terça-feira, 23 de agosto de 2022

História Sem Fim

Se eu fosse poeta escreveria versos gloriosos: de amor ou de paixão, de dor e sofrimento, de miséria e superação, espampanantes rimas com laivos cósmicos, transcendentes visões de futuro ou apocalípticas soluções para a Humanidade. 

Poemas que viriam cheios de profundas descobertas sobre a alma humana ou carregados de desalento pela inutilidade de toda a literatura, com a certeza de que a morte tudo apagará e que, no fim, apenas sobrarão os deuses do Olimpo, aqueles que pela sua genialidade  vão permanecer pelos tempos e serão apelidados de “clássicos”. São poucos e bons.

Por isso os invejo. Por isso é inútil escrevinhar estados de alma exarcebados e saloios, simplórios e vulgares …

Não obstante, eles escrevem-se por aí , circulam… cobrem farrapos de revistas que vão para o lixo e enchem de cor - durante 5 minutos - o coração romântico da rapariguinha do shopping, aquela mesma que seria capaz de escrever uma mensagem no WhatsApp destinada ao seu “mais-que-tudo”, com coisas do gênero:

Meu docinho de côco ( se fosse brasileira). É bom gostar de você. É bom sentir-te quente, adormecido e colante ao meu lado… numa cama -ninho onde gozamos a pele e os toques, onde se esbanjam os beijos e muitos, muitos prazeres: falados, calados, sentidos … nossos. É bom ser noite, haver solidão e silêncio e todo esse tempo aparentemente parado, afinal ser um lugar vivo habitado por você ao meu lado… ou muito próximo. É bom pensar que amanhã haverá sol e, se for dia de nevoeiro, o seu brilho cheirará a luz e a manjerico. Porque sol é amor, bem estar e cumplicidade. É bom imaginar que o meu primeiro olhar atontado  será para você, certamente feliz, porque vou ver seu sorriso iluminado e poisar um beijo de sono no seu rosto um pouco rosado, já desperto e preparado para a vida que nos é dado ter. Hoje tudo é bom, porque te sinto, te quero com carinho, te levarei comigo, porque a coberto das saudades ficarás dentro de mim, quente e palpitante, húmido e distante. Obrigada por este dia que foi noite, com amor e paz, amizade e companhia, mar, calma e a doce empatia da amizade que se pode tornar séria.”

Uma mensagem gostosa e sincera, em tom poético, não é menos nobre que um grande poema universal, para quem o escreve e para quem recebe. 

O hoje e agora é que importa. Que se lixe a literatura!

Pode parecer piroso e ridículo (já  houve quem o dissesse) mas é terrivelmente real.

E o pedaço de carta, de revista ou de trapo diria:  

Gosto de ti e da vida! As duas coisas se misturam, o som desta música faz-me voar… Talvez eu no ar e você no mar… talvez um dia nos encontremos em terra… quando estiver frio e a simplicidade de um abraço e a clarividência amorosa nos fizer reencontrar em pleno.”

Talvez sim, talvez não. Porque um cenário idílico, quando projetado unilateralmente, de nada serve para construir um futuro, um futuro imediato e curto - não um futuro "eterno", continuado e igual, monótono e preso.

Este sentir de felicidade é fogo fátuo  - quando só entendido por um dos lados e aceite passivamente pela outra parte. Para o agente passivo, o romantismo nada significa e, aliás, até atrapalha, cheira a prisão e dependência, ameaça de liberdade.

Há, por vezes e nalguns seres, um medo profundo e empedernido, um trauma antigo e latente de falta de liberdade, sementes que o desamor e o ciúme plantaram bem fundo no subconsciente doente. Não se apagará com um poema e que quem vier a seguir ou entende isto ou parte. 

Há terra dura onde a semente nunca germinará. Há verbo que nunca será verso, há música sem harmonia que não fará dançar as entranhas.

Há que compreender e aceitar … ou não… e decidir outra coisa. 

Quem está mal muda-se! Uma afirmativa verdade já experimentada e quem nunca teve coragem de o experimentar, chorará sempre o ter ficado, para evitar a mudança, aguentando o mal.

É humano comodismo e medo de mudança. 

Se assim não fosse, como explicar tanta violência doméstica que é aceite, vivida com mágoa e horror, anos a fio, sem haver um fim. O medo da mudança sobrepõe-se, tantas vezes, ao desafio de uma vida melhor.

Trocar conforto por liberdade é luxo que não está ao alcance da coragem de todos.

Até mesmo quanto tal é possivel economicamente (para alguns, algumas a miséria sobrepoe-se à dor...). Mas tantos podem mudar e vão ficando, acreditando com uma fé desmesurada que alguém vai mudar, que o afecto está escondido e mascarado de indiferença, mas há-de brotar.

E há também quem recorra a ajuda psicologica profissional, para acertar as agulhas conjugais... acreditando que é ainda possivel, que um terceiro agente (o psi)  fará um milagre... que a receita habitual resulta: um pouco de palheta, exercicios metódicos de toques fisicos serão suficientes para recuperar a intimidade perdida, uma intimidade que se calhar nunca existiu...

Não há poesia que resista , não há verso que seja capaz de elevar a um patamar superior uma alma onde  a miséria humana do desamor - tido por normal - se instalou numa rotina de indiferença. 

Os poetas fazem falta? Quantas almas são capazes de salvar? É o fim da história? Não, porque sabemos que a história coletiva não tem fim, apenas a história pessoal se acaba com a vida de cada um, com isso termina o verso de pé quebrado e a tal rapariguinha romântica envelhece mal, porque não leu Shakespeare,  nem viveu uma paixão.




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