Era
uma vez um homem que tinha tudo. Quando a noite caía sobre a sua almofada,
quando o filme do seu dia presente e dos muitos que o antecederam passava a
correr, entre sonhos antecipados e o um meio sono entaremelado de sensações e raciocínios,
entre angústias e alegrias, ele via passar uma avioneta…
Era sempre
a mesma imagem: uma avioneta, daquelas publicitárias com uma faixa de pano esvoaçante
que dizia: O que te falta?
Ele
sabia que era para ele. A mensagem voava num céu azul de Verão, baloiçava ao
sol, trazia uma luz que feria e que o levava a cerrar firmemente os olhos, a
enterrar a cabeça na almofada, quiçá para não ver, não pensar, não acordar.
Mas
era para ele, sim, ele sabia. Se acordasse, se pensasse direito saberia que lá
fora chovia, o Inverno continuava a sua marcha pesada, a praia estava fechada
para férias e as avionetas comerciais jaziam no estaleiro à espera das próximas
missões – acordar adolescentes para a discoteca da moda ou para o concerto
estival, assinalar a marca de um bronzeador espetacular...
Sim, nada
disso era com ele. O Verão que esperasse.
O que
ele esperava era uma resposta dos céus de Inverno, plasmada numa faixa branca,
uma resposta para as suas faltas, que nem ele sabia quais eram.
- Oi quirido, você está com muita falta de carências, viu?!
– foi a boca foleira que lhe mandou a empregada da lavandaria, há dias quando
ele se encostou um pouco mais do que a conta, roçando o seu braço nu no colo destapado
da pequena, ao debruçar-se no balcão da loja, vergado ao peso de um saco de
roupa para tratar.
Se até
a brazuca percebia o que se passava com ele, era porque realmente lhe faltava
alguma coisa. Elas têm um certo sentido de vidência, transportam aquele
exoterismo tribal capaz de identificar os espíritos, de anunciar mandalas em todos
os círculos, de produzir melaço de atração ou macumbas de vingança. Cuidado com
as brasileiras, portanto. Era esse o seu lema. Esta, ainda para mais, não lhe
suscitava nenhuma apetência carnal, era mastronça, meio índia meio parva… mas
ia acertando… era isso, ele tinha alguma falta de carências!
Ora
ele era o tipo de homem que todos admitem ter tudo. Tudo para ser feliz e viver
alegremente numa sociedade dita civilizada e ocidental. Tinha uma mulher bonita,
três filhos maravilhosos, com vidas e carreiras profissionais bem encaminhadas,
tinha saúde, um bom emprego e aceitação profissional, tinha casa na cidade e na
praia, o carro que sempre ambicionara e que mudaria ao sabor de nova apetência.
Tinha
amigos, dois amigos do peito, com quem se encontrava regularmente e com quem
podia contar para um desabafo, um conselho. Tinha mais outros – os do clube de
golf – com quem se dava bem, sempre prontos para jogar pouco e rir muito, beber
uns copos no country club e fazer umas almoçaradas por ai.
Pensando
bem ele tinha tudo… menos um cão!
Porém,
não era dado a grandes desvelos com animais. Considerava mesmo uma chatice ter
um cão ou um gato para cuidar.
Havia psiquiatras
e afins que recomendavam animais de companhia para curar angústias e solidões.
Mas não era certamente esse o seu problema, vivia rodeado de gente. Apenas se
sentia só, quando o sono descia sobre a sua almofada e a avioneta gritava nos
céus: O que te falta?
Não
era um cão, que lhe fazia falta, era talvez um aconchego animal, físico,
quente, fofo, meigo… mas não era cão, isso sabia.
Mais
parecido com isso, poderia ser uma mulher… e sorria para dentro, gozando com a comparação…
Ai, se alguma ouvisse os seus pensamentos!
A
verdade é que a sua noção de mulher dificilmente se encaixava nesta ternura de
ideia – animal, quente, fofa, meiga.
Mulher
era sinónimo de muita complicação, trabalho, argumentação, exigências e
cedências e, claro, tudo isto a troco de uma hipotética-passada-futura
cambalhota valente.
Uma
canseira, que hoje já não valia o esforço…
Mas a avioneta
voltava a passar e ele ditava para si próprio uma resposta e outra… até acertar:
- Quente, fofa, amorosa e meiga, mimenta, mimosa...
Uma mãe,
talvez. A mãe que lhe fazia falta, é verdade que partira demasiado cedo… e
nenhuma esposa, namorada ou amante a substituiria.
E
continuava a responder à avioneta no ar:
- Carnal, animal, generosa, compincha, fiel…
Algo que
talvez ficasse a meio caminho entre uma mãe e um cão.
Que
fosse quente e meiga, amorosa e fofa, amiga e livre, inteligente e companheira …
como um cão, como um cão...
De
peluche talvez, para não incomodar, alguém que pudesse abraçar na cama antes de
adormecer, que pudesse beijar e chamar de fofa, alguém que encenasse o mimo,
que o ajudasse a dormir e a gritar bem alto quando a avioneta passasse:
- Eu tenho tudo, eu sou feliz, eu tenho um cão fofinho e
doce, que me embala e abraça como a minha mãe fazia, que me lembra uma amiga que
não tenho, mas existe dentro de mim. Vou dormir com ela, abraçado e quente…
E a
avioneta partiu, não mais voltou, talvez ocupada a preparar o Verão.
Adorei. ....😉
ResponderEliminarAdorei. ....😉
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