domingo, 21 de junho de 2020

Coração


Numa casa de madeira, onde um coração em visita, por vezes habita e, por vezes, não ...
está lá um pouco em negação.
É um amor ligeiro, que com mais ou menos força... cola e descola... vai e vem.
Mas gosta e sente-se bem .
Gosta, masoquista, dos nós escuros dos troncos irregulares e duros.
Gosta das imperfeições dos toros,
que tanto se parecem com as desilusões da vida, com as feridas do seu coração que ama, que bate e que chama,
Que sente em queixume, a mentira que se foi escondendo,  de mansinho, num frio e fino escorrer dentro dos seus poros. 
Nesse lugar de alegrias e tristezas, de doces encostos e de fria pancada, vê-se que o coração está mal colado ( e não pregado), que está muito acidentado, ferido e mal tratado.
Sempre à espera de mais ataques, leva penso rápido na bagagem, para estancar a dor surpresa e a certeza que outros amores, colantes e com leveza, esvoaçam na cabana da ligeireza.
Ás vezes, não é bastante, o mal é tal que o penso decola e cai... A dor essa só sai se o conselho da insônia e da noite escura, trouxerem alguma luz de esperança para um amanhã mais claro. Claro não em luz, mas em verdade. 
É o martírio da suspeita, de sensação de que uma faca aguçada e pendente pode estar à espreita, pronta para mais um arranhão... 
Até quando habitará a madeira podre, em fraca cola? Até quando sentirá o calor que vem de fora ... na falsa frágil forma de papel, daquele que se prega e não descola?
Até quando um coração ferido se parte de muito amar e jamais volta a consertar?

