sexta-feira, 29 de março de 2019

Radical


Resultado de imagem para flor e precipicio



“O amor é uma flor delicada, mas é preciso ter coragem de ir colhê-la à beira de um precipício”

Stendhal 







E assim, de repente, é preciso escrever. 
Porque sim. Porque as palavras não cabem cá dentro e armazenadas em demasia, explodem!

Existem muitas palavras, bem sei. Conheço-as, de andarem por aí, desarrumadas e à procura quem lhes dê alguma ordem. Palavras que - apesar de serem construídas com poucas letras (só há 23.. mas rendem imenso... ), nem sempre se conseguem juntar, a modos que façam sentido.

É mais fácil juntar letras que façam palavras de jeito, do que juntar palavras que resultem em frases com nexo.
E mais dificil ainda, é pegar numa frase de correta construção e conseguir que o significado que transporta seja a do sentimento que lhes queremos dar.

Resumindo, o que importa (mas é coisa de deuses ou de poetas) é construir emoções fora de nós, usando as letras, as palavras e as frases para lhes dar corpo.

O pior é quando elas - as frases carregadoras de sentimentos - saltam de dentro de nós mesmos, sem querermos. Têm vida própria e vão por aí à solta... para o papel ou para a net.
E depois não há nada a fazer. É deixá-las ir...
A irrequietude das palavras é uma coisa esquisita, incontrolável, maluca...

Grave é quando, nesse desatino de se construírem a si mesmas e sairem por aí numa senda de liberdade disparatada, as palavras dão a entender coisas que não é suposto.
A interpretação fica a cargo de quem as colheu, algures perdidas e transtornadas, sem saberem do que falam...

Sibilinas as frases das profetisas, insondáveis os poetas dificeis e as almas atribuladas...
Tanto para dizer que fica entupido no canal que liga a alma à rua.



O caminho entre mim e o outro é por vezes um buraco, um abismo... e uma confusão. 

Se é preciso ir ao precipicio colher a flor do amor... então o mais certo é não ir!

Mas às vezes, a vontade de ser heroína da minha propria história, de arriscar o mergulho no abismo, é forte. 

Ás vezes, não sempre... às vezes e em tempos que já lá vão . A idade afasta-nos dos desportos radicais, dos abismos e das coisas complexas... Felizmente!

E também nos tiram a capacidade de traduzir sentimentos em frases com nexo. Tem dias, claro!


Por isso na falta de inspiração literária, nos dias em que as emoções estão à borda de saltar, recorremos à verve  alheia, usamos as palavras dos outros, roubamos algo parecido com aquilo que queremos dizer e não sabemos como: as citações! 

Útil muleta para quem anda perdido, mergulhado nas suas palavras caóticas, nos seus pensamentos à deriva e que, por isso, precisa de ajuda.

Ajuda da literatura e da poesia. Ajuda da clarividência de quem, a seu tempo, já soube orientar o caudal dessa corrente desordenada de sentimentos que teima em não dar em discurso, mas que precisa urgentemente de sair... para apanhar sol.





terça-feira, 26 de março de 2019

Viajar é fugir?!



"Quero tudo novo de novo. Quero não sentir medo. Quero me entregar mais, me jogar mais, amar mais.

Viajar até cansar. Quero sair pelo mundo. Quero fins de semana de praia. Aproveitar os amigos e abraçá-los mais. Quero ver mais filmes e comer mais pipoca, ler mais. Sair mais. Quero um trabalho novo. Quero não me atrasar tanto, nem me preocupar tanto. Quero morar sozinha, quero ter momentos de paz. Quero dançar mais. Comer mais brigadeiro de panela, acordar mais cedo e economizar mais. Sorrir mais, chorar menos e ajudar mais. Pensar mais e pensar menos. Andar mais de bicicleta. Ir mais vezes ao parque. Quero ser feliz, quero sossego, quero outra tatuagem. Quero me olhar mais. Cortar mais os cabelos. Tomar mais sol e mais banho de chuva. Preciso me concentrar mais, delirar mais.
Não quero esperar mais, quero fazer mais, suar mais, cantar mais e mais. Quero conhecer mais pessoas. Quero olhar para frente e só o necessário para trás. Quero olhar nos olhos do que fez sofrer e sorrir e abraçar, sem mágoa. Quero pedir menos desculpas, sentir menos culpa. Quero mais chão, pouco vão e mais bolinhas de sabão. Quero aceitar menos, indagar mais, ousar mais. Experimentar mais. Quero menos “mas”. Quero não sentir tanta saudade. Quero mais e tudo o mais"

(Autor desconhecido)

