sábado, 14 de janeiro de 2023

Travessia do Deserto

 

Era um deserto timidamente plantado à beira mar que, no entanto, seria o ponto de partida para um caminho de aprofundamento maior, da procura de um interior mais seco e mais vazio, pontuado de camelos e de palmeiras, marcado pelo sol vermelho-laranja ardente e espampanante, como só os espaços amplos concedem. 
Era o desejo de uma travessia do deserto, no sentido literal, enquanto espelho da virtualidade sonhada. Seria como metáfora? Talvez. Como terapia também era certamente:  uma viagem ao interior de si mesma, mascarada de apontamentos vários: ocupacional, lúdica, esquecimento estonteante da realidade sofrida e, sobretudo, limpeza da alma.
Sim. Mais uma vez a atração pela solidão e pelo silêncio, o vício de sonhar grandes espaços… de perdição… de descanso suave e deslumbrado. O mundo é grande, quase sempre cheio, congestionado de gentes e de coisas. O deserto é limpo. Quase vazio, ululante no seu trajecto. Este não era bem seco, até quase verde, num inverno chuvoso. 

Não obstante, cheirava a deserto, muito liso, calmante.




A magnitude das coisas que nos deslumbram e transcendem dá-nos a certeza de que somos pequenos, de que as angústias “domésticas” não passam de um grão de areia, de que é possível ser feliz se nos acomodarmos à grandeza daquilo que nos transcende, desde que consigamos o desprendimento do que é mesquinho, insignificante face à relatividade do mundo.

É preciso humildade e calma para aceitar… aceitar que não é possível fazer nascer água no deserto árido, nem criar emoções num coração egoísta. 
É preciso aceitar… ter calma para não lutar contra a montanha dos problemas que nos ultrapassam, para não afrontar uma duna perigosa, que decerto nos vai submergir porque é maior e mais forte. 
É preciso aprender a contornar as tormentas, a aceitar até ao limite da humilhação decente (uma fronteira algo ambígua!), desistir se for insuportável, fugir, substituir ou suplantar num degrau acima a podridão da lama elevando uma alma lavada e arejada ao sol.

Descobri que o meu deserto separa o que julgava ser eu e daquilo que julgava ser a realidade terrena. Ao longe parece uma miragem, a beleza e a promessa vêem ao olhar da mente mas logo se afastam. 
É o que acontece às miragens, vão e veem, são verdadeiras ou falsas?
Está longe não importa . E quanto mais penso, quanto mais a reflexão se instala, num palco de probalidade nevoenta, mais a miragem se torna um vento, turbilhão de areia que confunde e faz pensar se vale a pena…
Se vale a pena entrar numa tempestade de areia. Se vale a pena continuar a ver o deserto a crescer… cada vez com mais areia, mais dunas mais percalços, que quando mesmo bem montado num camelo, não são fáceis de ultrapassar.
A minha travessia foi boa, trouxe a claridade das coisas simples e a visão real de que o deserto vai crescendo (será o aquecimento global? Pois… mas parece-se mais com arrefecimento!).
Vai crescendo e separa quem habita as suas fronteiras opostas.
Talvez no meio desse espaço que cresce e afasta os seres que o habitam, se forme um oásis.
Sim, seria bom que mesmo na secura dos dias possa subsistir a esperança de um encontro num oásis de frescura e encanto.
Aí, numa tenda à luz resguardada do sol ou num espaço mágico de uma noite debaixo das estrelas será possível limpar, por momentos, a angústia do deserto interior com as águas que milagrosamente regam as plantas frescas do jardim do deserto.
Pequenos pontos de felicidade: a água essencial é pura, a vida suspensa dos dias, sabendo que depois será forçoso um retorno indesejado ao deserto.
Mas para que o oásis seja vivido em harmonia, para que a paz da noite fria de um dia quente seja nossa, em liberdade e sossego é preciso que a tenda seja resistente, material sólido, de boa qualidade, erguida por mãos experientes em sobrevivência, almas resilientes armadas de fé e amor firme.
É preciso cautelas, remendos e manutenção permanente da guarida, atenção aos rasgões da tenda, aos tiques e às fúrias dos camelos… 
Porque - como dizem os povos tuaregues do deserto - se a tenda tem um rasgão, o camelo mete a cabeça. 

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