segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Tudo Tem um Fim ... Até a Esperança


Rosa tem 80 anos, feitos hoje! Um rosto claro e um olhar luminoso, intenso, transmite-me alento para continuar a viver, para um dia poder ser como ela - uma velhinha alegre e inquieta, pronta a  ajudar - a mim, por exemplo, a vizinha tonta com metade da sua idade que, neste momento, resvala para um princípio de depressão, a que chamo a "quarentena" da quarentona. 

O entrar nos "entas", solteira e perdida na selva desta cidade de afectos avulsos, coloridos, cinzentos, de todas as cores boas e más do arco-iris, fizeram de mim uma nervosa irritante, em suspense do mundo dos amores difíceis, onde frequentemente me perco. 
Tenho em Rosa, vizinha, amiga e confidente, o meu pilar de sossego, o apoio, a paz de que preciso, porque Rosa é a sabedoria feita amor, feita ternura pelos outros, da qual eu sou uma destinatária privilegiada. 
Rosa conhece os homens como ninguém e, desentendendo as mulheres, ajuda-as a orientar-se nesse mundo de machos desalentados e desorientados. Ainda mais tontos e perdidos do que elas... 
Rosa fez oitenta, entrou oficialmente na idade da sabedoria absoluta. Ofereci-lhe uma caixa bonitinha para guardar recordações. Disse-me: 
- Por enquanto, a memória ainda vai guardando o que realmente importa, mas há as cartas, essas convém ter inteiras, porque não basta reter na memória as emoções que nos trouxeram, as palavras são importantes. Os sentimentos são sobretudo palavras, emoções são letras e canções... das que se escreveram e das que foram escritas e não enviadas. Tudo são palavras, pedras que comprovam a existência do edífício, da matéria, porque recordações etéreas se desvanecem sem a existência do que é físico. 
Cartas são pedras, os marcos da nossa existência. Mails e sms, minha querida, esfumam-se na nuvem virtual, tão falível quanto a nossa memória alzheimeriada.


Pegou num maço de cartas, arrumou-as na caixa e disse: 

- Se lhe forem úteis... pode de ler. A mim ajudam-me a pensar na relatividade dos factos, em como tudo é transitório e passageiro nesta vida, a perceber que só podemos contar connosco, porque mesmo quem se ama, um dia desaparece sem rasto e ficamos sós, tal como nascemos, sós no meio da multidão. Pensamos que os afectos são âncoras para a vida, mas é mentira, no fundo não são mais do que meros rebuçados, que lambidos perdem o sabor e se desfazem...


Peguei na primeira carta, ao acaso, e perguntei: 

- Quem lhe escreveu esta?
- Eu... nunca seguiu, tanto quando me lembre... Mas é tão ou mais importante quanto as que recebi, porque mais verdadeira. Escrita por mim para mim mesma. 



Levei-a comigo e li, com os olhos abertos e o coração apertado, envergonhada pela devassa de intimidade e curiosa porque precisava muito daquele alimento, não sabia de quê... não sabia o que ia encontrar, mas sabia que precisava de realismo, de um banho de afectos, onde mergulhar o meu coração atontado, pelas hormonas baralhadas da querida quarentena de quarentona...




Algures no tempo das cartas, alguém talvez com a minha idade, escrevera:


