O que não se diz, não existe!
Tal como as palavras não ditas, também as cartas não enviadas, não existem.
Era nisso que pensava Lídia na sua janela, de uma casinha de pescadores meio desmoronada que tombava sobre a falésia, logo ali à borda do mar bravio da Ericeira.
A casa do lado já desabara há alguns anos, graças ao abandono e à fragilidade da construção. Do outro lado, um hostel remodelara uma mansão de família, mais antiga e de melhor porte. Ficava logo ali, mas até parecia que o mar, por respeito, pedia às águas que amansassem na sua borda. A sua casa, porém, de tão tosca que era, teria certamente o mesmo destino da do vizinho pobre... a terra que sustenta o mar levaria o resto do quintal, a seguir talvez um quarto, depois outro, a seguir a alma ... aquela que tinha um corpo lá dentro: o seu... por acaso.
Pouco lhe importava o destino longínquo desse seu corpo, tal mal tratado. O que a trazia em transe era a alma, já de si amachucada. O corpo, esse como ia dentro, levaria melhor destino - sempre tinha um invólucro de proteção. Para quem estava de fora, a alma era invisivel e, por isso, todos pensavam que ela era apenas um corpo risonho, feliz, bonito até, saudável e sorridente... sempre sorridente... até sedutor. Não percebiam que aquilo que viam era apenas uma pequena parte do que ela tinha, um bocadinho semi-encoberto por algo superior, muito mais largo, mas invisível - o espírito de todas as coisas e de si mesma.
Se pudesse pesar o valor desses bens, saberia quão infinitamente pouco peso tinha esse corpo, se comparado com tudo o resto de que dispunha.
Pressentia que o pior estava para vir e que aquele mar, que se estendia à frente da sua janela desconjuntada, em dias de tempestade, poderia fazer estragos ao seu bem mais precioso - o seu Eu.
No entanto, sorria porque acreditava que as intempéries marítimas só destroem as almas, salvando os corpos que vão dentro delas. O mar preserva os corpos que engole, pode é dar-lhes outras formas . Estava em crer que, mais cedo ou mais tarde, iria lá parar - àquele belo mar de jagozes, imenso, bem à medida das suas ambições.
A alma iria para o fundo do mar ou tavez até se volatilizasse num dia de nevoeiro e subisse ao céu. Perder-se-ia na imensidão do nada.
O corpo-matéria, esse, permaneceria para sempre no Universo, nas suas mais maravilhosas formas de vida: um peixe ou uma pedra, uma alga, um grão de areia, transmutado em vulcão ou em rosa.
Lídia mergulharia no mar, isso era certo, e perder-se-ia à força de um empurrão brutal, estava em crer - como é que isso aconteceria é que era difícil de prever em detalhe. Tudo dependeria da forma e do truque de marinharia que viesse a ser usado - seria obra do acaso? ou de algum marinheiro que lhe coubesse em sorte e a levasse para o mar? Talvez de alguém que - obedecendo ao gosto dos homens e das mulheres ou à determinação divina - a mandasse borda fora.
Estava certa de que assim seria - o assassínio é tão certo quanto a morte, porque ambos são a mesma coisa.
Se alguém morre é porque alguém a matou, quer seja outro ser humano desalmado, quer seja uma batéria, um vírus ou um anjo.
O seu assassino (ou assassina) andaria por perto, talvez à espera que a janela desconjuntada desmaiasse de carruncho ou que a parede da casa velha cedesse perante a força do vento, daquele vento forte que tudo arrasta, incluindo bicicletas e panelas. Ela iria ser engolida por uma onda em forma de um olho turco, cor de mar... tudo azul, lindo e candidamente inofensivo... numa paz e de uma beleza de bilhete postal.
O mar não a enganava, é uma ilusão, apesar da paz que nos dá. O mar, em especial aquele ali, era de um perigo pressentido Se baixasse os braços, saberia que seria por ele levada para longe...
Antes porém, gostaria de escrever uma carta, para que ficasse claro que o mergulho no mar era uma morte forçada pela erosão, pelo desgaste de uma casa podre em desequilibrio à beira da falésia. E que bastaria um empurrão leve de uma bruxa vestida de anjo para que o abismo se abrisse à sua alma, a tal que tinha um corpo lá dentro. O corpo seria salvo... a alma ficaria perdida para sempre, flutuando qual fantasma por sobre as noites dos assassinos jagozes e de todos aqueles que a viram voar sem norte e sem paz e não lhe deram a mão.
