segunda-feira, 10 de setembro de 2018

A Bruxa



É tão injusto ser igualada àquela bruxa, quanto é certo de que eu também o sou.

Mas sou diferente! Sou uma bruxinha boa, honesta q.b.
Devo confessar que só não sou uma bruxa pior, por falta de conhecimentos e de recursos. Resumindo, sou incompetente, analfabeta, não domino os manuais de bruxedos, nem conheço receitas de venenos, amarrações, vudus, maus-olhados e outras mezinhas para tentar os meus propósitos. 
Quanto ao uso de métodos mais modernos de violação de correspondência ou de intimidade, estão completamente fora dos meus princípios. Sou incapaz de abrir cartas ou mails de outrém ou de escutar telefonemas atrás das portas. Não por falta de oportunidades, mas por pudor. A minha curiosidade - que é bastante - só actua no domínio da informação que é pública. Não violo fontes informativas, mas se puder usufruir daquilo que se publica por aí... 
Sou curiosa, mas não intrusiva!
No entanto, mesmo neste domínio, por uma questão de defesa pessoal, não leio as publicações que sei que me podem magoar.

A chantagem - método preferido por políticos, gestores e manipuladores de vária ordem - é também o que a bruxa velha mais usa (usou) e ela é exímia nessa arte.

Apesar da minha falta de jeito, tenho propósitos. Ao menos isso, sei o que quero!
Quanto à velha, quero que arda na fogueira que ateou... que fique longe e em cinzas e deixe o mundo correr... para isso bastaria (se fosse fácil) pôr um pouco de antídoto de veneno na caneta!

Em relação ao resto, o que gostaria era neutralizar os feitiços que as bruxas circundantes andam a deixar por aí. Ou talvez não andem, mas eu imagino. 
Tenho objetivos, o problema é que não faço nenhuma maldade para os atingir, não deixo feitiços, nem faço macumbas, não lhes prego rasteiras, nem lanço calúnias ou falsas informações, não ameaço, nem interfiro com a intimidade alheia. 
Se mentalmente lhes rogo pragas, sei que isso de nada vale...
Na prática, elas andam à solta e fazem o que querem... resta-me sofrer em silêncio e ter um medo inconsciente do que possa  vir a acontecer. Piso um terreno minado e não sei onde está a mina para poder contornar o perigo.

Conheço bem o tipo de minas que estão enterradas, só não sei onde e quando podem disparar. As marcas e modelos de minas mais assustadoras são uma chave, uma panela e uma mesa para jantar.
E a mina "amigas e conhecidos" também é terrível, quando bem usada, tal como a mina "já agora só mais um"!
As minas-cama estão bem identificadas, fez-se o reconhecimento do terreno e é fácil saber onde pisar. Não explodem!
O mesmo se passa com a mina-passeio. Também não me assusta. Em regra, estas minas estão colocadas longe do terreno habitual e não incomodam, desde que se vislumbrem ao largo.
Ainda sobram as minas de explosão ao retardador, que podem ficar latentes muitos anos e só acender a faísca mais tarde - são a mina-palheta social, a mina-vestidos, a mina-princesa boazona e, lá mais para diante, a mina-enfermeira.

A mina-chantagem psicológica funciona para qualquer uma e é a pior de todas, tipo bomba atómica, esperemos que não seja acionada. Porque quando resulta, resulta mesmo!

O resto não interessa nada - pequenas queimaduras resultantes da detonação de artefactos ligeiros, como sapatos e chapéus, escovas e gracinhas azuis ou até alterações ao algoritmo. Sendo que estas últimas só provocam algum dano se forem feitas com objetivos ilegitimos...






