quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Dias de Verão



Não sei se algum dia tive a percepção de que o Verão era sinônimo de dias felizes, se antecipei com emoção e frenesim a felicidade potencial, esperada, que as férias anunciavam para o comum das gentes. Elas (as férias) eram um foco de stress, uma ideia ambivalente : ora carregavam angústias, medos, inseguranças e restrições de liberdade (na adolescência, eram muitas e reais, na infância eram assumidas como triviais e não questionadas), ora transportavam a perspetiva de pequenos prazeres : água, sol, banhos de mar, livros para ler e, mais tarde com sorte, umas migalhas de namorado controlado e a saber a pouco… uma sorte amargo-doce…

Nada de grandes viagens emocionantes, os dias eram monótonos e iguais, sempre acompanhada e vigiada … sempre em função dos outros. Sem escolha, sem amigos e sem liberdade para voar. 

Mesmo assim, o calor aquecia os corpos, ficava mais bonita, sexy, a alma voava e os livros servindo de asas … traziam a felicidade possível.

Tinha tudo o que precisava : um cavalo numa certa fase, uma bicicleta, um bote noutra altura junto ao mar … que me permita remar sozinha, afastar-me da costa, atracar nas cordas que delimitavam a zona de banhos da praia que frequentava e mergulhar sem ninguém por perto, vir à tona e retomar o barco que me esperava preso na corda. Respirar e sentir que por, breves momentos , era eu, estava só, em silencio, feliz por ser dona daqueles minutos em que geria o meu destino… curto mas meu - do barco até à praia . 

Era uma felicidade pontual. Outras felicidadezinhas foram vividas, o reconhecimento acadêmico por exemplo, o corpo jovem que me agradava e o sonho, sempre o sonho de que só o amor liberta, só a independência econômica me transformaria naquilo que eu sentia que era, que podia ser, que a sociedade esperava de mim e que eu me teria  como inteira. O amor seria o momento maior, o único objetivo que esperava atingir e que me realizaria por completo… estava predisposta a dar tudo e tudo viver , era o único bem que ambicionava. Tudo o resto, achava que me cairia na sopa naturalmente e sem esforço, carreira acadêmica, investigação, mérito reconhecido pelos pares, trabalho interessante… essa estrada em percorria sem esforço e sem dúvidas… talvez estudos no estrangeiro . Sem pressas e sem me esforçar. Haveria de acontecer algo de bom. Não fixei objetivos profissionais, nem materiais. Andava ao ritmo da onda da vida… das obrigações obrigatórias - que até eram fáceis de cumprir - família e estudo - tudo fluía com relativa facilidade, o que não significava necessariamente prazer. Ia andando… sem objetivos de vida nesse domínio - o curso e o trabalho logo se veria … era fácil e suave o caminho … casamento não era meta que me preocupasse em alcançar (como seria comum entre pares), festas nem sabia o que era, viagens nem em sonhos…

Fácil… potencialmente simples, mas desinteressante, sem desafios nem objetivos… só obrigações, coisas a cumprir - normalmente coisas de “não viver”… não se podia sair, não se podia ter amigos sem prévio escrutínio, não se podia isto e aquilo… a alegria não fazia parte das coisas permitidas. 

Daí que sonhar o futuro e ter objetivos e desejos fosse quase irrelevante ou mesmo inútil   Porque esbarraria num “não se pode qualquer”. 

O momento maior, o desejo forte e implícito em todo o meu ser, aquilo que eu sabia que me realizaria por completo e para o que me sentia preparada (para quando acontecesse) era amar e ser amada. Tudo com muita força, exorbitante e amalucada… a energia vital era tanta que nunca me interessou namoriscar .. andar por aí em festas e coisas light , nada de fortuito e ligeiro estava de acordo com o meu sentir. Não me interessava.

Só o poder de seduzir e a força que esse talento, que sabia incluso, me moviam. Já tinha tido suspeitas desse valor intrínseco, para o qual não fiz nada.  Nasci assim e foi o olhar dos outros que desde pequena me foi mostrando que eu tinha algum dom de atração natural … intuitivamente achava excitante saber que se pode deduzir um homem usando apenas o talento natural ( que suspeitava que morava dentro de mim) . Alguns relances de encontros inusitados, alguns bem nova, devolveram-me em espelho a noção de que perturbava os homens  - sorriso, o olhar e a minha palheta. Apenas ensaiando um requebro de feminilidade, simples, não coquete nem exibicionista. Alguns pormenores - do juvenil ou provocante sem ostentação, mostrando o corpo e não o vestido… os homens ligam mais ao conteúdo do que à forma. Um berloque giro, invulgar e alegre pode ser sem melhor do que uma roupa chique …

Não confunde o interlocutor, põe-no à vontade  não se sente ameacado por uma vamp perturbadora é perigosa. Eu era simples, sorridente, olhava nos olhos a direito, tinha conversa com conteúdo , laivos de inteligente e desconcertante, diferente . E tinha um corpo atraente e não assustador. Pequena tinha muita arrumação, ninguém se sentia diminuído ao meu lado, eu era insignificante e um homem sentia-se alto  ( por caso, regra geral, eram mais altos que a média, não havendo necessidade). Era inofensiva, portanto. Mas com algo que podia semear a suspeita de que para alem de arrumação  tinha potencial de ginástica, flexibilidade física e mental .. e quiçá de cambalhotas divertidas. 

