Natasha, bailarina russa do
Teatro de São Peterburgo, estava no auge da sua carreira, culminar de anos de
esforço e de disciplina, que a sua arte e a escola soviética impunham. Dançava
maravilhosamente.
Uma noite, no final de um
espetáculo deslumbrante, um deslumbrado comandante de um navio francês,
ancorado no porto, convidou-a para jantar a bordo, com todo o requinte
gastronómico, com toda a simpatia cavalheiresca, quiçá com outros interesses
que a ocasião poderia proporcionar.
O champanhe francês fez o seu
efeito, deixando Natasha prostrada e semi-inconsciente no sofá do camarote,
enquanto o comandante se afogava em vodka, bebida que não estava muito nos seus
hábitos.
A noite abateu-se sobre os dois e
nem a aurora acordou o idílio não acontecido. O navio partira mal amanhecera e
o comandante – preocupado ao perceber
que levava a bordo a uma prima-bailarina russa e temendo ser acusado de apoio à imigração ilegal – deu ordens rápidas e atabalhoadas a um
grumete, para que a transportasse a terra num barco a remos. A costa estava
cada vez mais longe. O pobre marujo, atrapalhado mas cumpridor, tentou dar
conta da sua missão, mas ao perceber o risco que corria, resolveu esconder a
rapariga no porão. Ao descer, às pressas, às escuras, ela tropeçou e caiu. Algo
dentro dela se partiu: o pé ou a perna …talvez uma vértebra. Sentiu que a sua vida
artística terminara ali, naquele porão sujo e escuro no meio do oceano, a
caminho do desconhecido.
Quinze dias depois, o destino era
Lisboa, onde foi literalmente empilhada com caixas vazias de víveres e
despejada no armazém do porto.
Natasha mal andava mas queria
dançar, a música chamava por ela. Deambulou pelas ruas, coxeando e com dores,
num caminho que pela certa a levaria à morte … pensava.
Era um fim de tarde e alguém lhe
disse que aquela zona se chamava Cais do Sodré, ruas de bares ainda vazias dos
marujos bêbados, que a assaltariam à noite.
Entrou numa porta – a Pensão Amor – porque a
música que tocava no andar de cima chamou por ela. Uma área de ópera era coisa pouco
usual naquele lugar.
Mas ela queria dançar, apesar do
sofrimento, das fraturas suspeitadas.
Agarrou-se ao varão que estava no
meio da sala de cortinas douradas e sofás de veludo. E dançou apesar das dores,
dançou graças ao apoio daquele varão providencial, dançou até a noite cair, até
desfalecer… porque aquele lugar era certamente o seu fim. Dançaria sempre e até
sempre… Dançaria até à morte, por si, pela sua arte, porque dançar era a sua essência e a dor o seu caminho. Dançaria sem parar... até parar!
Quando acordou, inerte ao lado do
varão, sentiu que uns braços fortes a içavam e que um mar de homens grosseiros
e duros, pegajosos e escuros, batia palmas e chorava sobre as suas canecas de
cerveja esquecidas e por beber.
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