terça-feira, 9 de junho de 2020

Cheira a limão



Cheia a limão na minha almofada...

Não adormeço. É um ténue aroma, suavíssímo e discreto que envolve o princípio de uma noite de sono. Um sono auspiciosamente bom, prometedor de ternuras e confortos... que a angústia da noite torna impossível. 
O aroma do limão é real ou imaginário?  Evoca tanta coisa possível, amada ou desamada, que me é dificil separar a natureza ambivalente dos sentimentos que afluiem em catadupa dentro de mim, que me tiram o sono, perante as várias possíveis origens deste cheiro maravilhoso, perante as memórias que me evocam.
Tentei relaxar e apreciar a agradabilidade que me transmitia, pensei tirar partido da leve fragância que acalmaria a minha mente - o que só seria viável, se ela não estivesse compurscada de lixo e de dúvidas, se ela não estivesse tão causticada de augústias recentes e antigas... se ela não evocasse velhas cicatrizes mal curadas e provocações recentes ainda em dor ativa.
Limão é de frescura e leveza, um aroma que nos torna seres voantes e leves; é tal, que conduziria a um sono propício ao descanso, induzida pelo sonho de dormir sob a sombra luminosa e amarela, cheirosa e reconfortante de um limoeiro, um dom da natureza bravia. Um limoeiro nasce bem nos mais agrestes terrenos, aguenta anos e resiste à pobreza dos solos, para bem dos pobres que habitam lugares menos bafejados pela abundância, com melhores frutos e flores, com melhores colheitas e mais ricos produtos da terra. 

Limão tem a gratituidade do sol e a alegria do seu amarelo,
Limão é amargo como a vida, mas transporta um toque de doçura picante que nos faz acreditar que tem redenção, se acompanhado de algo mais doce (limonada com açúçar, por exemplo, ou doce do mesmo) ou em algo ainda mais promissor: um prato requintado que exige a sua participação, uma bebida de mistura ou apenas o usufruto do seu aroma retido num armário de roupa, num frasco de perfume, numa almofada convidativa pelo seu doce amargo aconchego aromatizado.

Tanto de bom nos pode dar um limão. A mim, deu-me insónia e o regurgitar da angústia latente.

Resta saber de onde veio o limão que me tira o sono: se da almofado ou da fronha. Pode parece indiferente, mas não é: no primeiro caso, pode ser os despojos de um perfume elegante, natural e discreto trazido por outra habitante do meu ninho (os perfumes ficam agarrados aos têxteis, por algum tempo, não é fácil apagá-los... a curto prazo.). 

Ou se, em alternativa resulta, tão prosaicamente, do novo detergente perfumado posto na máquina de lavar roupa.

A diferença é muita. Saber se a origem é um corpo humano perfumado, banhado na hora de dormir em felizes essências, ou se 
é, apenas, a química posta numa máquica de lavar.


A primeira é a mais plausível hipótese. Simultaneamente e para apagar a dor, leva-me para a realidade de um lugar de sonho que há muito desejava conhecer e para onde tive a sorte e a felidade de viajar no ano passado - Capri - a ilha dos limões, por todo o lado.
Á beira do Mediterrâneo estonteante de azul esverdado, da cor de turquesas, de verde-água, de dourados da pedra, de rosa dos corais, de ciprestes e pinheiros pendentes sobre as arribas e o mar. Vi e senti o Mediterrâneo tal como nasceu, sem desiludir (se nos esquecermos das hordas dos turistas) e se nos comportarmos como as princesas que se ali se deslocam para admirar os limoeiros refletidos no azul-verde do mar. Não sendo o meu caso - humilde turista - desejei regressar um dia para fazer de princesa, para passear enamoradamente entre palácios e varandas debruçadas sobre o mar, para me entregar ao enebriante cheiro dos limoeiros, para me sentar ao fim da tarde a tomar um limoncello, numa varanda romanticamente maravilhosa...

O limoncello que trouxe de "recuerdo" para tomar num fim de tarde, com o meu amor... noutra varanda perto de outro mar... foi barbaramente arremetido contra o chão de pedra, mal entrei na casa que acolheria esse prazer - a casa estava assombrada demais para permitir a entrada do meu limoncello de Capri com sabor a amor turquesa.
Hei-de voltar um dia à ilha, se um amor verdadeiro me acompanhar... para ter um beijo debaixo de um limoeiro em flor ou em fruto, para procurar escarpas acima a romba de Tibério, o imperador romano que aí se recolheu e que deixou rastos de palácios e  de pedras, entre as quais velhos limoeiros despontaram e medraram...
Hei-de voltar, nem que seja sozinha, para ver melhor a Capri dos iluminados e privilegiados, à procura de Axel Munthe, talvez para escrever e, sobretudo, para reflectir sobre a vida dos limoeiros.
Hoje despertei do sono que ainda não tinha chegado, sob a influência de um cheiro novo. 
Lembrei-me do pior... de que ele poderia provir de alguém que tivesse encarnado o espírito dos limoeiros velhos, teimosos e resistentes, que persistem em ficar à beira da falésia que se debruçam sobre o Mediterrâneo e que se aguentam, anos a fio, em posições de queda iminente, num equilíbrio que parece frágil, mas afinal é sólido e duradouro, aguentando com muita força as intempéries, as desgraças, os vendavais, porque a resiliência vem de séculos de adaptação à aventura, de terem sido levados pelos povos marinheiros que povoaram o Mediterrâneo e os tornaram fortes, cheios de esperança de vencer sobre as situações difíceis, de vingar nos terrenos mais pobres, mais inclinados.
Com algum risco, mas sem medo, parecem ter no seu amarelo brilhante um sorriso vencedor, porque da terra só levam o melhor e tendem a esquecer as desventuras e a fazer da fraqueza força.
Num precipício da vida, há sempre quem esteja pronto para nos agarrar.
Os limoeiros são assim aventureiros e resistentes, um pouco amargos, porque a vida lhes é dura. Alguns caiem no mar ou secam sózinhos... um dia, deixam de dar frutos, mas partem tranquilos porque deram muito limões, daqueles que é preciso distribuir pelos amigos, porque tanto amor amarelo extravassa a capacidade de gasto de cada um...