terça-feira, 16 de junho de 2020

Pequenas tristezas


Pequenas tristezas que apertam ao fim da noite.
Porque pequenos episódios aconteceram durante o dia... Não sabendo eu o que lhes fazer, não tendo a coragem de lutar por um diálogo consistente, nú e provavelmente suícida, que poderia resolver a coisa ou quebrar de vez ... fiz uma bola de trapos com as tais minudências que se acumularam, juntando as chatices pequenotas de hoje às suas irmãs gémeas dos outros dias. 
A bola agigantou-se, somando-se às da semana passada - as quais já tinham chegado inopinadamente sob a forma de uma imagem infantil e de fraca arte - enquanto as de hoje, vieram pela romântica  via epistolar à moda antiga, transportando sentimentos que certamente não caberiam num moderno e-mail. 
Aos poucos, dou-me conta que passaram 4 anos, desde o início da vida complicada que a minha tolerância aceitou. Quatro anos de ameaças várias, que se foram transmutando em práticas de agressividade diversa, desdobrando-se numa panóplia de talentos e demonstrações fantásticas, próprias daqueles concursos muito antigos da “Mulher Ideal”, que punham moças e senhoras a competir nos seus esmeros de gastronomia, arte de bem receber, talentos de rendas e bordados, de pintura de aguarelas ou de caixinhas decorativas, de arranjos florais, de poesia e prosa. Recatados como eram os costumes, os dotes de cama não faziam parte das prendas domésticas. 
Eu, perante este exército de ataque bem apetrechado, nunca optei por ir à luta, fugi da concorrência... achei ridículo mas perigoso a demonstração de força dos dotes em parada. Primeiro achei compreensível, fui honesta e tolerante atendendo às “culpas” que tive no desenrolar da história, considerei o facto de ter despoletado uma situção complexa... de ter abandonado (por pouco tempo) o terreno sem fronteiras, nem exército, por onde o inimigo entrou sem defesa que lhe resistisse.
Eu não tinha exército, nem meios, nem estratégia... nem queria guerra. Estava destroçada, perdida e só. Levei algum tempo a acordar para a vida e, quando o fiz, percebi que o terreno estava semeado e os frutos medravam à vista de todos. Em 2 ou 3 meses ... a conquista e a vitória pareciam certas e eu continuava moribunda lutando a favor do meu ressuscitamento.
Depois o tempo passou, as razões para a minha compreensão e tolerância inicial deixaram de fazer sentido... eu voltei à vida, passei a estar “saudável” e disponível. Contudo, apesar das promessas, tudo continuou na mesma. Renasci, mudei, voltei a amar e a desprender-me das amarras antigas, mostrei que era livre e segura, independente e capaz de ter coragem para encetar uma vida nova, de amar a sério, com os talentos que a sorte me deu, com defeitos também... mesmo que não faça bolos capazes de concorrer ao prêmio de mulher ideal. 
Voltei, tentei (e tento) viver bem, feliz e orgulhosa das minhas imperfeições e dotes... sem contudo me conseguir desprender da mágoa presente, que volta sempre para me atazanar o juízo, sob a forma portentosa de uma fantasia amoroso-imaginária que cresceu e veio para ficar.
Cada dia que passa, cada ano mais, maior é a gravidade da situação. Porque de uma chaticezinha que era apenas uma cócega, passou a arranhão que magoa, tantas vezes se abriram as feridas que as cicatrizes já são muitas. 
O tempo tornou uma brincadeira útil e colorida em algo de sério, quatro anos é muito tempo!
Porque aceito isto? Porque o faço? Masoquismo de quem se auto-mutila! É uma doença, bem sei. Há quem se corte, quem se auto-magoe a sério, quem sofra por "desporto", quem seja doido, quem esteja deprimido, quem... quem...
Em que categoria me insiro?
Das doidas sossegadas, que são felizes uns dias... porque afinal ainda compensa, daquelas que se alimentam de migalhas de afecto conseguidas à custa de algum sofrimento auto-inflingido?
Porque não parto de vez para outra vida mais segura, mais calma, com mais afecto, menos inquietude?
Foi há 4 anos, que aceitei viver em estado de "excesso de tolerância", à medida em que me ia apercebendo, com algum espanto,  que o avanço territorial era sério, algo desbragado, com  "lata" suficiente para passar ao domínio público, visto ser publicado amiúde nos órgãos de comunicação, leia-se redes sociais ... lol
Por coincidência (ou talvez não) foi quando comecei  a renascer para uma nova vida e a tentar saber o que queria. Aí percebi que o caminho que tinha de percorrer estava muito ocupado e potencialmente minado. Nessa mesma altura e por razões diferentes, tive coragem para dizer não!
Tive coragem para mudar.
Mudei de vida, fi-lo sobretudo por excesso de quietude, com medo de ficar pasmada nas rotinas caseiras e na morronice de uma vida "normal", familiar, domesticamente clautrofóbica,. Fugi do que era demasiado igual e quieto. 
Troquei conforto por liberdade.
Procurei o desconhecido, a livre descoberta de outros meios e de outras pessoas, procurei a solidão acompanhada, o silêncio enquanto escolha... e fui bem sucedida!
Então porque me queixo? Agora sou uma alma inquieta, quando fui eu que fugi da quietude.
Hoje estou no fio da navalha da insegurança afectiva, eu que tinha quem gostasse de mim com segurança e desvelo.
Deixei de saber o que é o dia de amanhã. Onde estarei e o que farei com o meu tempo, com as minhas férias? Quem gostará de mim? Com quem posso contar para os dias dificeis... e também para partilhar alegrias? 
Troquei o conhecido (e se calhar chato) pelo desconhecido (e certamente assustador...).
Fiz o que quiz, tive e tenho os amores que quiz... mas não me chega.
Sinto que estou no sítio errrado, com as pessoas não totalmente erradas... mas que não são como gostaria que fossem. Claro que as pessoas são elas mesmo e não como gostaríamos que fossem.
Cada qual é uma ilha... e livre de ser como é. Ninguém muda ninguém.
Só eu me posso mudar a mim mesma, partir quando estiver mal, quando tomar consciência de estar no lugar errado ou com a pessoa menos certa.
Não me posso lamentar. Tenho de respeitar a liberdade alheia, tal como devo cuidar da minha.
Se já o fiz um dia e tive coragem de pôr a minha liberdade acima do sofrimento alheio (que certamente causei), também tenho o dever de aceitar que a ação dos outros - sendo livre, honesta e deliberada - me possa magoar.
Resta saber se aguento a dor, se a mágoa vale a pena. Largar as pequenas tristezas - que em certos dias engordam bastante e me tiram a paz - pode ser uma solução.
No entanto, a vida é feita de pequenas coisas tristes e de outras bem boas. 
A praia estava maravilhosa no seu azul de quase Verão e no branco limpo dos areais sem gente, as flores crescem todos os dias com cores novas, a vida rotineira do "come e dorme" segue calma. Falta alguma doçura... mas enfim! 



