia ao sol em frente um mar azul, onde se adormece lentamente, um lugar de conforto com família e coisas seguras e sempre iguais (ou muito parecidas umas com as outras e parecidas com as coisas dos outros que nos são próximos). 

O ser sossegado, aparentemente seguro, por geração conhecido, não quer dizer que seja desinteressante ou isento de dramas, até tragédias pessoais ou de dessarumação social. O ser quieto é uma condição interior e não espacial. Tal como ser inquieto ...

Depende da visão de cada um sobre o seu percurso...

A vida ou é um lugar parado e confortável ou é um caminho, uma história em mudança e em movimento.
As duas coisas juntas é que não pode ser.