quinta-feira, 23 de julho de 2020

O que queres ser quando fores...



O que queres ser quando fores... grande?

Esta é a pergunta que se faz às crianças, questão que vai sendo reformulada, com o passar dos anos da juventude, para algo do genéro: o que queres estudar, em que queres trabalhar, que sonhos e realizações, até onde ambicionas chegar?

As respostas mudam ao longo da vida, com o repensar permanente dos nossos objetivos, navegando na onda fluída que é perceção que vamos tendo dos nossos talentos, das nossas ambições e das nossas possibilidades.
Apesar de esta ser uma pergunta que nos persegue pelo caminho da vida, nada tem o mesmo glamour que a pergunta e a resposta infantil. Essa é a mais pura expressão do desejo inicial, ingénuo e limpo, ainda não condicionado pelas limitações de contexto, ainda assente em sonhos e produto das vivências em que cada infância mergulha, a das crianças mais ou as menos protegidas, desde as pobres às mais prósperas. As respostas refletem esse caldo vivencial, sem deixar de ser genuínas e simples, são o coração que fala, o sonho que comanda a criança que diz o que lhe parece melhor, o cenário mais amado à luz do seu talento e fantasia.

O que queres ser quando fores grande? 
É a pergunta mais corriqueira mas, ao mesmo tempo, mais maravilhosa... porque à sua frente se abre um mundo de respostas, uma infinitude de possibilidades.
Nada parece estar vedado. A resposta é tão livre quanto o sonho que a comanda. Naquele escasso minuto de réplica, a criança pode dizer tudo, querer é o máximo do poder que lhe é concedido.
Tudo é possivel, basta pensar um pouco e responder conforme lhe manda o coração, a alegria e o futuro promissor que certamente lhe estará destinado. 
Se assim não fosse, que sentido faria fazerem-lhe essa pergunta? - perguntaria o menino.
Se lhe pedem para escolher dentro de um catálogo infinito de opções de vida, de profissões, de artes, de construção de afectos e famílias ou até de não fazer nada, é porque tudo é válido e possível.
Um mundo se abre a uma criança... pelos menos àquelas que conhecemos, ou seja, as que vivem no nosso mundo "Global North", onde até para os menos ricos está aberto o acesso à educação, ao crescimento pessoal e social... haja sorte e talento.

Se às crianças deste mundo todas as opções estão teoricamente em aberto, penso e amarguro-me sobre o que acontece quando se reformula a pergunta e a dirigimos para gente como eu.

O queres ser quando fores... velha?

O que queres ser quando deixares de trabalhar das nove às cindo (às vezes muito mais) e tiveres todo o tempo do dia para fazer escolhas?

Ninguém pergunta isto a um adulto maduro ou a alguém que está à beira da reforma. Porquê?

Muitas explicações e teorias poderiam ser construídas à volta deste tema. Eu tenho para mim a mais simples. Ninguém pergunta porque ninguém se rala. É óbvio que a velha vai para casa, arrumadinha para não chatear muito, fazer crochet e ver tv.
Uma velha não serve para grande coisa: tem pouco valor produtivo, tem pouco valor em termos de conhecimento/sabedoria, tem pouco valor como cidadão e mesmo como pessoa-ser humano... só terá valor "estimativo" para os que lhe são próximos.
Resumindo, velho não é bem gente - é mais um bibelot querido enquanto tiver saúde e alegrar os seus; um problema quando ficar doente ou dependente.

Mas eu sou velha e gostaria de encetar uma nova "carreira" de cidadã de plenos direitos e deveres, de escolher atividades e de desenvolver talentos... de querer ser alguma coisa...
Ainda vou a tempo de escolher uma "profissão de velhice" ou um hobby divertido, ainda tenho artes para inventar, transformar, fazer a diferença... agir sobre os objetos, as pessoas e o mundo.
Devia haver um catálogo de profissões para velhos - onde caberiam praticamente todas as boas ocupações. As más que fiquem para os novos... LOL
Acredito que poucos velhos ambicionem ser astronautas ou bombeiros (como tantas crianças), também não importa. Era muito trabalhoso ir estudar para a NASA e está muito calor para ir para aí para as matas de mangueira em punho.
Tirando isso, é quase tudo bom de fazer. Quer dizer, também dispensava ser mineira... por exemplo.

