quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Os Normais


A vida é injusta para com as pessoas “normais”. 

Que são a maioria, felizmente!

Apesar de serem uma maioria em regra silenciosa…

São aquelas pessoas que batalham no dia a dia cumprindo discretamente os seus deveres, muitas vezes com esforço e abnegação, porque assim manda a sua consciência. Vivem com cedências constantes, sofrimento, traições, aceitando contrariedades com cara alegre… e desde que as ofensas não ponham em causa a dignidade de cada qual, seguem em frente, sem alarido nem publicidade.

Claro que a fronteira da dignidade aceitável e suportável é difícil de definir; o que para uns é admissível (por exemplo, apanhar pancada do marido), para outros a fasquia da ofensa e da indignidade está muito acima (é o meu caso). 

Ser bom para as pessoas de quem se gosta não tem nada de heróico nem de especial. Não é apreciado nem louvado. É normal! 

E os “normais” são aqueles a quem não se liga e se diz: vai-te à vida! Tens boas condições para isso, tens pão e tecto, não tens necessidade de amor, nem de compreensão, nem de ajuda ou de solidariedade. Não tens direito a estar doente ou deprimido. Desenrasca-te!


Pelo contrário, os “desfavorecidos” da sorte merecem piedade e apoio. E são logo enquadráveis em situações de dependência que é fácil justificar - os coitadinhos que tudo merecem (pobres, doentes, velhos solitários, desempregados, sem-abrigo, sem

Pátria, malucos, etc). E efetivamente precisam de ajudas, subsídios, legislação adequada, não duvido.

Mas isso não faz deles um grupo nem melhor nem pior do que os outros. São humanos desfavorecidos e devem ser ajudados. Esta condição não lhes deve dar direito à “arrogância da pobreza”. 


Enquanto, os ricos e poderosos são objeto de inveja e ódio e desprezo por razões diferentes. Não precisam de ser ajudados mas têm direito a ser olhados com o mesmo respeito que qualquer ser humano. A menos que, na origem da riqueza haja crime… mas a parte criminal não é para aqui chamada. Acontece em qualquer grupo ou local.

O que interessa aqui é o comportamento da sociedade perante as pessoas. Somos todos humanos e todos temos os nossos problemas , defeitos qualidades e direito à vida e à solidariedade coletiva. 

Irrita-me o discurso de que os desfavorecidos são todos uns coitadinhos e os ricos uns malandros… e depois há os outros: os Normais, a quem ninguém liga.


Bem-aventurados os pobres de espírito porque será deles o reino dos céus.  

Eu dispenso fazer o papel de desgraçadinha, só para aumentar a minha cotação de mercado e cativar a compaixão alheia. 

Tal como cultivo a bondade, desprezo a arrogância e não faço alarde das minhas “riquezas” materiais ou espirituais, nem dos meus talentos e desejos mais íntimos.

Resumindo, sou normal e desses não reza a história. E são praticamente invisíveis, mesmo junto de quem lhes é mais próximo. 

Sei, há muito, o que valoriza um ser humano, não é nem a riqueza nem a desgraça.


Um ser humano vale por aquilo que é e não por aquilo que faz ou por aquilo que tem (ou não tem).


A trilogia do “ser”, “fazer” e “ter” comanda a sociedade, as pessoas e as organizações, de um modo que considero perversa. Talvez não seja esta a melhor palavra. O que gostaria de expressar é a injustiça que grassa por aí, pela importância a meu ver distorcida daquilo que uma pessoa vale pelo: ser, fazer e ter . Ou não ter, no caso dos desgraçadinhos.


Posso ser mal-amada e mal-fodida, posso ser mal compreendida, posso fazer muitos erros (e certamente os faço) mas nunca porei a culpa nos outros.

A imagem que transmito com os meus atos, o bem ou o mal que faça são da minha exclusiva responsabilidade.

Tal como um chefe é responsável pelos seus subordinados. Eu sou a chefe de mim mesma. Se algo corre mal, é em princípio culpa minha. Falhei e gosto que o digam para poder corrigir.

O facto de falhar e de não conseguir atingir o meu nível de “ ambição” - aquele que os outros me atribuem mas que para mim não é demasiado alto, é normal e justo - não faz de mim uma infeliz, permanentemente insatisfeita. 

