sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Palavras

 


(…) “A palavra é uma asa do silencio,

o fogo tem sua metade fria.''(…)

Pablo Neruda

 Gosto de palavras! Elas preenchem os buracos da minha vida, o lugar onde nada acontece, onde o silêncio e a solidão se instalam e fazem notar mais os vazios.

Por isso, escrevo.

Elas, as palavras, são salvadoras… escrever nas noites longas de insônia ou nos dias difíceis é uma ajuda, quase um acto de sobrevivência. Alinhadas pela linha das constelações celestes, as palavras hão-de salvar, hão-de voar. Assim haja jeito meu, sem atropelos, assim consiga uma saúde de alma lavada, assim haja quem me queira bem, me ajude e me oiça.

Habituada a uma vida cheia, agitada por múltiplas atividades, responsabilidades, stress, preocupações familiares, tristezas e amores complicados, não é fácil mudar para um outro espaço que sendo habitado me parece mais parado. Onde, depois de deixar cair muitas tarefas e responsabilidades, fico só e mais perdida. Feliz pela liberdade escolhida mas onde acabo por esquecer o essencial. E o essencial sou Eu! O essencial sou eu e quem me quer bem.

Quem me observa de fora, julga que tenho tudo - família, amigos, dinheiro e saúde. Não veem os buracos criados, bichados, alastrando como fungos nos espaços que foram deixados pela vida em correria que foi esmorecendo. Porque a nova vida que tenho, pode parecer mais calma mas ainda salta de pedra em pedra, numa busca constante e esperançosa de melhorar... mas já não ri, nem agradece os saltos dos amores, só nos calhauzinhos piquenos recolhece prazer... 

A falta de algo que tinha e que me enchia dos pequenos/grandes prazeres que davam a cada manhã sentido para prosseguir com o dia, que mantinha o equilibrio mímimo indispensavel, foi esmorecendo a alegria de estar viva e deixou buracos. 

Quem me vê, até pode admirar a aura de feliz vivência e bonomia das minhas rotinas calmas e prazeirosas, não sabem nada sobre os buracos e não sabem que os encho de palavras, para fazer voar a Solidão, mascarada de silêncio durante a noite, e vestida de lágrimas caladas, durante o dia.

As palavras são precisas para voar, para afastar de mim o que mais pesa: o lixo instalado nas grutas escuras deixadas vazias pelo desamor e por mil coisas boas que correm por mim ao sol, mas não me conseguem fazer esquecer completamente as zonas sombrias. Aquelas onde semeio palavras porque não sei fazer mais nada. Mas onde preferia semear beijos.

Preciso que as palavras derramadas aqui e levadas pelo vento, varram para longe as caraminholas da minha cabeça tonta.

As palavras são as asas do silêncio e também da Paz, de que tanto preciso, para reencontrar o equilíbrio perdido.

Um equilíbrio que já era tempo de ter encontrado, mas que - por burrice, casmurrice e aparvalhamento afetivo - está difícil de estabilizar e ele há dias em que desatino mais... Agora está difícil...

Ás vezes, destransbulho por motivos insignificantes - um cabelo ou dois (sendo de partes diferentes do corpo) ou ideias que surgem de geração espontânea… vindas do nada (uma memória desagradável, uma palavra inocente ouvida e que cai mal) e então instala-se o medo, coisas inocentemente vulgares que me trastornam demais …

E vem o medo, o pior do bloqueios ... a fonte de toda a angústia.

Um medo que transporta frio, como se fosse um bloco de gelo, um medo que arrefece aquilo que devia ser de fogo.

“ O fogo tem a sua metade de frio”… e eu sinto isso: tenho de ter clarividência para intuir em que casos preciso de cobertor para me proteger, para manter algum calor, para sobreviver evitando, por um lado, que o fogo da paixão arda em demasia e me faça sofrer, mas por outro para tentar que o abrandamento do calor (o esfriamento da outra metade do fogo) não seja demasiado fria. Entre o degelo e o iceberg … lá se vai o equilíbrio instável. 

Palavras são paliativas, ando a enganar-me na doença e na cura!

Preciso de voar mais alto, sonhar com mais força num futuro mais feliz… almejar a nuvem cor de rosa onde alguém goste de mim e me ofereça palavras em vez de flores. Muitas palavras e beijos, mimos e afagos - especiais, artesanais, produzidos só para mim - algo que me eleve e me faça sentir especial e melhor, me faça crescer em amor e força vital. Não bastam palavras e beijos vulgares, não quero uma rotina idêntica a todas as outras, iguais em palavras e gestos aos que são dirigidos, indiferentemente e por indiferença a outros, com a única diferença de se dirigirem as pessoas diferentes… as quais no fundo são iguais (para quem não distingue nenhum ser humano para além de si próprio, e julga todos e todas iguais).