O pior são as mosquinhas, tristezazinhas chatas como insectos, que picam aqui e ali . O pior é se contraio uma doença alérgica a essa moscaria maluca, de tanta picada que levo.

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Quanto custa ser anormal



A diferença devia ser amada por aquilo que  tem de melhor e pela criatividade e inovação que, potencialmente,  transporta. 

Porque é da loucura e da diversidade que se faz o progresso!

Ser diferente é caminhar por uma vereda estreita, que é a mais torta, é seguir em desequilíbrio pela via menos conhecida,  mais íngreme e perigosa (ou se calhar, apenas mais temida), é outra forma de percorrer a vida, tão honesta e válida quanto a nossa vontade, nem melhor nem pior, mas em regra mais difícil. 


É outra via de caminhar no mundo, ao lado dos que seguem direitinhos pela faixa de rodagem mais ampla onde cabe um porradão de gente semelhante entre si. São concerteza todos diferentes - porque cada um de nós é único - mas são relativamente parecidos e enquadrados pela bitola da via simples e homogênea de uma autoestrada linear e bem traçada. 
Outros, porém - por natureza ou transvio - preferem a rota das curvas, o caminho das pedras, a imitação do voo das aves ou optam até por ficar sentados, sonhando num mesmo lugar sem caminho. São os anormais! Os que fogem da norma.
Todos nós somos diferentes, uns mais do que outros. A grande maioria cabe toda dentro daquela massa humana que constitui, orgulhosamente, a maioria maior. O lugar confortável que é comum a muitos. Esses, os quase-iguais, pela similitude do muito que partilham de parecido, nos seus valores, nos seus pensamentos e, sobretudo, nas práticas sociais ou íntimas são aqueles que usamos chamar de "normais". Ora a normalidade é um conceito estatístico que soma muitas variáveias diversas com frequências próximas. Se se foge um pouco do centro da barriga da curva normal... é um cabo dos trabalhos... tende-se a ficar nas margens da normalidade, do bom senso, do bem visto...
E depois, como estatisticamente se comprova, são em menor número os tais “anormais” das margens. São marginais científicos, contudo a sociedade tende a classificá-los. Como em tudo, o homem procura entender o seu semelhante, e tende a classificá-lo em categorias, grupos, palavrões, bairros, defeitos e feitios, cores, opções ideológicas... etc. tentando salientar as diferenças, porque são elas que carregam a carga negativa - se não és como eu, cuida-te!... é mau sinal, em princípio.
Há os marginais da margem de baixo (do lado esquerdo da curva) que são os piores, coitados... a posição menos favorecida: o clube dos feios, porcos e maus, isto é, uma miscelânea que vai desde a escumalhada criminosa, potencialmente perigosa ou a tender para o revolucionário... até aos pobrezinhos de Cristo, os que nasceram sem sorte, no local errado, com pais errados ... sem saúde ou com azares vários que os chutou para a tal ponta esquerda.
E depois há os marginais à direita - também são poucos e diferentes, vidas alternativas, mas mais por opção ou talento, do que por azar.
Nada tem este posicionamento com a tradiconal geografia política E/D. A culpa é da curva de Gauss. Tem uma esquerda de baixas frequências e baixo valor é uma direita de grandes valores e frequências também escassas.
A malta marginal da ponta final é talvez mais interesssnte e heterogênea - mete de tudo um pouco: gênios loucos, poetas, libertinos e libertadores, revolucionários mas dos finos - há revolucionarios em todas as margens felizmente - artistas, gente de ciência e de grandes feitos, gente maluca e tarados sexuais ou excessivamente esfomeados, quer para bom proveito próprio (que felicidade!) quer para mal dos outros.
Há de tudo mesmo - alguns com graça e inofensivos, outros perigosos, outros maravilhosos...  porque é de aqui que saiem os aventureiros, os inovadores, os criadores, os que fazem o mundo avançar... e também os que são capazes de destruir pequenos ou grandes pedaços da nossa Sociedade, na sua versão curta ou na alargada do mundo global... E é aqui também que moram aqueles que, a título individual, mudaram valores que condicionaran a sua vidinha íntima e pessoal e os tornaram diferente à luz do olhar dos outros.
De todos os marginais tenho medo. Quer dizer de todos não, só dos que trazem mau augúrio ou "agendas próprias" para arrasar quem lhes atrapalha o caminho, dos que lutam para vencer e dominar o próximo. Tenho medo dos que vão em frente, indiferentes ao sofrimento alheio porque acham que o seu sofrimento é maior e têm direito a resolver os seus problemas pisando os outros. É a luta pela sobrevivência, ganham os mais fortes, destemidos, que não têm nada a perder porque já perderam tudo (ou quase).
Vivo assustada, tenho medo de viver com o desconhecido, com o eventual encontro com gentes daquelas franjas da curva. 
Á esquerda, sei lá se algum bêbado de maus instintos, algum sem-abrigo em raiva me ataca de noite? 
Á direita, sei lá se uma bruxa esfomeada desesperada e inteligente não estará a esta hora preparando uma beberagem para me matar? 

