quarta-feira, 6 de março de 2019

Espelho


Espelho

O Outro que sou eu mesma!


Era assim que Lília pensava, nos dias de maior lucidez, quando se olhava no espelho real de sua casa. Sim, porque havia o também o outro - o espelho virtual da sua vida.
Sentada na borda da banheira, vendo o rosto refletido na superfície à sua frente, brilhante de luz e numa confusão de imagens sobrepostas, ela via-se e entendia-se.

Miscelânea de tons e de brilhos, o espelho era o reflexo de um espaço claro e vibrante de azulejos e metais, com a sua pessoa toda inteira lá dentro. Era ela, ali exposta a nú, mesmo que estivesse vestida. Ou seria outra que ali estava, alguém por quem a curiosidade estimulava a descoberta?

Lília, frágil lírio à deriva dentro de si mesma, buscava no outro o reflexo do seu amor-próprio. 
Precisava de se ver ao espelho da comunidade em que vivia, da família, dos amigos, do “outro”… Só o outro era espelho suficiente para lhe realçar a beleza, para a fazer ser gente. 
Ela sózinha não era ninguém.

Precisava de aceitação, de reconhecimento, de ser amada, apreciada - fermento de valor para si mesma.

Toda a sua vida tinha sido uma peça de teatro, encenada com labor, com um guião roubado algures, criação de outrém, cópia fantasista da realidade. Ou antes, várias peças, porque a vida dera muitas voltas, muitos cenários, diferentes atores, países e regiões... Em todas, ela fizera por ser a atriz principal. Recolhia os aplausos, sonhava-se adorada, sempre linda (apesar de não o ser), sempre nobre, alta, magra, elegante, altaneira, amada, voluntariosa, aventureira, corajosa...
Sobretudo, era isso que ela via no espelho - uma mulher corajosa que gostava de experimentar o amor, as emoções, o prazer de ser ela e de se ver nesse espelho que lhe confirmava isso mesmo, não fosse haver dúvidas...

As inseguranças tapava-as com maquilhagem, as rugas eram certamente fruto do embaciamento do vidro, do vapor de água no espelho, porque ela se via glamourosa, plumas e farfalho de diva... deslisando sorridente no palco, ouvindo um clamor de ohs e de ahs... por ser uma mulher amada, sonhada e estrelada! Estrelada vinha de estrela, de cinema ou do céu, pouco importa... importa mesmo é que lhe vejam o brilho e lhe afaguem o ego. E lhe afaguem o corpo, também - longo e seco, envolto na nuvem da fantasia... um pobre corpo carente de mimo... logo ela que tanto mimo tinha para dar. Sem crianças, sobravam os animais...

Retirava prazer de tudo o que construía e que servia para lhe dizer, baixinho, que estava viva e era boa. O prazer vinha do mundo, do exterior... tanto podia ser uma música, como um prato gourmet... como um beijo... como um acontecimento social, onde ela era bela e admirada...
O prazer vinha da partilha, da sua vida exposta à "cobiça" alheia, ao deslumbre das amigas, das gentes várias que circulavam por aí. 

Ah (redondo!)... amigas de boca aberta de inveja... Oh (mais redondo, ainda!) que espanto esta Lília! Que máximo, sortuda, inteligente... capaz de desencatar um princípe perfeito, só pode...
Magríssima, para inveja das balzaquianas celulíticas. Prendadissima, com esmerado dote culinário, para espanto das estafadas mães de famílias; essas que já não têm jeito nem carinho no preparo de mais uma refeição pr'á prole ou pr'ós amados...
Era mesmo preciso deslumbrar... 

Aquilo que mais lhe aquecia a alma não era um beijo, bem gostado, era o facto de esse beijo ser seu mas também ser dos outros... daqueles que assistiam, mais de longe, ao seu recato amoroso... muito pouco recatado...

Aquilo que mais lhe aquecia as entranhas era... nada! 
Só a alma ardia, quando o corpo se abria generosamente ao conforto do macho, à sonhada segurança viril que o príncipe semeava bem fundo dentro de si. 

Sem espelho! Essa sim, era real, semente sentida, tremente e quente!
Não interessa se a terra tremeu ou se o seu corpo em transe se elevou do chão, porque o seu chão, mesmo frio, está ali aconchegado entre as pernas quentes e seguras de quem se quer bem, na ausência do desejo. De quem se quer, sem o ardor da carne, apenas com a volúpia da espitualidade que enche o coração, na fantasia do espelho que carrega um futuro.

Havia uma dislexia constante entre o íntimo e o partilhado, entre o público e o privado. Como se aquele fosse condição necessária para que o outro existisse.
Sinal de fragilidade? De insegurança? De uma estima própria que alardeava muitas vezes, para que nela pudessem acreditar ... com muita força!
Porque força era o que mais precisava... parecia que era exímia a criar força onde ela não existia.
A força cria-se do nada... dizia.
A força vem de dentro... a força vem dos amigos, coisa que ela alimentava, plantava com o desvelo de quem cria rosas.
Admiração era o que mais precisava e amor para mostrar, amor para se sentir segura...

O amor não era bem uma coisa que servisse para consumir, era mais para guardar, para pendurar num sítio visível, para mostrar.

Ai, se os lençóis lavados tivessem cheiro! Se cheirassem a amor, se limpos, suaves e transparentes, fizessem transparecer a intimidade vivida, fossem prova de afeto, fossem sinal de segurança e de admiração...

Se fossem, se fossem, se provassem... se todos vissem... aí seria verdade, escrita sem espelho!
Se os lençóis se pendurassem numa corda do facebook e todos vissem que a clareza alva do algodão era a intimidade acontecida e sonhada. Tão brancos que não se escreve nada que se leia... tão neutramente brancos que nem marca, nem cheiro, nem futuro guardam.
E se nos gestos se perscutam intimidades, é também pelo significado do gesto que se desmonta o seu contrário. 

Tudo o que se desmancha, também mancha.... tudo o que se destroi, se constroi. Resta a esperança, resta que o espelho nos diga a verdade e a mentira que se esconde nos gestos que podem ser ou não ser...


Lília sabia que o mais importante não era aquilo que teimosamente insistia em pendurar na corda da roupa, sabia que acima de tudo está a intimidade. Que intimidade é segredo  só a dois desvendada... E Lília sabia que essa lhe fugia... talvez...




   “Dormir com alguém é a intimidade maior. Não é fazer amor. Dormir, isso é que é íntimo. Um  homem dorme nos braços de uma mulher e a sua alma se transfere de vez. Nunca mais ele encontra  as suas interioridades”
Mia Couto

  “Nunca, mas nunca mesmo, me senti tão amado (…) Sentir arrumar-me a roupa de dormir, para  ficar aconchegado, sentir toda a noite os teus braços à minha volta …”

(desconhecido)


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