sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Fofa e Teimosa




Virei gato! No calor do borralho, amoleci a inteligência sobrante, as unhas pontiagudas enroladas afagam e não picam, o pêlo na pele tocada embala corpos e encanta quem ouve essa música surda que é a dos sentidos primários. 
Encostei e deixei-me ir... até uma acha deslisar e acender um clarãozito mais claro, até me fazer ver num relance um rato, passando por mim a gritar: Fofa e teimosa! Uau! Um rato, só um rato esperto para me despertar o instinto de sobrevivência e de luta. Um rato maroto, matreiro que embalou docemente o meu nome: Fofinha! Gordinha! Queridinha... Sim, tudo isso tá bem, passemos adiante, importa é que ser queridinha e confortável não retire as hipóteses de viver, de teimar em viver, de ser eu ...
De ser teimosamente eu!
Já uma pessoa não pode adormecer à lareira, de passagem e sem vínculo e corre o risco de virar gato da casa... 
Eu e as minhas circunstâncias: Fofa e teimosa são adjetivos, atributos de uma pessoa e não uma circunstância. Por isso, são coisa séria, importantes, relativamente estruturais (claro que se pode ser transitoriamente fofa... já quanto a teimosa não se muda assim tão facilmente...).
Fofura, tal como gordura é formusura, é qualidade.  Fofa, macia, mansa, boba, bolo, doce - prendas sonhadas, sentidas, vividas e apreciadas
A seu par, a teimosia é defeito - complicada, chata, barata e ... não gata.
Com uma fofa se deita e se dorme, com uma gata se deita e se acorda!
Ser fofa até parece piropo: é igual a ser confortável, aconchegante, coisa querida, maciínha, boazinha... graça apreciável ainda em gatinhos e outros bichinhos... 
Até parece piropo, mas não é! Tão chocho que nem para assédio dava, molezinho, pacífico, judicialmente inconsequente. E se fosse? E se desse queixa? Suponhamos... Ele (o juíz) rir-se-ia: ah, ah, fofinha é a bichana, velhota e mansa lá de casa. Ainda se fosse gata, lembrar-me-ia a vizinha do segundo esquerdo, unhas afiadas de vermelhos, pés então, ui !!!... sandálias que me precedem nas subidas, escada acima a caminho nem sei donde, do tal andar de fantasia a, da curva da perna, da saia que sobe ou será que quem sobe é a sandália da unha vermelha. Ai, a gata. Sinto um calafrio na espinha , as unhas arranhando-me as costas despidas, por ela, uma gata não fofa.

Ser fofa: atributo pouco sedutor para avaliar uma mulher, pouco fatal, pouco apaixonante, demasiado lento, parado e submisso ... nada que perturbe um homem...
Mais vale ser teimosa, determinada, determinante do seu destino, mais vale ter poder para transtornar, mudar mentalidades, partir teimantemente em frente... 
Mais vale ter força de romper com a submissão, de acabar com a vontade de agradar... só para ser aceite... Mais vale chocar e ser eu mesma! Diferente, disruptiva, insubmissa e, por isso, mesmo abandonável a meio do percurso.
Percursos com emoção é o que se quer. Vida mole não convém por muito tempo... É bom um aconchego, um calor de lareira ... mas é melhor um calor de guerra e de paixão...
Percursos, caminhos para fora do conforto e da fofura... Atravessar prados molhados, enterrar pés na lama, escorregar nas veredas, olhar o mar e as montanhas, respirar o sol e o ar lavado dos espaços largos. Ir, ser, amar, teimar. Teimosia é o risco de perder um lugar à lareira, que já não é meu, nunca foi, nem será, mesmo travestida de mansa e fofa gatinha.

Adjetivos são míseros atributos de um objeto/ser, não são o sujeito. Eu gostaria de ser o substantivo. 
Era gente, passei a animal e a adjetivo? 
Que fazer? Se corro à frente do rato, ele correrá atrás de mim? Ou prefere ficar, espreitar mansamente o próximo gato que se vai instalar à lareira e gozar do seu pêlo suave, do seu mimo doce... da calma moleza da certeza?

Sem comentários:

Enviar um comentário