quinta-feira, 6 de setembro de 2018

O Inho


Era uma vez um pequeno reguila que tinha, por seu, o nome do seu pai, a que acrescentaram um “inho” para o distinguir e lhe dar um ar de graça.
Pois o Inho até era bem engraçado, sorridente, maroto e de certa forma bastante independente. Era um querido! Apesar de atrevido quando a ocasião se animava, era muito carinhoso e carente de mimos, gostava de aconchego, pequenos toques, boas massagens, muita pele, calor e beijos. Era um miúdo de mimos, de rotinas calmas até lhe subir a vontade de brincar fora de casa. Quando estava na rua, era bem comportado, divertido mas sério, competente nos jogos mais comuns. Rapaz pouco dado a subir às árvores, não era de aventuras arriscadas e o circo não lhe dizia muito. Preferia jogar à bola no terreiro de casa. Nada de experimentar novos domínios, como brincar numa praia deserta, no alto de uma montanha, na relva selvagem de uma paisagem diferente... passear por ruínas arqueológicas ou procurar menhires. Tudo isto era trocado pelo conforto d'alcova, talvez por sestas de balancé, um pouco mais desconfortáveis mas embaladoras de brincadeiras, gostava de lugares fofos e protegidos. Sempre era mais calmo do que aventurar-se em desnorteios no automóvel do pai, como via outros fazer.
O miúdo crescia, quando se animava e o pai sorria, orgulhoso e feliz.
Dizia que o Inho tinha vontade própria e ele não tinha mão nele. Dizia-o com graça, sentindo um secreto prazer pela irresponsabilidade que tal constatação lhe trazia. Ele era ele, o Inho um estranho ser independente, cujo desgoverno lhe fugia ao controlo mas lhe dava um gozo imenso. Que não lhe exigissem desculpas, porque ele, o pai, não tinha nada com isso. 
O tipo era parvo, não pensava, era insensível, tinha manias? ... Pois, paciência. Temos pena! - dizia ele, sorrindo. 
Quem quer gosta, quem não gosta que se amanhe e miúdos destes, mais ou menos parvos, é o que mais há por aí. 
Quando o Inho fazia das suas, com ou sem o agrado dos parceiros de jogos, o pai divertia-se a ver... como se tudo lhe passasse ao largo... e relaxava.
Relaxava, com alegria e orgulho por ver o seu Inho brincando ao relento, em juventude e vigor, fora do seu controle mas dando-lhe tanto prazer. Relaxava, fechava os olhos e pensava - onde será que este miúdo me leva, é giro, saudável...
Vai por aí, rolando, saltando, cada vez mais longe e atrevido, subindo, subindo bem alto e crescendo um pouco torto, meio empenado. Sim, agora que pensava nisso, o miúdo sempre foi um pouco curvado para a esquerda (ou seria para a direita?), acidentes do crescimento, perfeitinho mas diferente dos outros rapazes. Engraçado que quando corria, fazia desporto e subia por montes e vales, a curvatura não se notava, era escorreito e sádio. 
A beleza está nos pequenos defeitos, lá diria Agustina. A beleza pura queima e repele, é preciso um toque de tragédia e de diferença para que se note o milagre da perfeição (Ema cocheava... o Inho entortava ligeiramente nas subidas, para chegar em esplendor ao topo).
Havia uma certa dose de irresponsabilidade na forma como o pai olhava para estas atitudes desbragadas e marotas do pequeno. No fundo, o pai sabia de tudo, mesmo de olhos fechados, e saboreava a glória do seu rebento, perdoando eventuais malandrices, desvios da norma ou simples desaforo na brincadeira e no respeito pelos amigos em jogo. Deixava-o brincar à vontade, sabendo que por vezes aquilo não era muito certo, mas o pequeno também tinha direito a divertir-se e era um ser independente. Afinal não era nada com ele, achava muito bem que o rapaz gozasse a vida, tinha orgulho naquilo que o seu Inho fazia, mesmo sem a sua autorização e sem a sua companhia, recusando deliberadamente o envolvimento e a parceria que seriam naturais entre dois seres tão próximos. 
O afastamento emocional entre os dois, sobretudo nas fases críticas de crescimento ou de maior perturbação, era uma forma de proteção pessoal.  Ele tentava manter a fria independência dos sentidos e o pequeno poderia vir a ser uma fonte mais quente de contaminação sentimental. Não se importava nada que o Inho fosse seduzido, desencaminhado por outros de fora. Para ele, em princípio, não havia más companhias confiava que o Inho sabia fazer as suas escolhas e, apesar de serem muitos os amigos de jogo e estarem sempre a mudar, ele se sairia bem. Importante era o rapaz não ficar em casa, aborrecido e parado. Ora se havia ocupação a dar-lhe, porque não fazer-lhe a vontade e deixar o Inho crescer, ir por aí na brincadeira até se cansar.
Afinal ele não tinha nada com isso, o Inho crescera e fugira ao seu controlo, tinha vontade própria e os amigos puxavam por ele... Deixá-lo ir e que se divertisse muito.
O pai não pensava que o diabo, por vezes, está à espreita e que um bom rapaz como o Inho corria alguns riscos, nessa fuga desenfreada na busca de crescer mais e mais depressa, correndo por aí e por ali, em brincadeiras inocentes é certo, sem grande riscos ou malabarisnos. Porque o Inho continuava calminho e conservador nas suas práticas desportivas, mas os seus amigos eram mais sabidos e gostavam de lhe pregar rasteiras.
Sabendo do gosto do miúdo pela alegria, pela companhia, pelos passeios em amizade, os outros abusavam. 
O diabo à espreita estendia a sua teia. O pai vislumbrava por vezes algo de suspeito, mas era pouco dado a matar a aranha, preferia limpar/esconder a teia, como quem mete o lixo debaixo do tapete para que as visitas não vejam. Era um pouco lerdo em cortar a origem do mal. Não acreditava em bruxas, nem no diabo, nem em esquemas que tentassem o seu Inho e o levassem à prisão. 
Deixa andar - dizia - o miúdo tem de se divertir e não seriam umas quantas mezinhas diabólicas disfarçadas de aroma de alfazema ou as chaves de uma gaiola dourada que o iriam assustar. O importante era não se deixar envolver na vida do Inho, este até se podia apaixonar, que isso é doença que não se pega a outrém. Os inhos são jovens e isso passa...
Era sabido que o Inho era mais romântico e apaixonado do que ele. Ele não era de se envolver sentimentalmente de forma muito séria, mantinha a distância fria necessária à sua independência. O Inho gostava mais das pequenas, do que ele alguma vez gostou de alguém. 