Iguais, iguais, neutras … burras… tontas e carentes de palavras e de toques, falhas de pele, de tempo e de calor humano,  pessoas que não têm o benefício de conhecer a outra metade do frio, que não podem exigir /pedir muito, porque estão reféns da sua ignorância-prisão, e retidas da transcendencia total que é o afeto amoroso pleno, pobres de gozar a vida com as palavras boas, amorosas e voadoras no silêncio… a dois. Todas iguais no desamor... com títulos diferentes: uma reivindicativa radical que corta o mal pela raiz, mas aprecia a docura possivel da amizade, outra uma carente e fantasista que, vestida de bruxa, prega com gengibre afrodisiaco para tentar subir às alturas e fazer o pino possível  (sem afetar o reumático e a osteoporose.....LOL), outra despromovida `categoria de "colorida" que tudo aceita e calmamente espera pelas migalhas de mimo que alimentam a alma e adiam o fim... a morte anunciada a todos... 

Curiosamente, alguns esquecem que a morte está já ali ao virar da esquina. 

Vamos todos morrer a muito curto prazo. Era bom lembrar isso sempre! Ter a noção da finitude para aproveitar melhor o tempo que temos de qualidade. Pensar nisso, mais vezes. Para que se possa viver sofregamente todos os momentos - os dias de sol ou os de nevoeiro - sem cuidar de quem não nos quer bem e nos despreza e concentrando-nos no afeto de quem merece.

O mais triste seria constactar que ninguém merece o nosso afeto, que ninguem precisa de nós - a inutilidade e a invisibilidade total. Aí mais vale fugir, partir, viajar, mudar...

Sentada num sofá, a encher de palavras os buracos do desamor não se vive... tudo é inútil.


terça-feira, 23 de agosto de 2022

Soneto da Fidelidade


Se a fidelidade é uma fechadura, uma tranca que é colocada à felicidade, como entender Vinicius?

Se, por vezes, se arruma a felicidade e a liberdade num cofre à prova de bala, pomposamente apelidado de suposta garantia de infidelidade, como entender quem ama para além dos limites do cofre ou quem acha que a gaiola deve estar sempre aberta ao livre voo dos passarinhos? 

Houvera quem me ensinasse, eu juro querer aprender…

Vinicius de Moraes, 1939

Soneto da Fidelidade

“De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive)
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure”



História Sem Fim

Se eu fosse poeta escreveria versos gloriosos: de amor ou de paixão, de dor e sofrimento, de miséria e superação, espampanantes rimas com laivos cósmicos, transcendentes visões de futuro ou apocalípticas soluções para a Humanidade. 

Poemas que viriam cheios de profundas descobertas sobre a alma humana ou carregados de desalento pela inutilidade de toda a literatura, com a certeza de que a morte tudo apagará e que, no fim, apenas sobrarão os deuses do Olimpo, aqueles que pela sua genialidade  vão permanecer pelos tempos e serão apelidados de “clássicos”. São poucos e bons.

Por isso os invejo. Por isso é inútil escrevinhar estados de alma exarcebados e saloios, simplórios e vulgares …

Não obstante, eles escrevem-se por aí , circulam… cobrem farrapos de revistas que vão para o lixo e enchem de cor - durante 5 minutos - o coração romântico da rapariguinha do shopping, aquela mesma que seria capaz de escrever uma mensagem no WhatsApp destinada ao seu “mais-que-tudo”, com coisas do gênero:

Meu docinho de côco ( se fosse brasileira). É bom gostar de você. É bom sentir-te quente, adormecido e colante ao meu lado… numa cama -ninho onde gozamos a pele e os toques, onde se esbanjam os beijos e muitos, muitos prazeres: falados, calados, sentidos … nossos. É bom ser noite, haver solidão e silêncio e todo esse tempo aparentemente parado, afinal ser um lugar vivo habitado por você ao meu lado… ou muito próximo. É bom pensar que amanhã haverá sol e, se for dia de nevoeiro, o seu brilho cheirará a luz e a manjerico. Porque sol é amor, bem estar e cumplicidade. É bom imaginar que o meu primeiro olhar atontado  será para você, certamente feliz, porque vou ver seu sorriso iluminado e poisar um beijo de sono no seu rosto um pouco rosado, já desperto e preparado para a vida que nos é dado ter. Hoje tudo é bom, porque te sinto, te quero com carinho, te levarei comigo, porque a coberto das saudades ficarás dentro de mim, quente e palpitante, húmido e distante. Obrigada por este dia que foi noite, com amor e paz, amizade e companhia, mar, calma e a doce empatia da amizade que se pode tornar séria.”

