segunda-feira, 27 de julho de 2020

Mar


Amar rima com mar!
E tal como o mar é belo, inspira cuidados, transita em perigos. Assusta e atrai.
Amar ... a plena sensação de completude e de que  vale a pena viver.
O amor preenche-nos e submerge-nos, é um mergulho em águas profundas, quentes, um pouco escuras ou nebulosas, para os que ficam toldados pela energia avassaladora dos sentimentos. Quem ama não vê o que se passa à sua volta. Cego, enrolado sobre si, embrulho de emoções em movimento circular, molhado de mar profundo, vindo à tona de água, o amante respira o sol e agradece a felicidade. Quando disso tem consciência, claro. Porque, na maior parte das vezes, um estado de paixão é de tal modo inconsciente que nem se tem a percepção de que se está a viver um momento excepcional ... e finito. 
Não se pára para pensar: estou feliz! Perda de tempo pensar, vive-se, simples e sofregamente o acontecimento - o estado de graça ... algo que vem de dentro, não se limita a acontecer.
 A maravilhosa sensação de bem absoluto cobre tudo e voa-se, vive-se no ar ... julgando que será para sempre... Perde-se a noção de espaço e de tempo. Está-se nas nuvens, diriam os românticos, está-se em paz e simultaneamente em reboliço interior. É uma confortável contradição, os amantes julgam-se diferentes, especiais, benditos, predestinados.
Estar in love deve ser algo de parecido com a sensação de poder de um revolucionário, é-se militante de uma causa em que se acredita com tal força que nada os faz parar. 
Esta revolução emocional, este estado de turbulência de ondas quebradas na areia pode ser vivido e sentido, a sós ou em parceria. 
Quantas vezes é a sós, quantas vezes o Amor é um sentimento unilaterial, incompreendido pelo ser amado, prazer individual e solitário, sem contrapartidas, nem retorno afectivo, impossível ... e não obstante intenso.



Mas se for a dois, elás!
Se ambos souberem nadar com o mesmo ritmo e energia (raramente acontece), então o mergulho será total, no fundo da gruta marinha,  espraiando-se felizes entre conchas e búzios, bichos estranhos que nos parecem radiosos, adormecendo por fim na caverna de Ali-babá, cercados de pedras preciosas raras, descobrindo outras joias, em cada pedaço dos seus corpos, com o desvelo de um ourives marinho que inventa preciosos artefactos de prazer novo.

No meio dos limos e das algas, das sombras e do ondear das águas, os amantes reluzem a luz emanada dessas joias raras, dos beijos e dos olhares, dos sonos entrelaçados qual lianas marinhas. Do acordar em esplendor porque o corpo também conhece auroras boreais ou simplesmente o alegre nascer do sol, que acontece devagarinho sobre os corpos nus ainda adormecidos.
O amor é raro e precioso. É quase tão impossível quanto achar o segredo da gruta do Abre-te Sésamo. 
O amor é uma história... acredita quem quiser, a coleção de pedras preciosas e os ouros que carrega, se alguém os achou um dia, serão fonte de riqueza para sempre.
Quem ama não esquece. 
Mesmo que o objeto-pessoa desse amor se esvaia, fica a marca do sentimento vivido. Riqueza insubstituível da memória.
Nem todos têm a felicidade de ver essa luz maravilhosa, de tocar o ouro, de o trazer para casa, ... para o perder um dia. 
Lembrar-se-á, mais tarde, que foi rico, que ainda é rico porque um banho nesse mar, já memória, será fonte de vida para sempre.
Quem sabe que ele - o Amor - existe, nunca perderá a esperança.
O sonho do (re)achamento é um barco onde se pode navegar em segurança... O sonho leva-nos longe, comanda a sorte e levar-nos-á a bom
porto, talvez a um outro amor, talvez a uma nova morte ...



Quem tem medo do mar, quem desconfia do poder mágico das ondas e do prazer, da profundeza dos fundos ricos de descoberta partilhada, quem não fantasia, talvez nunca o encontre. É no fundo do mar e de nós mesmos, no lugar revelado em intimidade pura e aberta, que se encontra o segredo. Dar tudo - corpo e alma - para tudo receber. 
Dar, sobretudo, Intimidade que é a fonte do amor partilhado.
Porque o amor não existe para todos, não se mostra e não é visto pelo comum dos humanos racionais e outros que tais. 
Só os príncipes serão capazes de o alcançar: no céu, nas estrelas ou no fundo do mar. 
Só os artistas o saberão criar. Porque é preciso arte e talento para tal bem forjar. Porque é preciso a inteligência da alma para o alcançar.
Amor é ficção, construção solitária ou em
parceria. É edificação invisível para quem está de fora, mas bem real para quem, lá dentro, vive o aconchego desse lugar mágico. Pode morar em sítio seguro e duradouro ou viver tipo cigano, em bolandas. Pode ser fugidio, curto e intenso. Mas também ser calmas águas de um infinito oceano azul e doce, que conduz os amantes ao êxtase até ao fim...
Pode ser jovem e inconsciente, pode ser maduro e constante, pode ser doloroso ou gratificante. Pode ser e é isto tudo.
Gosto de pensar que será uma onda gigante e eterna de beijos e afagos, sentidos com a seriedade que se exige e com a loucura da desorientação que comporta.
Porque se não começa por ser louco  e destrambelhado, é porque não mexeu o suficiente com os nossos interiores para os mudar e nos levar a ser melhor. Sim, porque quem ama é melhor pessoa do quem desconfia, foge e teme o mar do amor.   Há quem nade para a costa que nem um náufrago atarantado, quem fuja do amor (e do compromisso) como se de doença se tratasse. 
É doença, realmente, mas benigna e deixa marcas para sempre, que são giras e bem nossas.
A primeira vez que me apaixonei fui parar ao
Hospital, o transtorno psico-somático foi tal que tudo se revolucionou... sem mais, sem qualquer invasão física, as entranhas de cima e as de baixo ficaram às voltas sem saber o que fazer. Cabeça, coração e corpo esbracejando num mar revolto, recém descoberto e onde não sabia nadar.  Consegue-se, quanto muito, vir a tona e boiar. Aí suavemente deixar-no-emos levar pelas ondas do mar diurno e solar. Aí, em tom de cruzeiro, o
passeio será doce, o calor dos corpos apreciando o baloiçar do azul, até onde o horizonte nos levar.
Sempre com medo de que o infinito não exista, que a linha do horizonte seja já ali, atrás daquela rocha... onde se poderá naufragar. 
Mas o amor é também isto: medo da sua finitude, certeza da sua ficção.
Amor é Mentira (bem sabemos, porque fomos nós que o inventámos), mas intimamente é Verdade, a nossa querida verdade amorosa, que tanto prazer nos dá.

in "Memórias de uma amante nostálgica, bemfejada pela sorte, crente que o deserto afetivo de hoje, um dia será mar".

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