terça-feira, 31 de julho de 2018

Mar

Canção

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.
Cecília Meireles

segunda-feira, 23 de julho de 2018

No Teu Deserto


Caminho por terreno minado, no teu deserto.

Sei que, se for por aí, terei de saltitar, correr rápido ou até talvez mesmo voar.
Não é chão seguro, nem estrada linear.

É um lugar para se estar e passar. Por isso, há que ser leve. Pisar o solo levemente, tão levemente que a poeira não surja… que os pássaros não acordem, nem desatinem os cães. Como se fosse noite e todos dormissem.

Serei tão discreta e leve que ninguém me verá, mesmo que me falem, me olhem e continuem as suas vidas.

Também pouco me importaria que me vissem ou se rissem.

Passarei sem deixar rasto… sem mostrar que estou, porque não estou!

Para que as entranhas da terra não sintam a minha existência na tua vida, para que os alarmes não disparem e as minas rebentem.

Porque sei que o chão está minado e eu a vítima-objeto, pronta a saltar, qual estilhaço a quebrar.

Definitivamente para quebrar… desistir e não voltar.

Sei que só eu me posso salvar, mas para isso terei de flutuar, deixar que o vento me transporte no ar… Sem amarras, nem sentimentos, no ar…apenas no ar…






sábado, 21 de julho de 2018

Cais do Sodré


Palavras soltas no Cais do Sodré




William, um jovem turista inglês, descia apressado e ligeiro a rua do Alecrim, feliz dos pés, feliz da vida.
Ficara alojado num hostel chamado “O Cantinho do Prazer”, nome que nada lhe disse quando chegou, mas que muito o divertiu quando pediu a tradução.
Pensou que tinha chegado a um lugar especial, a uma cidade especial, onde o prazer e a alegria se misturavam com o sol e com o rio, que estavam ali para o fazer feliz.
Tudo era expressão desse sentir. Até a barbearia onde barbas modernaças eram a paradas com elegância, lhe sussurrou baixinho ao passar: “Life is too short for a bad haircut”.
Não fora a fome que já picava, talvez se atrevesse a entrar. Preferiu continuar na busca de alimento e ficou na dúvida sobre o que escolher, os menús estavam escritos em inglês (simpáticos, estes portugueses!) mas, por vezes, incompreensíveis ao paladar britânico. Broken Eggs seria algo de recomendável? E acompanhado de uma Bigfana, como seria?...um desafio, pela certa.
Iria experimentar – pensou: O quanto se adia se perde.
Vamos lá embora – disse para si – hoje, nada lhe partiria a alegria, nem mesmo um broken egg!

(exercício de escrita criativa : escrever um texto que usasse obrigatoriamente as frase: palavras distribuídas à sorte e acima sublinhadas)