Faz-me sentir triste e impotente por ter falhado, pode fazer com que me sinta eventualmente deprimida e só, é uma atitude pontual e normal, quando se tem uma desilusão. Mas jamais me sentirei derrotada por não atingir o que quero. 

Posso ser chata e reivindicativa - é sinal do meu gosto por querer mais e não um lamento por ter menos e me sentir derrotada.

Não farei parte dos deserdados da sorte, que deixam de lutar. 

Não farei parte do contingente das sanguessugas, dos que dependem dos outros para prosseguir as suas vidas à custa alheia, dos que lamentam as suas desgraças pondo a culpa em quem lhes atrapalha o caminho, ou lhes roubou um passado sonhado. 

Eu penso pouco no passado e as marcas que eventualmente me deixaram não me angustiam, nem criam sentimentos de vingança, nem condicionam a liberdade e independência, nem me provocam arrependimentos nefastos daquilo que não tive ou já tive mas perdi. 


O passado de cada um de nós foi o que foi, passou! 

É saudável pensar assim . 

Nem todos os sonhos de infância e juventude se realizaram, pois não! Acontece a toda a gente, sobretudo com os mais fantasistas. Mas não é saudável procurar no futuro tapar todos buracos, desgostos ou erros que o passado nos deu. 

Numa idade “ já mais para o avançado ”, como a minha, é errado olhar o presente como se fosse a última paragem do caminho de ferro da vida. O lugar onde à pressa tudo de bom tem de acontecer - tipo pudim instantâneo que é preciso fazer porque surgiram visitas inesperadas e não houve tempo de fazer um doce melhor.

É estúpido pensar que é nesta estação que, por milagre, se irão, realizar todos os sonhos por concretizar e emendar todos os erros acumulados. Não há milagres!

Isto sou eu a falar. Porque sou normal. 

Tento viver o presente como uma criança que recebe um presente. Gosto da prenda com muita força e quero mais e melhor. Quero agora porque vivo na realidade e não porque o tempo urge e há que recuperar o passado desperdiçado ou mal usado.

Farei tudo para vencer, para ser feliz, para ser “normal”. O poder e o dinheiro em demasia não são objetivos. A riqueza do afecto humano é o mais importante.

O amor é o maior tesouro… sei perfeitamente que nem sempre se encontra, nem todos o conhecem. Fui uma  privilegiada neste aspecto, não tenho expetativas de que se repita.

Mas tenho a ambição e o

direito de ser ambiciosa e de querer viver confortavelmente e em paz, num ambiente de afecto, o pouco tempo que me resta. Lutarei para ter amigos bons que gostem de mim e me respeitem. Lutarei contra o ódio, a indiferença e o desprezo, lutarei contra quem me quiser destroçar, evitarei aqueles que não me souberem ouvir com o som do coração. 


Não acredito muito na família “pura”. Nem tudo o que vem da família é bom, nem sempre podemos contar com ela. Os membros de uma qualquer família são tão bons ou tão maus como outras pessoas quaisquer. Isso do sangue é uma treta! 

Temos deveres legais para com eles, é certo… a nossa sociedade está assim construída… até um dia mudar, como tudo…

Há mosquitos com mais sangue meu do que algumas pessoas da minha família… (gosto de dizer isto para relativizar a preponderância do “império” da família dita normal). 

Há amigos e amores mais importantes e não são mosquitos!

domingo, 25 de agosto de 2024

Eu não gosto de mim?



Acusaram-me de eu não gostar de mim.

Fiquei horrorizada! Eu que tanto luto para ser feliz. Procuro pedrinhas preciosas nos buracos da calçada. Procuro aproveitar o prazer e a bondade escondida em cada bosque, em cada alma.

Procuro fazer amigos que me encham o coração, ajudo no que posso e faço por trazê-los para o meu meio. Faço-o por mim, para meu gosto pessoal e também por eles, para lhes levar um pouco da minha alegria.

Eu gosto de mim e dos outros. Porque só quem gosta muito de si tem amor/amizade para distribuir. 

Talvez haja um certo desequilíbrio, reconheço, entre o gostar de mim e o preocupar-me demais com os outros.

Tenho de rever isto - gostar ainda mais de mim e estar-me nas tintas para ajudar o próximo. Tenho sobretudo de pensar naquilo que me dá prazer. Ser mais egoista.