Tenho muito medo. 
Medo de perder a paz e o amor normal que só se encontra na barriga da curva... na zona azul. Azul como o mar.

Zona pacífica mas nunca a salvo das ondas selvagens que podem submergir alguém, como eu, que vive na fronteira da normalidade como a da anormalidade. 

Vivo na corda do trapézio num equilíbrio instável - sou uma louca consciente (do mal o menos), sei que posso cair a qualquer momento. Sei que estou em risco, quase a cair na marginalidade da direita... dos marginais perdidos, esfarpelados, enfraquecidos, pobres-ricos. É aí que me vejo. Mais ninguém vê. Só eu. Ao longe pareço normal, tenho tudo para ser feliz, saudável, tenho rotinas pacatas, família e amigos de suporte, porto-me aparentemente bem. Não sou um gênio louco, nem bato em ninguém, tenho criatividade  e talentos tão discretos que raramente alguém dá por eles. Contudo, eu sei que vou pelo caminho da diferença, para a direita... apesar de querer o contrário, apesar de saber que o melhor seria correr em sentido inverso para o meio, onde se encontra a normalidade, onde talvez me sentisse mais feliz... onde alguns dos meus frouxos talentos vissem o sol... e fossem úteis a alguém.

Como não gosto de solidão absoluta e permanente, precisava de encontrar a tal alma-gêmea (um mito, bem sei!) a tal alma louca que me compreendesse e amasse, na diferença . Eu não sou maricas nem lésbica nem pertenço a nenhuma minoria desfavorecida, tenho as pernas, os braços e demais órgãos a funcionar, sou caucasiana (logo não posso ser uma desgracadinha descriminada pelo racismo), não sou refugiada, vivo no meu País, tenho educação q.b. e nasci do “lado certo do mundo”! Sou diferente, contudo. Sou marginal, porque acho que sim. Porque no meu íntimo, não penso como os outros... e infelizmente não me sinto muito bem com isso. 
Queria ser mais burra, mais acomodada, mas pacata e tolamente feliz... queria saber gozar plenamente a sorte que me é dada todos os dias, não queria continuar a ser uma alma inquieta, que está a ser puxada por forças obscuras para um lugar de desinquietude e angústia.
Estão a puxar-me para sair da barriga azul da curva da Normal? Ou sou eu, que me estou a auto-marginalizar?
Queria amor! Sei que ele estás nas franjas também, porque é um bem raro... por isso continuarei e arriscar a aventura de trilhar por esse caminho que vai para a direita, o lugar do por do sol. 
Talvez o encontre no fim da linha... mas sei que terei de sobrevoar as pedras e as rasteiras que essa via comporta. 

Há um capuchinho vermelho à minha espreita, parece uma menina querida e boa ... mas é o lobo mau disfarçado. Será preciso força e coragem para o aniquilar sem sangue... com secura e bom-senso. 
Ensinar-lhe o caminho diverso, que não choque com o meu, que para além do negrume das nuvens, há casinhas para todos, brancas, lindas, sólidas e de pedra,  onde poderá medrar o amor. Outro amor diverso e bom, que não tenha se de alimentar das fogueiras ateadas nas madeiras de alguém inocente.




terça-feira, 9 de junho de 2020

Cheira a limão



Cheia a limão na minha almofada...