quinta-feira, 12 de julho de 2018

Mercado da Ribeira



Uma luz difusa, sobre móveis escuros e pessoas de tons diversos, surpreende quem ainda vem da rua com uma réstia de sol no olhar.
Rapidamente se fica submerso naquele mundo diferente, amálgama de diferentes cheiros, que cada banca oferece, babilónia de vozes sobrepostas ao tilintar da loiça e à música ambiente… indistinta!
Miúdas, todas lindas, todas jovens, pernas ao léu, muitos ténis, muitas sandálias…
Um grupo de “ginjas” faz circular a garrafa de tinto, que desaparece rapidamente nas gargantas, à mesma velocidade com que sobe o tom das gargalhadas.
Cheira a alho, a cebola frita, a refogado bem português, apesar de sob o meu olhar só existirem pratos com restos de pizza, certamente sem sabor nem cheiro.
O velho e querido hambúrguer parece atrair o turista menos afoito a provar petiscos desconhecidos.
Quanto ao vinho, não parecem ser esquisitos, provam de tudo, partem do princípio seguro de que é bom: branco, tinto, sangrias coloridas de frutos. Bebidas que os fazem rir e tocar, distorcendo os corpos nos bancos altos, quase caindo sobre o parceiro mais próximo.
Cevicherie, local vazio, peixe crú não atrai cliente, mas cheirava tão bem… que incongruência! Deve ser dos acompanhamentos, hum… provei pipocas de porco, picantes e boas. Tudo apetece, mas não posso ficar.
Lá fora dança-se e a música puxou por mim. Não é bem um jardim, mas um quadrado de loucura saudável, ponteado de relva, tem um parque infantil e é um local de devaneios e copos. O DJ abana-se ao som da música “disco”, enquanto uma criança desliza no escorrega, indiferente ao som.
Cachorros, pertença de um grupo de “alternativos”, cabelos com rastas e trapos a condizer, são afagados por dois brasileiros de São Paulo, felizes por abraçar a pseudo-jornalista que sou eu, que apenas queria saber porque não dançavam. Dizem que o mundo aqui é igual ao Brasil, todos se querem divertir, ninguém liga aos problemas do mundo, ao que é importante e grave para a humanidade. Somos iguais! – dizem. Replico que a segurança e o à-vontade vivido naquele pequeno quadrado de loucura talvez não seja possível em São Paulo. Procuram fazer amigos, já conheceram muita gente nova – é o que querem, estão eufóricos cm o ambiente: viver o prazer, amar os animais, viver a música e os copos.
Aquilo que me parecia um lugar de feliz descontração – um pouco caótica e plurifacetada – um divertimento a que todos temos direito, de repente parece-me uma futilidade.
Há guerras e desventuras, mas acredito que naquele grupo de jovens sentados no chão, sem conforto mas com a alegria das cervejas em copos de plástico e comezainas de aspeto duvidoso, poderá haver um cientista, um génio ou apenas um bom coração capaz de salvar o mundo.
Sorrio à felicidade dos outros, porque só gente feliz pode fazer algo de bom, por si e pelos outros.

A Casa


A casa tem alma se tivermos amor para pôr lá dentro


Há a casa-abrigo e a casa-ninho. E as diferenças entre uma e outra são tudo, fazem ou desfazem a vida de uma pessoa e o seu lugar no mundo.

Uma casa pode ter tudo e estar vazia. Ou estar vazia, pobremente vestida de mobílias e de coisas, mas cheia de alma.
Há quem não tenha casa o que não significa que seja sem-abrigo ou viva na rua – são os que se abrigam junto de amigos, conhecidos, tentando aconchego gratuito ou alugado… porque pouco têm se seu. Mas têm amor para dar e essa troca de um teto por afeto parece-lhes justa.

Há quem seduza um dono de casa para ser dona da sua (dele) casa. Porque uma casa é tão útil, dá tanta segurança, dá tanta riqueza a quem tem pouca sorte e pouco de seu.
Há quem roube, há quem manipule, há quem se venda, há quem compre ou explore o outro, sorrindo – tudo por uma casa! Por uma casa-abrigo, por uma casa-conforto, por uma casa-velhice…
Há quem perceba – talvez, tarde demais – que uma casa não se rouba, nem se conquista. Uma casa constrói-se com amor, com afeto genuíno, consentido, gratuito e bilateral. Uma casa com alma tem amor lá dentro, tem bondade, partilha de interesses… é feita de boa-fé, sem apropriação indevida, sem artifícios.

Uma casa só é ninho, se for legítimo local de habitação de amor desinteressado…. Se for um lugar a que possamos chamar de nosso - em exclusividade ou em parceria - mas nosso por direito próprio, esse que só a alma legitima.


(Exercício do Curso de Escrita Criativa)

Pensão Amor



Natasha, bailarina russa do Teatro de São Peterburgo, estava no auge da sua carreira, culminar de anos de esforço e de disciplina, que a sua arte e a escola soviética impunham. Dançava maravilhosamente.

Uma noite, no final de um espetáculo deslumbrante, um deslumbrado comandante de um navio francês, ancorado no porto, convidou-a para jantar a bordo, com todo o requinte gastronómico, com toda a simpatia cavalheiresca, quiçá com outros interesses que a ocasião poderia proporcionar.