O pior é que ter uma vida demasiado auto centrada não é saudável. Ser feliz consigo mesma e esquecer o meio envolvente, torna-se claustrofóbico e, às tantas, damos por nós a virar eremitas ou… dementes. Não estar dependente de ninguém é bom e mau, ao mesmo tempo. 

É bom porque se eu gostar muito de mim, isso far-me-á sentir realizada e “importante”, poderosa e vaidosa.

Mas, é mau saber que se anda nesta vida, em solidão emocional… só, orgulhosamente só, sem contar com aquelas pessoas de quem gostamos para se ser ainda mais feliz. Isso também me parece ser triste.

Ninguém é feliz sozinho. Com exceção de eremitas e seres estranhos. 

Eu gosto muito de mim. Mas preciso de me ver ao espelho. Preciso de ver nos olhos dos outros que agrado. Que valho alguma coisa como ser humano.

Gosto de mim. Mas se ninguém perceber isso, de que serve? 

Só eu e mais ninguém saberemos que gostamos uma da “outra”- uma espécie de masturbacão afetiva. Não é saudável. 

E perde-se tanta coisa boa da vida - que é gostar de nós porque somos bons, porque fazemos bem a alguém e isso é reconhecido.

Se alguém me diz que eu não gosto de mim, é uma desfeita no meu caracter… e essa pessoa pode não o fazer por mal.

O razão estará talvez em mim: que não sou capaz de demonstrar o contrário. Eu gosto de mim  tanto… que posso ter a ambição de ser melhor ainda e esta “aparente insatisfação” vem do facto de eu não conseguir mostrar aos outros a felicidade que existe em ter uma auto-estima elevada e em querer sempre mais e melhor para mim mesma.

Talvez tenha de ir mais vezes ao espelho e cantar bem alto como gosto de mim, como me sinto orgulhosa pelo que consegui, por ser corajosa e resistente, como construí uma vida de liberdade e independência, não preciso de quem me sustente ou me dê um tecto. Sou orgulhosa disso. E também de ser capaz de rir de mim mesma e de olhar os meus fracassos como um incentivo para melhorar. Estou orgulhosa desta mulher maravilhosa que sou, dos filhos que criei e do neto que cresce com a minha alegria, orgulhosa e feliz por gostar ainda mais de mim, por ser capaz de ultrapassar as dificuldades que a vida sempre traz… por privilegiar o amor digno acima de eventuais percalços, ou desgostos. acima de interesses materiais. E por enfrentar a vida, mantendo a cabeça erguida com um sorriso de prazer por gostar de mim: lutadora, refilona, sempre insatisfeita por querer mais, mas pronta para ignorar quem se põe em bicos dos pés e julga ser a melhor do mundo, a dona disto tudo e a única capaz de conquistar território pela via de artifícios vários. Mas como eu gosto de mim, saberei resistir e inovar, para tudo de mim dar ou para partir para outro lugar , sempre gostando de mim … e de quem me quer bem.

Por causa desta minha maneira de estar na vida, por causa deste meu complexo de superioridade, tenho aguentado estoicamente situações que, se calhar outros não aguentariam. 

Não é fácil estar sistematicamente a semear um campo de amor, onde floresçam as plantas de que gosto, e elas murcharem pela minha falta de jeito as regar ou, então, serem regadas, pisadas ou tinadas por outros. Não é fácil assistir ao ódio.  que pende sobre o meu campo de amor,  chuva ácida que tudo tenta destruir. 

Não é fácil persistir em andar de cabeça levantada, sorrir e ser normal num clima que conjuga forças para me diminuir a auto-estima, para me desprezar ou mesmo para me mandar embora.

Sinto que tenho sempre a mala feita, para partir. Afinal todos estamos de passagem… quer da nossa vida (porque morreremos, um dia), quer da vida dos outros (que podem escorraçarmo-nos, como um cão desprezado). 

Vemos todos os dias, à nossa volta e sabemos que é assim: já tantos cães vadios e pessoas mal-amadas, abandonadas e repudiadas…

Mesmo assim, tudo farei para manter a minha dignidade, preservar quem eu amo e guardar a pequena dose de felicidade que me couber… sem… desfalecer. 

A mim só chateia quem eu quero e admito, porque primeiro estou eu e o respeito por mim mesma. Eu e o prazer de estar viva!