Não adormeço. É um ténue aroma, suavíssímo e discreto que envolve o princípio de uma noite de sono. Um sono auspiciosamente bom, prometedor de ternuras e confortos... que a angústia da noite torna impossível. 
O aroma do limão é real ou imaginário?  Evoca tanta coisa possível, amada ou desamada, que me é dificil separar a natureza ambivalente dos sentimentos que afluiem em catadupa dentro de mim, que me tiram o sono, perante as várias possíveis origens deste cheiro maravilhoso, perante as memórias que me evocam.
Tentei relaxar e apreciar a agradabilidade que me transmitia, pensei tirar partido da leve fragância que acalmaria a minha mente - o que só seria viável, se ela não estivesse compurscada de lixo e de dúvidas, se ela não estivesse tão causticada de augústias recentes e antigas... se ela não evocasse velhas cicatrizes mal curadas e provocações recentes ainda em dor ativa.
Limão é de frescura e leveza, um aroma que nos torna seres voantes e leves; é tal, que conduziria a um sono propício ao descanso, induzida pelo sonho de dormir sob a sombra luminosa e amarela, cheirosa e reconfortante de um limoeiro, um dom da natureza bravia. Um limoeiro nasce bem nos mais agrestes terrenos, aguenta anos e resiste à pobreza dos solos, para bem dos pobres que habitam lugares menos bafejados pela abundância, com melhores frutos e flores, com melhores colheitas e mais ricos produtos da terra. 

Limão tem a gratituidade do sol e a alegria do seu amarelo,
Limão é amargo como a vida, mas transporta um toque de doçura picante que nos faz acreditar que tem redenção, se acompanhado de algo mais doce (limonada com açúçar, por exemplo, ou doce do mesmo) ou em algo ainda mais promissor: um prato requintado que exige a sua participação, uma bebida de mistura ou apenas o usufruto do seu aroma retido num armário de roupa, num frasco de perfume, numa almofada convidativa pelo seu doce amargo aconchego aromatizado.

Tanto de bom nos pode dar um limão. A mim, deu-me insónia e o regurgitar da angústia latente.

Resta saber de onde veio o limão que me tira o sono: se da almofado ou da fronha. Pode parece indiferente, mas não é: no primeiro caso, pode ser os despojos de um perfume elegante, natural e discreto trazido por outra habitante do meu ninho (os perfumes ficam agarrados aos têxteis, por algum tempo, não é fácil apagá-los... a curto prazo.). 

Ou se, em alternativa resulta, tão prosaicamente, do novo detergente perfumado posto na máquina de lavar roupa.

A diferença é muita. Saber se a origem é um corpo humano perfumado, banhado na hora de dormir em felizes essências, ou se 
é, apenas, a química posta numa máquica de lavar.


A primeira é a mais plausível hipótese. Simultaneamente e para apagar a dor, leva-me para a realidade de um lugar de sonho que há muito desejava conhecer e para onde tive a sorte e a felidade de viajar no ano passado - Capri - a ilha dos limões, por todo o lado.
Á beira do Mediterrâneo estonteante de azul esverdado, da cor de turquesas, de verde-água, de dourados da pedra, de rosa dos corais, de ciprestes e pinheiros pendentes sobre as arribas e o mar. Vi e senti o Mediterrâneo tal como nasceu, sem desiludir (se nos esquecermos das hordas dos turistas) e se nos comportarmos como as princesas que se ali se deslocam para admirar os limoeiros refletidos no azul-verde do mar. Não sendo o meu caso - humilde turista - desejei regressar um dia para fazer de princesa, para passear enamoradamente entre palácios e varandas debruçadas sobre o mar, para me entregar ao enebriante cheiro dos limoeiros, para me sentar ao fim da tarde a tomar um limoncello, numa varanda romanticamente maravilhosa...