Até que um dia, o miúdo desapareceu, as flores que protegiam o seu sono murcharam e a chave perdida do palácio estontearam o pai, que nunca mais encontrou o seu pequeno. Acordou de um sono sem cheiro e numa cama sem luz e então percebeu que o seu miúdo estava preso, vítima de um crime não cometido, apenas refém da ingenuidade de quem brinca na rua sem cuidar das bruxas e acha que a vida é um jogo de futebol eternamente grátis. 
Talvez, nesse dia, o pai tenha percebido a falta de não ter mantido o coração e a cabeça junto do seu Inho. Porque cada um de nós é um todo, o equilíbrio interior fundamental vem de uma geometria feliz que liga o corpo ao espírito, os afetos às ações, as palavras aos pensamentos.
Acordou triste e num lugar escuro, preso a uma liberdade que não era a sua.
Porque não brincou ao seu lado, quando devia?Porque se perdeu o afeto? O amor começa em nós e nos nossos filhos, demasiado afastamento dá desligamento. O mundo é um lugar perigoso onde os laços se tornam nós, algumas amarrações são lixadas e a solidão espreita a velhice. 
Talvez por isso, o dito mais o seu inho devessem ter acautelado uma parceria mais íntima, uma amizade total: lúdica, feliz, mas coesa e próxima, cuidando do elo, porque ambos são partes de um mesmo todo ... 


Para que os laços não se transformem em nós demasiado apertados, para que não acordemos numa prisão que não escolhemos, para que não se percam os laços, os inhos, os amigos dos inhos e tudo aquilo por que vale a pena viver.

E perderam-se os nós e os laços...

E perdeu-se o inho, os cheiros, os doces, as palavras doces e amargas, as mil marcas de vida em comum, as chaves douradas, as portas e as casas, as camas das casas e as entradas do paraíso, as escovas de cabelo e de dentes, os chapéus e os sapatos, as viagens e a música, os amigos e os beijos, as declarações de amor (verdadeiro ou falso) e, ainda, o espelho de tudo isto na comunidade em redor... 
E o inho ficou triste e longe do seu pai. E o pai sem nada... sem nada porque se perdeu a parte pelo todo...

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Penumbra


E de repente, da luz se fez escuro. 
Os dias luminosos e quentes resvalaram para um espaço pairante de indefinição: sem cor, sem ar, sem nada de palpável ou de verdadeiro, que não é dia nem é noite, que não é Verão nem Inverno.
E assim, depois do esplendor, caí num espaço obscuro e amorfo, de penumbra, de vazio...
Um lugar que não interessa nada, que não serve para nada, onde não há sentimentos, emoções... ou vida "humana". Um lugar branco sujo, sem cor... sem alma, sem gente...