Quero também partir de novo, para algo novo, que me espera ali talvez num qualquer fim de semana de viagem para um sítio que não sei onde fica, mas para onde vou ... pela simples razão de que tenho de partir! 
Viajar é isto: uma compulsão interior para partir ... ir em busca de si, num local diferente, nem que seja pela música de embalar que soa no compasso ritmado de um comboio, rolando nos carris sobre os campo, apagando flores silvestres e decepando árvores na rapidez do nosso olhar e do seu passar. Rápido, correndo em frente ... fugindo e levando connosco a fuga em busca da alegria.
Porque é Primavera !

quinta-feira, 14 de março de 2019

Pandora


Fecha depressa essa caixa, Pandora. 
Fecha bem, não deixes fugir o que de melhor nos foi dado. 
Dela podem ter voado tristezas e tormentas, que nos atormentarão na velhice e na doença. Pode até o mundo acabar, mas fiquemos nós, Pandora. 
Fiquemos, regressemos ao fundo da caixa, onde reside a esperança e, talvez ao seu lado, o amor. Porque um é o par da outra, esse é fição a que só a esperança dá corpo.
Funda e secreta embalagem da esperança, talvez a caixa pareça escura e vazia...
Só nós sabemos que, lá dentro, bem secreto, algo não acabou. Que no seu fundo sombrio, se acolhe um pirilampo de luz. Preserva-o Pandora. 

É a luz que nos irá guiar até ao fim, mesmo que esse fim seja algo que um humano não entende, nunca entenderá...
Venham filósofos e poetas, venham escritores ou analfetos pensadores, venham todos aqueles que pertencem ao humano pensar, ou seja, todos nós. Venham com a sua ignorância e percebam que no fundo, no fundo mesmo está o que realmente importa - a luz da alegria percecionada, - a esperança.

Dia cinzento é quando está escuro por dentro! Dentro de nós haverá sol, enquanto a esperança for claridade e farol.

O prazer da espera é afinal a garantia de uma caixa bem selada, a reserva de luz que jaz ali, guardada à nossa espera. 
E podemos esperar e esperar... indefinidamente esperar... por um comboio ou por um afago, por uma palavra ou por uma presença, pela amizade e por um copo de vinho... E ser felizes, assim...

Não nos cortem a esperança, não abras a caixa, Pandora. Guarda bem o que lá houver. É para mim, eu sei.

quarta-feira, 6 de março de 2019

Espelho


Espelho

O Outro que sou eu mesma!


Era assim que Lília pensava, nos dias de maior lucidez, quando se olhava no espelho real de sua casa. Sim, porque havia o também o outro - o espelho virtual da sua vida.
Sentada na borda da banheira, vendo o rosto refletido na superfície à sua frente, brilhante de luz e numa confusão de imagens sobrepostas, ela via-se e entendia-se.

Miscelânea de tons e de brilhos, o espelho era o reflexo de um espaço claro e vibrante de azulejos e metais, com a sua pessoa toda inteira lá dentro. Era ela, ali exposta a nú, mesmo que estivesse vestida. Ou seria outra que ali estava, alguém por quem a curiosidade estimulava a descoberta?

Lília, frágil lírio à deriva dentro de si mesma, buscava no outro o reflexo do seu amor-próprio. 
Precisava de se ver ao espelho da comunidade em que vivia, da família, dos amigos, do “outro”… Só o outro era espelho suficiente para lhe realçar a beleza, para a fazer ser gente. 
Ela sózinha não era ninguém.

Precisava de aceitação, de reconhecimento, de ser amada, apreciada - fermento de valor para si mesma.

Toda a sua vida tinha sido uma peça de teatro, encenada com labor, com um guião roubado algures, criação de outrém, cópia fantasista da realidade. Ou antes, várias peças, porque a vida dera muitas voltas, muitos cenários, diferentes atores, países e regiões... Em todas, ela fizera por ser a atriz principal. Recolhia os aplausos, sonhava-se adorada, sempre linda (apesar de não o ser), sempre nobre, alta, magra, elegante, altaneira, amada, voluntariosa, aventureira, corajosa...
Sobretudo, era isso que ela via no espelho - uma mulher corajosa que gostava de experimentar o amor, as emoções, o prazer de ser ela e de se ver nesse espelho que lhe confirmava isso mesmo, não fosse haver dúvidas...