"Perdi a esperança.  A esperança de que poderão existir dias melhores, contigo.
A esperança é o que nos dá alento… é a motivação para andarmos em frente, para viver um dia de cada vez. É a luzinha ao fundo do túnel, o que nos faz aguentar, nos dá aquela migalha de alegria sofrida que permite aguardar tempos melhores, que nos consegue fazer sorrir mesmo nos dias cinzentos, sonhando outro futuro, que nos deixa adormecer em sossego, porque talvez ao acordar o mundo esteja melhor.
Passaram longos meses… desde que tu mudaste e partiste em espírito, não sei bem para onde nem porquê.
Partistes, mas fostes deixando uma vaga sensação de que estavas por perto… e que poderias voltar. Nunca pensei que voltarias como dantes, porque a história não se repete, mas imaginei sinceramente que fosse possível que tu voltasses para mim, de outra maneira. Imaginei um outro modelo de vida, mais confortável para os dois, sem stress, um convívio amigo, calmo e feliz. Imaginei que conseguíamos manter bons sentimentos entre nós, que alimentávamos a chama dos afetos, da ternura, da cumplicidade…
Agora verifico que estava, inocente e estupidamente, enganada. 
Tu não fazias nem fazes intenções de voltar e retomar um qualquer convívio normal… seja lá o que isso for.
A minha vontade de “compor as coisas” era tanta, que esperei, esperei… mas nada!
Foi uma espera inútil e o fim da esperança.
Dei-me conta de que não voltas, de que não me queres … partiste para sempre.
As chamadas telefónicas raras e as cartas espaçadas eram apenas um paliativo que tu encontraste para minimizar o meu sofrimento. Tu és bom, generoso e por isso tens feito o possível para reduzir o impacto que o teu abandono provoca em mim. Conheces-me muito bem e sabes que sofro… sabes que aguento mal a perda… sabes que é uma enorme derrota para mim perder uma pessoa de quem gosto.
Sabes também que não entendi completamente o porquê de um corte tão radical.
Tu explicaste, é certo, em câmara lenta, aos bochechos… não dando a má notícia toda de uma vez… mas explicaste o que te ia na alma. Foi por isso, que eu aguentei… e não te odiei. Porque houve uma explicação, mesmo que esfarrapada. Só que agora a explicação me parece falsa.
E eu não suporto a mentira. A história de que não aguentavas o stress, andavas cansado, confuso, em correria para fugir à clandestinidade, a falta de tempo para mim (sempre contrariada quando eu verificava que tinhas tempo para os outros), tudo isso me parece mentira. Mentira não deliberada. Não te estou a chamar mentiroso. Foram  mentiras que inventaste para ti próprio e que me contaste, para me calar. E a verdade é que fui acreditando… fui aceitando, com sofrimento, mas crédula de que se não estavas mais comigo era porque não podias, porque a princesa não deixava, porque estavas doente, etc.
Quando na realidade me davas cada vez mais provas de que nada disto era verdade. Os teus impedimentos existem certamente, mas não são tantos assim que justifiquem tanto afastamento. É demais!
Tenho tido muito mais calma do que me é habitual. Fui tolerante, o que não está no meu feitio. Fui paciente… que é virtude que não me assiste!
Aguardei e acreditei num milagre… que não aconteceu, nem irá acontecer.
Gosto demasiado de ti para continuar assim … Estou cansada, estou farta desta vida de espera sem esperança.
As poucas vezes que viestes “visitar-me” nunca foi por mim… foi sempre por acaso …
É claro que o tempo passado comigo deixou de ser um valor para ti, muito menos um prazer ou uma necessidade vital.
No meu entendimento, por muitas tarefas que tenhas, por muito controlo que a princesa exerça… há sempre hipóteses. Basta querer! Não me parece que seja de todo impossível, combinar um almoço, um lanche, umas horas de passeio… algures. Não era preciso ser tantas vezes como dantes… mas agora é nunca!
Em seis meses, mais ou menos, devemos termo-nos visto aí umas duas ou três vezes . E correu mal! Tu vinhas com pressa, frio, sem jeito, sem avisar… uma situação meia parva. Percebi que não estavas à vontade e eu também não. Tornámo-nos estranhos…
Entre nós, ficou um mal-entendido… um tempo de separação idiota, idiota por parecer ilógico e inexplicável.
