sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Tempo

Pensamos sempre que não temos tempo.

Andamos depressa demais. Queremos ir sempre a correr para não perder tempo. Então, partimos coisas… despedaçadas na correria irrefletida.

Partimos, perdemos e amachucamos as coisas, as pessoas … e o tempo.

Há sempre um tempo e um espaço para se estar, pode ser bom ou mau, certo ou errado, bem ou mal acompanhado… ou ser um tempo assim-assim de indiferença.

Hoje estou aqui num tempo-espaço que não sei qualificar, nem interessa. 

Só o amor ou os seus momentos fugazes, quiçá falsos, não tem métrica.

Esses pedacitos de tempo-espaço - especiais e raros - localizam-se algures num sítio sem nome, numa esfera intemporal: onde se flutua, pés longe do chão, mente presente, coração demente. Sem racionalidade, nem lógica. Vive-se, apenas… e, por vezes, ao recordar momentos bons, pensamos que os podemos repetir … iguaizinhos. Não é possível!

Aconteceu-me cair nessa ilusão. Foi assim:

Era o mesmo lugar, o vento habitual batia-me na cara, ainda era quente, tal como naquele outro verão que recordava. O mesmo vestido multicolor de ombros descobertos, largo, esvoaçante. Daqueles que não aquecem mas compõem uma nudez de praia, sobre um corpo que arrefece no rodopio do vento do fim da tarde. 

Um dia feliz tal, cheio de cor como o toque de arco-íris nas cores degradé do vestido. Uma esplanada catita fixada na foto de igual cara.

O mesmo vestido, o mesmo lugar não fazem do momento um dom igual. 

Nada se repete na materialidade do espaço-tempo, a terra roda … e com ela a vida, a magia das emoções irrepetíveis.

Só o sentimento tem o condão de flutuar como o vestido, de se desmaterializar como o vento e de ser revivido na mente… mente doente, certamente, de quem sabe mas não quer saber que não é amado.

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Um homem


Belíssimo! 

Um homem … para olhar, para sentir com os olhos o que a carne pressente.

Gosto deste homem, feito metal verde, frio, duro, resistente, fiável.

Não tem carne nem pelo, não corre o risco de se desintegrar, a carne dissolver-se por exaustão, paixão ou rotina … adormecendo. Não explode, não voa.

Contudo, é um homem… e bastante sexy. Abre a fantasia a pensamentos coloridos…

Talvez lhe falte apenas os olhos verdes percustrantes do médico que hoje me apalpou as mamas, profissionalmente, claro. E diga-se, com todo o respeito, no exercício normal da sua função de radiologista , por uso na ecografia de rotina.

No fundo um homem quadrado de ferro esverdeado tão humano e apetitoso como o da imagem e, na prática, quase igual àquele mais “mole” e sedoso - que nos cabe em sorte, num dado momento numa dada hora da vida - não é mais do aquilo de que se precisa… talvez só lhe acrescentasse apenas os olhos humanos e verdes.

O amor é construção e fantasia, o império dos sentidos na versão abstrata prefere a arte pura de um escultura excepcional… o clamor na carne contudo talvez esteja mais confortável no sofá macio de um homem mais redondo, mais carnal e não metálico.

Trocar conforto por liberdade! Foi essa a minha opção recente!

Esta peça abstrata e limpa, encarna sem carne, a ideia imaginária e longínqua do ideal de perfeição e pureza que só a arte nos pode dar.

Um homem perfeito e sensual que o risco depurado de fantasia, apurou e gravou no gesso e no metal (acrílico, talvez) do artista, até ao limite do possível. Capaz de fazer o percurso do figurativo ao abstrato, com absoluta genialidade de traços.