O limoncello que trouxe de "recuerdo" para tomar num fim de tarde, com o meu amor... noutra varanda perto de outro mar... foi barbaramente arremetido contra o chão de pedra, mal entrei na casa que acolheria esse prazer - a casa estava assombrada demais para permitir a entrada do meu limoncello de Capri com sabor a amor turquesa.
Hei-de voltar um dia à ilha, se um amor verdadeiro me acompanhar... para ter um beijo debaixo de um limoeiro em flor ou em fruto, para procurar escarpas acima a romba de Tibério, o imperador romano que aí se recolheu e que deixou rastos de palácios e  de pedras, entre as quais velhos limoeiros despontaram e medraram...
Hei-de voltar, nem que seja sozinha, para ver melhor a Capri dos iluminados e privilegiados, à procura de Axel Munthe, talvez para escrever e, sobretudo, para reflectir sobre a vida dos limoeiros.
Hoje despertei do sono que ainda não tinha chegado, sob a influência de um cheiro novo. 
Lembrei-me do pior... de que ele poderia provir de alguém que tivesse encarnado o espírito dos limoeiros velhos, teimosos e resistentes, que persistem em ficar à beira da falésia que se debruçam sobre o Mediterrâneo e que se aguentam, anos a fio, em posições de queda iminente, num equilíbrio que parece frágil, mas afinal é sólido e duradouro, aguentando com muita força as intempéries, as desgraças, os vendavais, porque a resiliência vem de séculos de adaptação à aventura, de terem sido levados pelos povos marinheiros que povoaram o Mediterrâneo e os tornaram fortes, cheios de esperança de vencer sobre as situações difíceis, de vingar nos terrenos mais pobres, mais inclinados.
Com algum risco, mas sem medo, parecem ter no seu amarelo brilhante um sorriso vencedor, porque da terra só levam o melhor e tendem a esquecer as desventuras e a fazer da fraqueza força.
Num precipício da vida, há sempre quem esteja pronto para nos agarrar.
Os limoeiros são assim aventureiros e resistentes, um pouco amargos, porque a vida lhes é dura. Alguns caiem no mar ou secam sózinhos... um dia, deixam de dar frutos, mas partem tranquilos porque deram muito limões, daqueles que é preciso distribuir pelos amigos, porque tanto amor amarelo extravassa a capacidade de gasto de cada um...


Os limões amargos procuram o seu caminho, criando a ilusão da sua doçura intrínseca, como se fosse uma magreza bonita. Disse Mrs. Simpson: uma mulher nunca é nem demasiado magra, nem demasiado rica! Estou de acordo, e acrescentaria uma mulher nunca é de desprezar se tiver demasiada magreza na beleza amargo-doce-fresca-cheirosa de um limão (tudo lhe fica bem, nesta combinação exótica!), nem nunca é demasiado rica em talentos de amor e de carinhos repartidos.


O azedume potencial do limão, da feieza que a falta de doce comporta, não é impedimento para que não possa ser comparado, favoralmente, à doçura redondinha de uma boa e gostosa laranja.

Uma laranja mais doce, mais apetecível, mais própria para comer por inteira, mais rica e mais sedutora ao paladar, não apaga a utilidade dos limões.
Só um parvo diz que os limões não fazem falta - uma bebida, uma sobremesa exótica... uma utilização picante e cheirosa... os limões fazem falta, sim, e são poderosos. São resistentes, mesmo os que se debruçam à beira da falésia das costas italianas, ou os que residem em vulgares quintais dispersos ou mal cuidados, desabitados... conseguem sobreviver e despontar em maravilhosos amarelos que alguém colherá, com gosto ou por misericórdia... porque a natureza tem de ser respeitada e valorizada.  
Há que respeitar a auto-estima de um limão bonito que se acha amargo. Com essa desculpa, leva-se para a almofada, por bondade, por afeto ou algo mais, o aroma do limão, para encher a noite de bons fluídos e do calor humano de um abraço, numa experiência sensitiva a não disperdiçar.
As laranjas também serão guardadas, mas para alimento mais trivial...
Uma laranjeira dura menos que um limoeiro. Dá mais trabalho fazê-la feliz, exige muita água, muita poda, sol a preceito... é mais rica e radiosa mas exigente... e  fortuita, vai-se um dia... morre nova.
Ao fim de muitos anos, no limiar da vida, o limoeiro estará resilientemente no seu lugar, agarrado ao solo, solo pobre sem grandes exigências, adaptado a tudo e pronto a oferecer-se, generosamente, para se dar em luz, no seu esplendor de vida, fruto da uma dádiva, que provém do nada de quem nada tem.

Tem a pobreza e a simplicidade de um amargo aromático que se tornará em condimento para completar uma bebida, um petisco, um amor, uma companhia...

E transfigura-se para anular a sua seca acidez, vira poesia ou pintura, cria espaços de influência, pinta ingénuamente aguarela sem arte, com o objetivo de marcar o solo e se agarrar à arriba, solidamente, como os limoeiros das velhas veredas de pedra de Capri.

O limoeiro resiste e sobrevive, enquanto o resto do quintal definha, ou exige cuidados maiores, replantação de outras árvores, de outras espécies... Tudo muda na natureza dos cultivos de curto prazo... os limoeiros permanecem, com poucos cuidados.
As laranjas comem-se, deitam-se fora caroços e a casca, que envelhece...