Pouco acontecia, mas o mistério e a esperança de que a caixinha de surpresas desorientava, pela palheta que derramava… podia ser interessante… era uma mais-valia.

Era bom estar no mercado e verificar que tinha algum potencial. Mas eu queria mais - queria o Amor total  a Paixão dos grandes romances  - vida no limite de amar ou morrer, a dádiva por interior, o dar e receber (sobretudo o dar e fazer alguém feliz) porque tinha demasiado afecto dentro de mim para me permitir esbanjar. 

E assim foi: uns olhos verdes, um ar tímido, uma pernas altas, a magreza bonita da juventude   Ombros largos e alma lavada. Apareceu: ele subiu a escada e eu desci, escada larga em redondo de um pátio de lindo palácio.

Já o conhecia antes, breves conversas. Mas naquela subida/descida de ambos, os olhos verdes de pintinhas castanhas cruzaram os meus e eu soube o que fazer daí em diante. Viver! Era a única saída. 

Nada de muito adequado socialmente, pouco me importou… Decidi que a paixão é a felicidade em estado puro e por pouco que dure… deve ser agarrada com ambas as mãos e vivida até ao fundo. Com toda a alma , com todo o corpo … até ao limite em que a psique atinge e transforma o corpo físico, até este adoecer de emoção. Até as hormonas destrambelharem e se tornarem em sangue. Sem relação física, só com toques e pele, só com abraços entrelaçados e não penetrados, o corpo vinga-se e adoece com o transtorno, efeito psico-somático… sinal que só assim eu sou eu: exagerada!

Felicidade são momentos assim… 

Hoje 40 anos passados, tantos abraços e outros amores. Tantas e tão maravilhosas cambalhotas em contextos cômicos, doces, amorosos. Carregados de erotismo. De ternuras.  De paz ou de frenesim, de excitação ao rubro ou de calma de sabor suave. De tremuras maravilhosas internas e de afagos externos. De gritos libertadores do prazer, de beijos silenciosos decidir-se-ão satisfeitos. De banhos quentes a dois. De mergulhos frios no mar, em que os corpos junto aqueciam as águas nuas como nós… de tantas e tantas histórias de amores felizes e desconcertantes, que raiavam a  fantasia… Se não fossem bem reais. Hoje recordo os dias mirabolantes de verão e os dias calmos passados numa vulgar caminha quente com edredão de inverno…

Hoje, aqui e agora, sinto a Felicidade!

A tal que eu costumo dizer que não existe … mas existem momentos felizes.

Tem graça porque o dia se passou sem nada a relatar , não houve sessão de pino,  não houve um beijo romântico à luz da lua. Fui tudo calmo e simples e eu olhei para o espelho e pensei: sou uma velha que se acha nova, bronzeada e gira, que está feliz com o amor que acalma e com a família que tem, com os amigos que se cultivam, com a casa ninho-abrigo que terá,  com um bebê nos braços para ajudar a crescer, com uns anos pela frente que se esperam  ser de saúde e alegria.

E com o mar por perto, com uma companhia intermitente mas amiga, com um certo picante que fomenta o sex appeal provocado pela concorrência … por vezes desgastante e traumática (bem sei… dispensava), com a falsa segurança de que está em paz e segura, de que me vão dar abrigo emocional, por uns tempos. 

A concorrência existirá sempre e é um risco para mim, o vulgar desquite é uma probabilidade sempre presente, porque as pessoas se aborrecem com o tempo. Há argumentos para isso: por um lado, a impossibilidade de uma relação totalmente transparente que inclua a família toda, em vez desta situação de semi clandestinidade. Talvez demore , talvez não venha nunca … se não fosse esta bruxa pairante que tece o vestido de noiva há anos, que preenche mentalmente o formulário do registo e concebe o menu da boda, a qual lhe daria o futuro que merece - o Grande Prêmio Persistência!) …

Mas hoje, todos estes cenários macabros se desvanecem… penso no dia vivido, calmo , rotineiro, sol, comidinha caseira, feita a dois, férias confortáveis … um abraço para adormecer, outos mimos gostados a dois,  felicidade simples .

Hoje a Felicidade apareceu … pode ser que fique . 

De qualquer modo  esta ninguém me a tira. Aperto com força a mão que me segura à vida …



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