Uma noite com este homem verde que Dorita Castelo Branco criou… criou para encher a solidão, para dar à noite vazia um torpor de desejo e de erotismo. Que a arte eleva até onde a mente nos permite ir. Obrigada Dorita !

sábado, 2 de outubro de 2021

Engenheiro Eletrotécnico

Mudei para este bairro há pouco tempo. É um lugar sossegado, construções maioritariamente novas, quase sem movimento automóvel, rua sem saída e pouco comércio. Boa construção, preço razoável, suposto ambiente classe média pacífica, aparente segurança, escolas para a filha … foi o que nos  atraiu para o novo lugar. 

Ao fim de alguns dias, a empregada ao estender a roupa, chamou a atenção da minha mulher para o estendal do andar de cima - uma longa fila de chinelos de quarto, daqueles de pano turco como há nos bons hotéis, impecavelmente brancos … que depois de contados e recontados pela Gravelina se conclui serem 40!

40 sapatinhos, 20 pessoas de quarto calçadas, num só dia … que se multiplicaram por semelhante número de pés e de pernas, de braços e abraços, nos dias seguintes.

Atento, mais preocupado do que perplexo, passei a ouvir o som rouco do elevador, desde o fim da tarde pela noite dentro…

Um sobe e desce catita e de curta duração, pensei: pés há certamente, tal como braços … mas talvez sem abraços. Porque um abraço leva tempo e outro pezinho espera a hora de calçar seu chinelinho, branco, lavado … que ali parece ser casa asseada e produtiva.

Sem saber muito bem o que fazer, mas pensado que uma filha pequena em idade escolar merecia o meu cuidado, uma casa com algum decoro, resolvi ir falar com um dos poucos vizinhos que conhecia e sabia ser um chefe da polícia da judiciária com alguma importância. Ele alinhou logo em atacar o assunto com a devida energia policial que a circunstância justificava. 

Sugeriu mandar um agente da polícia no dia seguinte, montar rondas… sei lá… divagou sobre estratégias… não era fácil provar uma situação ilegal… no fundo, a casa era particular, as pessoas livres de receber visitas… enfim… complicado. Mas havíamos de fazer qualquer coisa, estava comigo !

Eu disse: deixe lá, eu sou engenheiro eletrotécnico ! Amanhã falamos.

Ele sorriu, irônico…

Saí dali e fui à loja do chinês. Comprei duas câmaras de vídeo vigilância, muito rascas, o mais barato que havia.

Cheguei a casa e montei o escadote no átrio, espalhei o conteúdo da minha caixa de ferramentas, berbequim, martelo, cabos elétricos enrodilhados, chaves disto e daquilo. As pessoas passavam e cumprimentavam, olhavam para o estardalhaço, uma vizinha disse mesmo: Bom dia. Senhor Engenheiro!

A comadre do rés de chão ouviu e perguntou: 

- O vizinho é engenheiro?

- Sim, respondi, engenheiro eletrotécnico. 

- Ah, muito bem! Tão bem apessoado, só podia … (não percebi qual a relação entre uma coisa e outra, mas sorri).

Acabei de pregar uma das câmaras de vídeo no átrio. Quanto ao fio elétrico enfiei-o à balda no buraco que estava tamponado no alto da parede, nem me dei ao trabalho de concluir a instalação elétrica. Para quem estava de fora não percebia que estava desligado.

Fui à garagem, que tinha também acesso aos andares pelo elevador, e fiz o mesmo - preguei aldrabadamente a câmara do chinês.  

Depois fui a casa e terminei a tarefa mais elaborada - própria de um verdadeiro engenheiro (leia-se pessoa com muita criatividade e jeito de mãos, para além de bem apessoado, na opinião da vizinha…) - escrevi, em letras grandes, dois cartazes que colei por baixo das câmaras.

Diziam: Sorria que está a ser filmado ! 😀

A partir desse dia, passei a dormir descansado, o elevador num sossego, o prédio mergulhado num quase silêncio de lugar de boas famílias … sem chinelos no estendal.

Moral da história: um engenheiro eletrotécnico vale mais do que um polícia !