As inseguranças tapava-as com maquilhagem, as rugas eram certamente fruto do embaciamento do vidro, do vapor de água no espelho, porque ela se via glamourosa, plumas e farfalho de diva... deslisando sorridente no palco, ouvindo um clamor de ohs e de ahs... por ser uma mulher amada, sonhada e estrelada! Estrelada vinha de estrela, de cinema ou do céu, pouco importa... importa mesmo é que lhe vejam o brilho e lhe afaguem o ego. E lhe afaguem o corpo, também - longo e seco, envolto na nuvem da fantasia... um pobre corpo carente de mimo... logo ela que tanto mimo tinha para dar. Sem crianças, sobravam os animais...

Retirava prazer de tudo o que construía e que servia para lhe dizer, baixinho, que estava viva e era boa. O prazer vinha do mundo, do exterior... tanto podia ser uma música, como um prato gourmet... como um beijo... como um acontecimento social, onde ela era bela e admirada...
O prazer vinha da partilha, da sua vida exposta à "cobiça" alheia, ao deslumbre das amigas, das gentes várias que circulavam por aí. 

Ah (redondo!)... amigas de boca aberta de inveja... Oh (mais redondo, ainda!) que espanto esta Lília! Que máximo, sortuda, inteligente... capaz de desencatar um princípe perfeito, só pode...
Magríssima, para inveja das balzaquianas celulíticas. Prendadissima, com esmerado dote culinário, para espanto das estafadas mães de famílias; essas que já não têm jeito nem carinho no preparo de mais uma refeição pr'á prole ou pr'ós amados...
Era mesmo preciso deslumbrar... 

Aquilo que mais lhe aquecia a alma não era um beijo, bem gostado, era o facto de esse beijo ser seu mas também ser dos outros... daqueles que assistiam, mais de longe, ao seu recato amoroso... muito pouco recatado...

Aquilo que mais lhe aquecia as entranhas era... nada! 
Só a alma ardia, quando o corpo se abria generosamente ao conforto do macho, à sonhada segurança viril que o príncipe semeava bem fundo dentro de si. 

Sem espelho! Essa sim, era real, semente sentida, tremente e quente!
Não interessa se a terra tremeu ou se o seu corpo em transe se elevou do chão, porque o seu chão, mesmo frio, está ali aconchegado entre as pernas quentes e seguras de quem se quer bem, na ausência do desejo. De quem se quer, sem o ardor da carne, apenas com a volúpia da espitualidade que enche o coração, na fantasia do espelho que carrega um futuro.

Havia uma dislexia constante entre o íntimo e o partilhado, entre o público e o privado. Como se aquele fosse condição necessária para que o outro existisse.
Sinal de fragilidade? De insegurança? De uma estima própria que alardeava muitas vezes, para que nela pudessem acreditar ... com muita força!
Porque força era o que mais precisava... parecia que era exímia a criar força onde ela não existia.
A força cria-se do nada... dizia.
A força vem de dentro... a força vem dos amigos, coisa que ela alimentava, plantava com o desvelo de quem cria rosas.
Admiração era o que mais precisava e amor para mostrar, amor para se sentir segura...

O amor não era bem uma coisa que servisse para consumir, era mais para guardar, para pendurar num sítio visível, para mostrar.

Ai, se os lençóis lavados tivessem cheiro! Se cheirassem a amor, se limpos, suaves e transparentes, fizessem transparecer a intimidade vivida, fossem prova de afeto, fossem sinal de segurança e de admiração...

Se fossem, se fossem, se provassem... se todos vissem... aí seria verdade, escrita sem espelho!
Se os lençóis se pendurassem numa corda do facebook e todos vissem que a clareza alva do algodão era a intimidade acontecida e sonhada. Tão brancos que não se escreve nada que se leia... tão neutramente brancos que nem marca, nem cheiro, nem futuro guardam.
E se nos gestos se perscutam intimidades, é também pelo significado do gesto que se desmonta o seu contrário. 

Tudo o que se desmancha, também mancha.... tudo o que se destroi, se constroi. Resta a esperança, resta que o espelho nos diga a verdade e a mentira que se esconde nos gestos que podem ser ou não ser...


Lília sabia que o mais importante não era aquilo que teimosamente insistia em pendurar na corda da roupa, sabia que acima de tudo está a intimidade. Que intimidade é segredo  só a dois desvendada... E Lília sabia que essa lhe fugia... talvez...




   “Dormir com alguém é a intimidade maior. Não é fazer amor. Dormir, isso é que é íntimo. Um  homem dorme nos braços de uma mulher e a sua alma se transfere de vez. Nunca mais ele encontra  as suas interioridades”
Mia Couto

  “Nunca, mas nunca mesmo, me senti tão amado (…) Sentir arrumar-me a roupa de dormir, para  ficar aconchegado, sentir toda a noite os teus braços à minha volta …”

(desconhecido)