Uma mensagem gostosa e sincera, em tom poético, não é menos nobre que um grande poema universal, para quem o escreve e para quem recebe. 

O hoje e agora é que importa. Que se lixe a literatura!

Pode parecer piroso e ridículo (já  houve quem o dissesse) mas é terrivelmente real.

E o pedaço de carta, de revista ou de trapo diria:  

Gosto de ti e da vida! As duas coisas se misturam, o som desta música faz-me voar… Talvez eu no ar e você no mar… talvez um dia nos encontremos em terra… quando estiver frio e a simplicidade de um abraço e a clarividência amorosa nos fizer reencontrar em pleno.”

Talvez sim, talvez não. Porque um cenário idílico, quando projetado unilateralmente, de nada serve para construir um futuro, um futuro imediato e curto - não um futuro "eterno", continuado e igual, monótono e preso.

Este sentir de felicidade é fogo fátuo  - quando só entendido por um dos lados e aceite passivamente pela outra parte. Para o agente passivo, o romantismo nada significa e, aliás, até atrapalha, cheira a prisão e dependência, ameaça de liberdade.

Há, por vezes e nalguns seres, um medo profundo e empedernido, um trauma antigo e latente de falta de liberdade, sementes que o desamor e o ciúme plantaram bem fundo no subconsciente doente. Não se apagará com um poema e que quem vier a seguir ou entende isto ou parte. 

Há terra dura onde a semente nunca germinará. Há verbo que nunca será verso, há música sem harmonia que não fará dançar as entranhas.

Há que compreender e aceitar … ou não… e decidir outra coisa. 

Quem está mal muda-se! Uma afirmativa verdade já experimentada e quem nunca teve coragem de o experimentar, chorará sempre o ter ficado, para evitar a mudança, aguentando o mal.

É humano comodismo e medo de mudança. 

Se assim não fosse, como explicar tanta violência doméstica que é aceite, vivida com mágoa e horror, anos a fio, sem haver um fim. O medo da mudança sobrepõe-se, tantas vezes, ao desafio de uma vida melhor.

Trocar conforto por liberdade é luxo que não está ao alcance da coragem de todos.

Até mesmo quanto tal é possivel economicamente (para alguns, algumas a miséria sobrepoe-se à dor...). Mas tantos podem mudar e vão ficando, acreditando com uma fé desmesurada que alguém vai mudar, que o afecto está escondido e mascarado de indiferença, mas há-de brotar.

E há também quem recorra a ajuda psicologica profissional, para acertar as agulhas conjugais... acreditando que é ainda possivel, que um terceiro agente (o psi)  fará um milagre... que a receita habitual resulta: um pouco de palheta, exercicios metódicos de toques fisicos serão suficientes para recuperar a intimidade perdida, uma intimidade que se calhar nunca existiu...

Não há poesia que resista , não há verso que seja capaz de elevar a um patamar superior uma alma onde  a miséria humana do desamor - tido por normal - se instalou numa rotina de indiferença. 

Os poetas fazem falta? Quantas almas são capazes de salvar? É o fim da história? Não, porque sabemos que a história coletiva não tem fim, apenas a história pessoal se acaba com a vida de cada um, com isso termina o verso de pé quebrado e a tal rapariguinha romântica envelhece mal, porque não leu Shakespeare,  nem viveu uma paixão.




segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Da Inutilidade de um Abraço


As melhores coisas da vida são as que são dadas em vez de recebidas. O afecto sentido ou o abraço dado, por prazer de entrega, não têm preço, nem matéria, nem finalidade, nem obrigação de dádiva, nem compromisso de eternidade. 

Um abraço, um aconchego são um simples pulsar, universo estrelar, etéreo e terreno, espírito transcrito numa dose mínima de matéria, a suficiente para traduzir em toque físico aquilo que as palavras nunca serão capazes de expressar. 

Gosta-se mais do que se consegue mostrar.  É possível enganar por excesso, ou seja, gostar mais do que o enredo da intimidade física indicia e muito mais do que um discurso patético pode levar a pensar.