Os limões amargos procuram o seu caminho, criando a ilusão da sua doçura intrínseca, como se fosse uma magreza bonita. Disse Mrs. Simpson: uma mulher nunca é nem demasiado magra, nem demasiado rica! Estou de acordo, e acrescentaria uma mulher nunca é de desprezar se tiver demasiada magreza na beleza amargo-doce-fresca-cheirosa de um limão (tudo lhe fica bem, nesta combinação exótica!), nem nunca é demasiado rica em talentos de amor e de carinhos repartidos.


O azedume potencial do limão, da feieza que a falta de doce comporta, não é impedimento para que não possa ser comparado, favoralmente, à doçura redondinha de uma boa e gostosa laranja.

Uma laranja mais doce, mais apetecível, mais própria para comer por inteira, mais rica e mais sedutora ao paladar, não apaga a utilidade dos limões.
Só um parvo diz que os limões não fazem falta - uma bebida, uma sobremesa exótica... uma utilização picante e cheirosa... os limões fazem falta, sim, e são poderosos. São resistentes, mesmo os que se debruçam à beira da falésia das costas italianas, ou os que residem em vulgares quintais dispersos ou mal cuidados, desabitados... conseguem sobreviver e despontar em maravilhosos amarelos que alguém colherá, com gosto ou por misericórdia... porque a natureza tem de ser respeitada e valorizada.  
Há que respeitar a auto-estima de um limão bonito que se acha amargo. Com essa desculpa, leva-se para a almofada, por bondade, por afeto ou algo mais, o aroma do limão, para encher a noite de bons fluídos e do calor humano de um abraço, numa experiência sensitiva a não disperdiçar.
As laranjas também serão guardadas, mas para alimento mais trivial...
Uma laranjeira dura menos que um limoeiro. Dá mais trabalho fazê-la feliz, exige muita água, muita poda, sol a preceito... é mais rica e radiosa mas exigente... e  fortuita, vai-se um dia... morre nova.
Ao fim de muitos anos, no limiar da vida, o limoeiro estará resilientemente no seu lugar, agarrado ao solo, solo pobre sem grandes exigências, adaptado a tudo e pronto a oferecer-se, generosamente, para se dar em luz, no seu esplendor de vida, fruto da uma dádiva, que provém do nada de quem nada tem.

Tem a pobreza e a simplicidade de um amargo aromático que se tornará em condimento para completar uma bebida, um petisco, um amor, uma companhia...

E transfigura-se para anular a sua seca acidez, vira poesia ou pintura, cria espaços de influência, pinta ingénuamente aguarela sem arte, com o objetivo de marcar o solo e se agarrar à arriba, solidamente, como os limoeiros das velhas veredas de pedra de Capri.

O limoeiro resiste e sobrevive, enquanto o resto do quintal definha, ou exige cuidados maiores, replantação de outras árvores, de outras espécies... Tudo muda na natureza dos cultivos de curto prazo... os limoeiros permanecem, com poucos cuidados.
As laranjas comem-se, deitam-se fora caroços e a casca, que envelhece...


Eu também envelheço e penso se vale a pena refletir demasiado sobre limões e laranjas. O ocaso vai chegando, o sol põe-se no mar da Ericeira, é belo. O meu ocaso virá um dia... que não será tão belo. Portanto, há que olhar apenas este pôr-do-sol que é uma paisagem perfeita e feliz, esquecendo o futuro amargo que o excesso de limões trará à minha vida.



Hoje é dia de laranjas e vou tentar vê-las debruçadas sobre o mar, escondendo-se, em cada fim de dia, no seu semi-círculo laranja, deslisando suavemente no horizonte azul, calmo e amorosamente...
Sem rancores, sem o ácido do limão amargo, que amargura a minha vida.

Porque vida há só uma e a minha quer-se redonda que nem uma laranja azul!

Lembro o poema de Paul Éluard: 
"A terra é azul como uma laranja".





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