O tempo é um valor muito importante no mundo dos afectos. Não se pode ir e voltar , com um espaço de tempo tão grande, e esperar encontrar a mesma pessoa… Tudo mudou entre nós e não falar disso é mau.
Do meu lado, fico sem saber como me comportar. Pergunto a mim mesma o que faço ali, quem é aquele estranho, porque está e não esteve. Será que volta? Será que se comporta como dantes? Será que ainda é meu amigo? O que sente com a minha presença? Gosta de mim um bocadinho ou esfriou de vez? Está ali com medo de voltar a casa e apanhar no côco? A minha conversa dá-lhe stress? Amanhã acorda com enxaquecas e a culpa é minha? A culpa para todos os teus azares é sempre minha (ou tua), os outros são todos uns santos… ninguém te faz mal (quando eu sei que és um escravo do dever e dos outros), ninguém está a mais na tua vida. Está tudo certo, menos eu!
Pensar nisto tudo… faz-me mal! Eu já não ando muito bem, com os meus problemas, pelo que pensar em ti e na fraude que foi o teu afastamento, é demais.
De que vale continuarmos a mandar bilhetinhos, sem saber se os sentimentos o justificam? E que sentimentos? Somos amigos? Ainda gostas um bocadinho de mim. Então porque não podemos vermo-nos, uma vez por outra, com calma e com tempo de qualidade? Sabes que não posso ser eu a ligar. Isso irrita-me , porque não me parece que seja crime, uma vez sem exemplo eu ligar-te mesmo estando tu acompanhado. Sempre podias dizer qualquer coisa como desculpa e falarmos mais tarde. Bolas, eu não valho isso? Realmente nunca vali! Mesmo nos bons velhos tempos. Nem no dia dos teus anos eu pude ligar de minha iniciativa. Uma amiga não pode dar os parabéns? Então que raio de amizade é essa. Somos ambos velhos, inofensivos… a vida é tão curta e há pequenas coisas que dão tanto prazer e não fazem mal a ninguém.
Acho que o teu problema não é falta de liberdade… mas falta de interesse por mim.
E é isso que me dói. Tenho de capacitar que assim é… e não mais acreditar que ainda há esperança em seres meu amigo.
Estou muito triste. Eu gosto de ti, preciso de ti… e peço tão pouco. Mas nem esse pouco tu tens para me dar. Os meses passam e as minha poucas e tímidas cartas ficam sem resposta. Não estou à espera de uma resposta exaustiva… mas com franqueza, esperava que acusasses o que te digo. Temo que estejas doente. As minhas palavras esbarram no silêncio. E eu estou cansada. A esperança não morre… o amor também não, quando é verdadeiro… quem morre sou eu de cansaço…
Sei que não podes fazer nada… se escrevo é só para que não te preocupes com o meu silêncio. Silêncio é tudo o sobra entre nós. 
Tu partiste e levaste o amor… eu fiquei . De nada serve continuar a pensar em ti. O pouco que escreves é como quem me dá uma aspirina… por piedade, para me manter em paz, para minimizar o meu sofrimento, porque sabes que o abandono é demasiado pesado para mim…
Fico agradecida, porque sei que o fazes por bondade… mas não quero a tua piedade, quero da tua amizade. Infelizmente, amor ou amizade não é coisa que se peça. Ou existe ou não existe.
E tu mataste o que havia de bom entre nós. Eu esforcei-me por manter uma chamazita de afeto, mas não consegui. Desisto. Isto é patético, andar a esmolar afetos…
Vou fazer um esforço para não te incomodar com os meus lamentos… Gosto de ti, não te serve de nada a ti, mas aquece-me o coração saber que existes, apesar de doer imenso…".


Bati à porta da Rosa, de lágrima no olho, ia devolver-lhe a carta.
Esbarrei-me no carteiro que lhe tinha entregue um telegrama, coisa fora de moda também. 
Ela mandou-me entrar e sorriu: 
- A resposta chegou, ao fim de tantos anos. Tinha-me prometido que saberia dele, quando fosse importante e que a afilhada, em quem confiava, saberia o que fazer na altura certa. Estou grata à pequena, que cumpriu e que - por generosidade ou por mentira piedosa - teve o bom gosto de acrescentar que, mesmo no fim, ele lhe relembrou a promessa e a morada onde o beijo deveria ser entregue, juntamente com a rosa vermelha das segundas feiras. 

Hoje é segunda, deve estar a chegar. 

E o sorriso alargou-se, vermelho cor da rosa vermelha, rosa como ela. Afinal ele veio, sob a forma de fim. Valeu a pena a esperança.

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