Um abraço é fraco suporte para o vulcão que comporta… se for verdadeiro e forte, se for assim a modos que … demasiado, excessivo, amalucado.

Os sentimentos - por natureza são de contornos ilimitados - não têm dimensão. O seu tamanho é desconhecido e a sua prova impossível. Da dimensão do Universo, dão-se a conhecer apenas por pontinhos luminosos e distantes, que pouco dizem sobre o seu conteúdo efetivo. 

São espírito quase sem matéria. 

Não fora os gestos que tentamos encenar para transmitir aos outros sinais de uma realidade interior indizível … ficariam inacessíveis e desconhecidos . 

Muitos ficarão certamente…

Muitos sentimentos e emoções (boas e más ) se é que a classificação faz sentido, ficarão para sempre inclusos, enterradas na mente dos seres humanos que os guardam. Por motivos variados: ou porque não têm o dom de os sentir ou porque não têm o talento para os deitar cá para fora. Embrulhados e escondidos, tantas vezes, os sentimentos… aldrabados por quem os ignora ou finge, por quem prefere jogar pelo seguro e não se atreve a encarar o seu semelhante com as cartas todas - coração e mente, convenções e pecado, exagero de paixão ou manias de pirado.

Há quem mostre o que sente de forma mais ou menos limpa e há quem guarde tudo só para si. Todos são respeitáveis. Cada um faz o que quer do seu âmago, do seu sentir mais íntimo. 

Contudo, demasiada guarda pode ser doentia (opinião pessoal, não faz lei). Acumular emoções extremadas pode virar explosão, depressão … Mas olha, paciência, pior para esses pobres coitados. Desses tenho pena (mas talvez tenham tratamento). 

O que me aflige mais são os outros, os que dizem não ter nada para oferecer.

Será que existe mesmo quem não tenha nada lá dentro? Desprovidos dessa gaveta da alma, sem nada  para guardar? Os psi devem saber responder, eu não.

Custa-me imaginar um ser humano saudável e normalmente inteligente possa dizer que não tem nada lá dentro. Vazio! Indiferente à vida que passa. 

Mas admito que haja quem pense assim e se realmente não têm sentimentos nem emoções de relevo ( para além dos de natureza “animal”: o medo, a comida , a sobrevivência básica, o sexo .. ) então, é lógico que não possam expressar, em matéria, um espírito inexistente . Só sai lá de dentro o que lá entrou ou nasceu! 

Contudo, por ironia. os gestos do Vazio podem ser semelhantes (na aparência) aos modos do Real. Tal como o cinema imita a vida, mas não deixa de ser ficção.

É possível e respeitável. 

tolerância,  para com todo o tipo de gente, assim o exige . Mas é pena… muita pena que haja quem passe por esta vida com um preservativo enfiado na cabeça: evita acidentes emocionais, mas retira prazeres maiores.

Tantos vagueiam por aí e, sim, até se sentem bem. Não percebem um abraço inútil porque oco, um beijo em pró-forma porque não tem por origem uma explosão de estrelas interior, nem um tremor de terra emocional que sobe das profundezas do sub consciente. Das entranhas…

De nada serve, eu sei, de nada serve um beijo ou um poema… mas gosto de dar e matam-me a fome. 

A pragmática criada de Sophia dizia que se não fosse ela comiam-se versos lá em casa… e as crianças a crescer, então como seria?

Mesmo inútil, um abraço é bom! E a felicidade pode existir, na simples experiência teórica de haver um objeto amoroso, alguém a quem possa dar um abraço, um beijo, um aconchego mais quente nos dias (ou nas noites) escaldantes. 

Virtualmente ou com um deslisar de pele, por mensagem ou colando uma nudez a outra. Tanto faz, desde que a fantasia se corporize em dom. 

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Dias de Verão



Não sei se algum dia tive a percepção de que o Verão era sinônimo de dias felizes, se antecipei com emoção e frenesim a felicidade potencial, esperada, que as férias anunciavam para o comum das gentes. Elas (as férias) eram um foco de stress, uma ideia ambivalente : ora carregavam angústias, medos, inseguranças e restrições de liberdade (na adolescência, eram muitas e reais, na infância eram assumidas como triviais e não questionadas), ora transportavam a perspetiva de pequenos prazeres : água, sol, banhos de mar, livros para ler e, mais tarde com sorte, umas migalhas de namorado controlado e a saber a pouco… uma sorte amargo-doce…

Nada de grandes viagens emocionantes, os dias eram monótonos e iguais, sempre acompanhada e vigiada … sempre em função dos outros. Sem escolha, sem amigos e sem liberdade para voar. 