O champanhe francês fez o seu efeito, deixando Natasha prostrada e semi-inconsciente no sofá do camarote, enquanto o comandante se afogava em vodka, bebida que não estava muito nos seus hábitos.

A noite abateu-se sobre os dois e nem a aurora acordou o idílio não acontecido. O navio partira mal amanhecera e o comandante   preocupado ao perceber que levava a bordo a uma prima-bailarina russa e temendo ser acusado de apoio à imigração ilegal – deu ordens rápidas e atabalhoadas a um grumete, para que a transportasse a terra num barco a remos. A costa estava cada vez mais longe. O pobre marujo, atrapalhado mas cumpridor, tentou dar conta da sua missão, mas ao perceber o risco que corria, resolveu esconder a rapariga no porão. Ao descer, às pressas, às escuras, ela tropeçou e caiu. Algo dentro dela se partiu: o pé ou a perna …talvez uma vértebra. Sentiu que a sua vida artística terminara ali, naquele porão sujo e escuro no meio do oceano, a caminho do desconhecido.
Quinze dias depois, o destino era Lisboa, onde foi literalmente empilhada com caixas vazias de víveres e despejada no armazém do porto.

Natasha mal andava mas queria dançar, a música chamava por ela. Deambulou pelas ruas, coxeando e com dores, num caminho que pela certa a levaria à morte … pensava.
Era um fim de tarde e alguém lhe disse que aquela zona se chamava Cais do Sodré, ruas de bares ainda vazias dos marujos bêbados, que a assaltariam à noite.
 Entrou numa porta – a Pensão Amor – porque a música que tocava no andar de cima chamou por ela. Uma área de ópera era coisa pouco usual naquele lugar.
Mas ela queria dançar, apesar do sofrimento, das fraturas suspeitadas.
Agarrou-se ao varão que estava no meio da sala de cortinas douradas e sofás de veludo. E dançou apesar das dores, dançou graças ao apoio daquele varão providencial, dançou até a noite cair, até desfalecer… porque aquele lugar era certamente o seu fim. Dançaria sempre e até sempre… Dançaria até à morte, por si, pela sua arte, porque dançar era a sua essência e a dor o seu caminho. Dançaria sem parar... até parar!

Quando acordou, inerte ao lado do varão, sentiu que uns braços fortes a içavam e que um mar de homens grosseiros e duros, pegajosos e escuros, batia palmas e chorava sobre as suas canecas de cerveja esquecidas e por beber.


terça-feira, 10 de julho de 2018

Cinco Sentidos do Arco-ìris




Sinto a tua pele colada à minha, deitados no calor da sombra do chaparro.
Á nossa frente… o azul do lago.
O Alqueva derramado aos nossos pés, olha-nos, indiferente e sobranceiro.

Não o vemos. De olhos fechados, sentimos primeiro …
Sentimos o som dos pássaros que ressoa nos nossos corações, como se fosse aí o seu ninho de amor,
Sentimos o sabor dos beijos, nas amoras vermelhas, imaginadas escondidas nas silvas em redor.
E o cheiro da tua pele vem com o vento que não sopra na copa das árvores. Vem ligeiro e fácil, pegajoso e morno…

Abro os olhos quando o aroma das amoras, que não têm cheiro, se mistura com o sabor dos beijos que não foram dados… quando o calor do teu corpo, ainda afastados, me leva para um lugar líquido… é isso que sinto em mim e em torno.

Abro os olhos e vejo que afinal tudo é azul: azul como o teu toque suave e quente, azul como as amoras vermelhas e doces, azul como o piar dos pardais cinzentos, azul como o aroma da tua camisa branca aberta no peito … azul como o lago, que permanece indiferente.

Porque este azul imaginário é o sexto, o sexto de uma ordem de sentidos inversos, malcomportados, tresloucados, mas de todos aquele de que mais preciso para estar presente.