De todos aqueles aprendizes de assassino que a ajudaram a dar um passo mais a caminho do abismo. Porque uma coisa é certa, neste mundo não há lugar para todos... é um salve-se quem puder, tempestades e naufrágios não têm regras... é preciso matar alguns para dar de comer a outros.
Iria escrever uma carta dirigida a todos, porque o assassino não sabe ler e não gosta de cartas. Não gosta de cartas, nem de assassínios disfarçados de suicídio na falésia, nem de sentimentos mórbidos, nem de mortes radicais, nem de heroísmos gratuitos, nem de nada que fuja da norma da normalidade ou da paz pacifica. Só gosta de paz e de concórdia (discurso tipo miss universo) e de amor descartável (tipo lenço de papel, chora e deita fora!).
Por isso, ela continuava à janela da casa em ruínas de risco eminente, tal como era eminente o processo de queda.
Há dois dias que não vê barco na costa, viu ao longe uma sombra de traineira que se desviava ligeira do seu horizonte e levava a bordo uma tágide de branco vestida, carregava flores e douradas, pescadas noutras praias, destinadas a panela alheia.
Da sua janela, nesta falésia cada vez mais sofrida de erosões e de ilusões, Lídia sabe que cairá no mar e pensa: o meu corpo será útil (aquele que levo comigo quando a alma naufragar) será para os peixinhos... e depois será petisco de amantes felizes, ou regalo de uma família com crianças que não gostam de peixe, ou sustento de pescadores em extinção...
Que seja, podem levar e comer tudo, excepto a carta que ninguém lê e a alma inquieta que voará para mais infinito...
A carta ficará escrita, escrita para ninguém ler... porque depois de mim, não sobrará quem a leia.
As pessoas que na terra ainda sabem ler cartas de amor, estarão tão atarefadas nas suas vidas e nos seus amores, que não vão ligar a amores fanados e muito menos àqueles que destruíram.
São muito irrequietos e, por vezes, precisam de ir à janela do sótão para respirar... sobretudo, nos dias em que não podem sair e ir passear.
E é nessa janela, a absorver o sol ou o nevoeiro de cada dia de solidão, que eu escrevo. Como se falasse baixinho para só eu ouvir: penso como é bom gozar o momento, o presente, a esperança de um futuro beijo, a certeza de um futuro desgosto, porque quem tem uma alma sensível (além de corpo e razão) sofre destas coisas.
Sofrer é sentir - coisas boas ou más - é viver ! Pela bola ou pelos amores, sofre-se porque se está vivo, não acomodado... porque se tem gosto em celebrar sentimentos e emoções.
Hoje estou à janela do sotão, só para dizer que gosto de gostar de alguém!
Amanhã talvez diga outras coisas... não importa, o que vale é o instante.
E neste instante, enches-se-me meu coração de alegria e de saudade boa.
O instante, o momento presente e o amor é tudo o que importa para os mortais como nós!
Pois o mar continuará ali - azul ou cinzento, belo ou bravio, enorme... engolindo todos corpos que a morte assassina lhe irá oferecendo. As almas, essas, as boas e as más hão-de sumir-se no nada - não acredito no juízo final.
O juízo será terreno - um tribunal ou a consciência de cada um ditará quem foi bom ou quem fez do seu semelhante um trapo ou um morto.
Quer as boas almas quer a gente malvada terá toda o mesmo destino - os seus corpos virarão matéria, só a alma e o amor vivido se perdem. A matéria transforma-se, fica na natureza.
É matéria. É tudo tralha! Tralha e mais tralha...arremessada ao chão para que alguém (ou seja, o inimigo a abater), se estatele e desapareça. Por isso, de nada vale ligar demasiado a bens materiais inutéis, nem aos sinais de riqueza ou de ódio - de nada valem casas ou sapatos, lingerie ou escovas de cabelo, automóveis ou bicicletas, caixas ou panelas, livros ou quadros, amuletos ou benzeduras ocas. Pequenas e irritantes tropelias de quem não sabe ser grande e tenta matar "l'air du temps"... que sendo passageiro é imortal enquanto dura. |
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