Mesmo assim, o calor aquecia os corpos, ficava mais bonita, sexy, a alma voava e os livros servindo de asas … traziam a felicidade possível.

Tinha tudo o que precisava : um cavalo numa certa fase, uma bicicleta, um bote noutra altura junto ao mar … que me permita remar sozinha, afastar-me da costa, atracar nas cordas que delimitavam a zona de banhos da praia que frequentava e mergulhar sem ninguém por perto, vir à tona e retomar o barco que me esperava preso na corda. Respirar e sentir que por, breves momentos , era eu, estava só, em silencio, feliz por ser dona daqueles minutos em que geria o meu destino… curto mas meu - do barco até à praia . 

Era uma felicidade pontual. Outras felicidadezinhas foram vividas, o reconhecimento acadêmico por exemplo, o corpo jovem que me agradava e o sonho, sempre o sonho de que só o amor liberta, só a independência econômica me transformaria naquilo que eu sentia que era, que podia ser, que a sociedade esperava de mim e que eu me teria  como inteira. O amor seria o momento maior, o único objetivo que esperava atingir e que me realizaria por completo… estava predisposta a dar tudo e tudo viver , era o único bem que ambicionava. Tudo o resto, achava que me cairia na sopa naturalmente e sem esforço, carreira acadêmica, investigação, mérito reconhecido pelos pares, trabalho interessante… essa estrada em percorria sem esforço e sem dúvidas… talvez estudos no estrangeiro . Sem pressas e sem me esforçar. Haveria de acontecer algo de bom. Não fixei objetivos profissionais, nem materiais. Andava ao ritmo da onda da vida… das obrigações obrigatórias - que até eram fáceis de cumprir - família e estudo - tudo fluía com relativa facilidade, o que não significava necessariamente prazer. Ia andando… sem objetivos de vida nesse domínio - o curso e o trabalho logo se veria … era fácil e suave o caminho … casamento não era meta que me preocupasse em alcançar (como seria comum entre pares), festas nem sabia o que era, viagens nem em sonhos…

Fácil… potencialmente simples, mas desinteressante, sem desafios nem objetivos… só obrigações, coisas a cumprir - normalmente coisas de “não viver”… não se podia sair, não se podia ter amigos sem prévio escrutínio, não se podia isto e aquilo… a alegria não fazia parte das coisas permitidas. 

Daí que sonhar o futuro e ter objetivos e desejos fosse quase irrelevante ou mesmo inútil   Porque esbarraria num “não se pode qualquer”. 

O momento maior, o desejo forte e implícito em todo o meu ser, aquilo que eu sabia que me realizaria por completo e para o que me sentia preparada (para quando acontecesse) era amar e ser amada. Tudo com muita força, exorbitante e amalucada… a energia vital era tanta que nunca me interessou namoriscar .. andar por aí em festas e coisas light , nada de fortuito e ligeiro estava de acordo com o meu sentir. Não me interessava.

Só o poder de seduzir e a força que esse talento, que sabia incluso, me moviam. Já tinha tido suspeitas desse valor intrínseco, para o qual não fiz nada.  Nasci assim e foi o olhar dos outros que desde pequena me foi mostrando que eu tinha algum dom de atração natural … intuitivamente achava excitante saber que se pode deduzir um homem usando apenas o talento natural ( que suspeitava que morava dentro de mim) . Alguns relances de encontros inusitados, alguns bem nova, devolveram-me em espelho a noção de que perturbava os homens  - sorriso, o olhar e a minha palheta. Apenas ensaiando um requebro de feminilidade, simples, não coquete nem exibicionista. Alguns pormenores - do juvenil ou provocante sem ostentação, mostrando o corpo e não o vestido… os homens ligam mais ao conteúdo do que à forma. Um berloque giro, invulgar e alegre pode ser sem melhor do que uma roupa chique …

Não confunde o interlocutor, põe-no à vontade  não se sente ameacado por uma vamp perturbadora é perigosa. Eu era simples, sorridente, olhava nos olhos a direito, tinha conversa com conteúdo , laivos de inteligente e desconcertante, diferente . E tinha um corpo atraente e não assustador. Pequena tinha muita arrumação, ninguém se sentia diminuído ao meu lado, eu era insignificante e um homem sentia-se alto  ( por caso, regra geral, eram mais altos que a média, não havendo necessidade). Era inofensiva, portanto. Mas com algo que podia semear a suspeita de que para alem de arrumação  tinha potencial de ginástica, flexibilidade física e mental .. e quiçá de cambalhotas divertidas. 