Este lugar de penumbra, a que chamariam de trabalho, hoje está longe de me lembrar atividade. Porque trabalho foi quase sempre algo de motivador e criativo, que nos torna "maiores", que nos enche os dias de luz, apesar das contrariedades que comporta, das responsabilidades, das decisções que é preciso tomar, das pessoas e seus defeitos que é preciso contornar. Apesar da guerra que é o trabalho, este é (ou era) um lugar colorido... a selva onde sobrevivi com vigor e algum jeito. Um lugar contraditório e animado, onde me podia sentir mais ou menos feliz, reconhecida ou esquecida, mal-querida ou apreciada, irritável, irritada mas também acarinhada, felicitada, peixe na água transparente ou até turva, lugar de conforto e de fuga pessoal. Mesmo quando trôpega, caminhava a direito e o trabalho raramente foi uma penumbra de sombra ou de indiferença.
Hoje é só névoa o que eu vejo! 
Talvez porque ainda não abri os olhos, ofuscada pela intensidade dos dias radiosos de sol que deixei para trás, não há muito.
Como é difícil, chocante, gritante notar a diferença entre o brilho solar que eu vivi e a penumbra que me entrou nos ossos mal cheguei. 
Não é escuro, nem vazio... é pior - é nada!
Irrevogavelmente nada, porque nada me prende aqui. Irrevogavelmente perdido este tempo e este espaço sem alma.
Habitado por zombies que nada me dizem, que não me amam, que não se deixam amar...
Lugar onde a noção de inutilidade é maior do que o mar e que está coberto por uma penumbra que limita o horizonte e não deixa ver o que realmente importa - as pessoas na sua roda de vida, de afectos, de sobrevivência, felizes porque não? Todos temos de tentar ser felizes enquanto por cá andarmos, saboreando com lágrimas ou sorrisos o que nos é dado em sorte - saúde, afectos, inteligência/clarividência e conforto - porque sabemos que tudo isto será sempre pouco e por pouco tempo. 
Por isso temos a "obrigação" de gozar bem, de beber tudo o que a vida nos dá, até à última gota, exatamente porque pode ser a última...
Resta-nos o sonho para fugir, por momentos, ao massacre da penumbra. Porque no sonho há futuro, há hipóteses teóricas, utópicas mas doces de voltar a ver o sol.
No sonho, cabe tudo aquilo que decidirmos ter, mesmo que nada tenhamos de real. No sonho se pode ancorar o ânimo para furar o nevoeiro e procurar outra aldeia para lá dos montes, outro país, quiça uma ilha para lá do mar, naquela franja pálida e nevoenta que separa o que sentimos agora, daquilo que nos espera lá mais à frente - um dia de sol ou uma noite de luar.
Se esse dia bom estiver longe, há que gozar o caminho, não parar nem ficar comoda e indolentemente quieta atrás do nevoeiro, à espera... 
O "prazer da espera", porque muito que doa ao Padre Tolentino que tão bem caracterizou este prazer, só é prazeiroso se houver outro alguém do lado de lá da penumbra, se houver quem nos espere com o mesmo prazer que o nosso, se houver alguém que nos entenda com o coração, mesmo que racionalmente nos chame de tonta, incompreensível, irracional ou louca.
E esse alguém - que também pode ser um bicho ou uma causa - é quem puxa por nós, nos resgata da penumbra e nos leva para o sol estonteante de uma planície em brasa, para um comboio ou avião pleno de promessas de aventura ou para uma noite de luar ou de estrelas que nos embale o amor.

Por favor, tirem-me daqui! Não quero morrer na penumbra, eu sou solar! Faço um esforço e abro bem os olhos para não adormecer nesta penumbra moribunda. Quero viver, nem que seja em time-sharing, por pouco que seja, mas com sol, com sol todos os dias,  nos dias de qualquer cor, nas noites de estrelas ou de luar, até quando chove e faz frio, quero sol dentro de mim... quero tudo menos o vazio embruxado da penumbra que desceu e resiste em partir. Vai horizonte vai e traz-me a alegria do que é vivo. Traz-me tudo menos o nada!