Eu também envelheço e penso se vale a pena refletir demasiado sobre limões e laranjas. O ocaso vai chegando, o sol põe-se no mar da Ericeira, é belo. O meu ocaso virá um dia... que não será tão belo. Portanto, há que olhar apenas este pôr-do-sol que é uma paisagem perfeita e feliz, esquecendo o futuro amargo que o excesso de limões trará à minha vida.



Hoje é dia de laranjas e vou tentar vê-las debruçadas sobre o mar, escondendo-se, em cada fim de dia, no seu semi-círculo laranja, deslisando suavemente no horizonte azul, calmo e amorosamente...
Sem rancores, sem o ácido do limão amargo, que amargura a minha vida.

Porque vida há só uma e a minha quer-se redonda que nem uma laranja azul!

Lembro o poema de Paul Éluard: 
"A terra é azul como uma laranja".





terça-feira, 2 de junho de 2020

Janelas




Janelas sobre o mundo e sobre a alma.



Janela é o lugar do olhar, do infinito imaginado e do finito real.




De uma janela aberta sem pudor, sem preconceito vemos tudo, tudo o que interessa para nós, para alimentar as fomes que temos do "de dentro" e do "de fora".



De olhos e coração aberto, abrimos a janela do nosso Eu mais íntimo, por vezes fechado de timidez e reservas de privacidade
Não precisamos de escancarar essa janela discreta, apenas o bastante para receber o raio de sol do amor e da amizade de que precisamos para sobreviver, receber  a solidariedade e a entre-ajuda que nos vai permitir ser uma pessoa melhor, mais em paz consigo mesma, que nos vai ajudar a melhorar por dentro e a ser feliz, se possível... um bocadinho, pelo menos Se houver necessidade será a janela que areja a casa e vai revolver o negrume acumulado ou recém chegado, ensinar a sorrir melhor, a cantar ou a dançar às escondidas, a preencher aquela falta de aconchego humano, bem guardado no interior. 
Depois há a janela da frente, na entrada nobre virada à rua... aquela que tem um vista infinita sobre o mundo, sobre as suas mudanças, sobre as nossa esperanças de que vai mudar. É a janela da nossa ambição em olhar, ponderar, imaginar e fazer. 
Uma janela que também pode ser porta, caminho para o espaço livre... para além dela, se estende a paisagem das possibilidades em aberto, os campos de cultivo expectante da nossa capacidade de criação, onde podemos trabalhar, inventar e ajudar a fazer a diferença, diferença que terá mais impacto na vida dos outros, dos que nos rodeiam e nos são queridos e também daqueles que não conhecemos mas que, direta ou indiretamente, podem ser tocados com a nossa ação, com a ciência e os seus desenvolvimentos (se formos alguém na crista da onda da inovação e mudar das organizações com quem lidamos) ou mais modestamente porque somos seres humanos que podem ser vistos da tal janela exterior e tocar o percurso de quem nos olha de fora, de quem sente a bondade do nosso olhar e o benefício da ação, por simples que seja. O sorriso da enfermeira, a imaginação do poeta, do pintor ou do criador posto a uma janela de grande alcance vai mudar qualquer coisa - de bom ou de mau - consoante os ventos dos contextos sociais, políticos ou de guerras. 
São infinitos os horizontes dessas janelas amplas e repetitivas, que se desmultiplicam como as da imagem e vão por aí fora até ao infinito... por muitos anos depois nós, levando a poeira ínfima da nossa ação .
Janelas amarelas e belas. Lembremo-nos delas, viradas para fora ou para dentro. Porque há sempre um retorno. A satisfação do que damos aos outros, retorna a nós pelo corredor da gratidão e da satisfação pessoal. 
Amarelas como o sol e a alegria. São janelas alentejanas, sedentas de água e de amor retiradas de uma campina de calor e postas dentro da frescura de um palácio - o da Inquisição de Évora. 
Com amarelo se apaga a lembrança que o nome do palácio traz, na perspetiva profunda daquele corredor desmultiplicado em portas que são também janelas. 
Com elas se percebe uma coisa muito importante: 
A melhor maneira de multiplicar e felicidade, é dividi-la.,.
dividi-la pelos amigos e pelos amores...