Pouco acontecia, mas o mistério e a esperança de que a caixinha de surpresas desorientava, pela palheta que derramava… podia ser interessante… era uma mais-valia.

Era bom estar no mercado e verificar que tinha algum potencial. Mas eu queria mais - queria o Amor total  a Paixão dos grandes romances  - vida no limite de amar ou morrer, a dádiva por interior, o dar e receber (sobretudo o dar e fazer alguém feliz) porque tinha demasiado afecto dentro de mim para me permitir esbanjar. 

E assim foi: uns olhos verdes, um ar tímido, uma pernas altas, a magreza bonita da juventude   Ombros largos e alma lavada. Apareceu: ele subiu a escada e eu desci, escada larga em redondo de um pátio de lindo palácio.

Já o conhecia antes, breves conversas. Mas naquela subida/descida de ambos, os olhos verdes de pintinhas castanhas cruzaram os meus e eu soube o que fazer daí em diante. Viver! Era a única saída. 

Nada de muito adequado socialmente, pouco me importou… Decidi que a paixão é a felicidade em estado puro e por pouco que dure… deve ser agarrada com ambas as mãos e vivida até ao fundo. Com toda a alma , com todo o corpo … até ao limite em que a psique atinge e transforma o corpo físico, até este adoecer de emoção. Até as hormonas destrambelharem e se tornarem em sangue. Sem relação física, só com toques e pele, só com abraços entrelaçados e não penetrados, o corpo vinga-se e adoece com o transtorno, efeito psico-somático… sinal que só assim eu sou eu: exagerada!

Felicidade são momentos assim… 

Hoje 40 anos passados, tantos abraços e outros amores. Tantas e tão maravilhosas cambalhotas em contextos cômicos, doces, amorosos. Carregados de erotismo. De ternuras.  De paz ou de frenesim, de excitação ao rubro ou de calma de sabor suave. De tremuras maravilhosas internas e de afagos externos. De gritos libertadores do prazer, de beijos silenciosos decidir-se-ão satisfeitos. De banhos quentes a dois. De mergulhos frios no mar, em que os corpos junto aqueciam as águas nuas como nós… de tantas e tantas histórias de amores felizes e desconcertantes, que raiavam a  fantasia… Se não fossem bem reais. Hoje recordo os dias mirabolantes de verão e os dias calmos passados numa vulgar caminha quente com edredão de inverno…

Hoje, aqui e agora, sinto a Felicidade!

A tal que eu costumo dizer que não existe … mas existem momentos felizes.

Tem graça porque o dia se passou sem nada a relatar , não houve sessão de pino,  não houve um beijo romântico à luz da lua. Fui tudo calmo e simples e eu olhei para o espelho e pensei: sou uma velha que se acha nova, bronzeada e gira, que está feliz com o amor que acalma e com a família que tem, com os amigos que se cultivam, com a casa ninho-abrigo que terá,  com um bebê nos braços para ajudar a crescer, com uns anos pela frente que se esperam  ser de saúde e alegria.

E com o mar por perto, com uma companhia intermitente mas amiga, com um certo picante que fomenta o sex appeal provocado pela concorrência … por vezes desgastante e traumática (bem sei… dispensava), com a falsa segurança de que está em paz e segura, de que me vão dar abrigo emocional, por uns tempos. 

A concorrência existirá sempre e é um risco para mim, o vulgar desquite é uma probabilidade sempre presente, porque as pessoas se aborrecem com o tempo. Há argumentos para isso: por um lado, a impossibilidade de uma relação totalmente transparente que inclua a família toda, em vez desta situação de semi clandestinidade. Talvez demore , talvez não venha nunca … se não fosse esta bruxa pairante que tece o vestido de noiva há anos, que preenche mentalmente o formulário do registo e concebe o menu da boda, a qual lhe daria o futuro que merece - o Grande Prêmio Persistência!) …

Mas hoje, todos estes cenários macabros se desvanecem… penso no dia vivido, calmo , rotineiro, sol, comidinha caseira, feita a dois, férias confortáveis … um abraço para adormecer, outos mimos gostados a dois,  felicidade simples .

Hoje a Felicidade apareceu … pode ser que fique . 

De qualquer modo  esta ninguém me a tira. Aperto com força a mão que me segura à vida …