O problema é fazer escolhas.

Tanto que fazer, tanta gente a quem poderia "tocar" com a minha passagem pela terra... e eu sem saber por onde ir.

Quando era pequenina, respondia à clássica pergunta, dizendo: quando for grande quero ser ceramista-pintora. Coisa sofisticada, como se vê! As minhas amigas queriam ser professoras ou cabeleireiras... eu era mais chique! Desenhava por brincadeira... mas nada fiz no mundo das artes e ainda bem porque não seria grande coisa nessa sofisticada e admirada profissão. 
Agora posso ser tudo!

Depois da reforma, até posso ser ceramista, ou pintora ou bordadeira... mesmo de má qualidade, não tem problema.

Posso ser uma péssima escritora, uma má desenhadora, uma cozinheira insonsa... que ninguém me vai avaliar. 


Como não preciso de ter especial talento, nem ganhar a vida com isso, vale tudo desde que me dê prazer. Excelente!
Posto isto, então porquê a angústia de não saber o que fazer quando for velha? Se posso fazer tudo e até posso fazer mal feito, não me devia preocupar. 

A verdade é que as escolhas custam... entre tantas hipóteses, nada se revela como certo. Tudo parece difícil de concretizar. 
Porque atividades há muitas, mas o mais importante nesta fase da vida são as pessoas e os afectos... não são as coisas, nem as tarefas.

Pessoas boas e que gostem de nós e nós delas é muito complicado encontrar.

Ora vejamos: a família por vezes cansa, as mulheres são chatas e intriguistas, para amigas nem sempre dá. Os homens são mais atrativos, gosto mais de homens do que mulheres, como amigos e basicamente para tudo. 
Mas os homens têm um problema: São como os wc públicos. Ou estão ocupados ou são uma merda!
Os bons estão casados/comprometidos/cativos e desses um sub-conjunto apreciável está mais ou menos preso em casa, por uma megera horrorosa e ciumenta (é o que me diz a experiência, devo estar a ser injusta, mas lá que há destas bruxas, há!).

Além disso, quanto aos homens - quer os livres quer os outros - ainda têm outro problema: se forem novos ou assim-assim... pensam logo em saltar para a cueca e a gente (as mulheres) somos  mais seletivas neste aspecto. Cama sim, desde que... Complicado! Umas metem muito romantismo na salada, outras dinheiro, outras querem mais segurança e estatuto marital...
Levar uma mulher para a cama, de forma desinteressada, é mentira! Se algum homem se gabar de o ter feito, desconfiem.

Se forem mais velhos é ótimo, bons amigos, podem é não alinhar em programas mais radicais (fora da cama) como subir à serra de Sintra ou saltar de paraquedas... para já não falar que não gostam de discotecas barulhentas daquelas de abanar o capacete, se deitam cedo e têm demasiado sono à noite, incapazes portanto para fazer uma tertúlia literária ou poética até às 3 da manhã! 

No meio deste molho de enguias escorregadias e embrulhadas, que atrapalham o caminho para uma velhice feliz, se o assunto não for bem gerido e contornado, vira solidão. 
Solidão, sim! Esse velho fantasma de um velho.
Para espantar este demónio, sempre à espreita na porta de saída para a reforma/velhide, há encontrar algum afecto.

Portanto, em vez de decidir se me vou dedicar à jardinagem ou à filosofia, se vou fazer cerâmica ou escrever poemas... o melhor mesmo é concentrar-me em criar laços de amor. 
É preciso preencher a solidão dos velhos como eu, com muitas florinhas e corações, muita conversa e ternura, muito alegria e sonhos, porque não se deve deixar de sonhar...
Os hobbies e os passeios, as tertúlias e os cafés são apenas o pretexto para gerar afetos, para deixar fluir o que de melhor tem o ser humano - que é ser ele mesmo.
A minha maior ambição é ser eu mesma e os outros gostarem de mim pelo meu "ser"!
Queria deixar de ser gostada pelo que faço, pelo que dou, pelo que pareço.
Passar a ser eu mesma, sendo perfeitamente inútil, burra, preguiçosa e sem talentos... e mesmo assim amada.

Grande profissão para o pós-reforma: construir e viver numa comunidade de afetos e ser eu mesma - inútil e gostada.



Sem comentários:

Enviar um comentário