O Lençol
Houve um tempo de transição, como são todos os tempos
em que se mudam padrões de comportamento e de valores. Um tempo de transição
entre o antes e o depois, fiquemos pelo durante ... Um tempo que não faz muito
– talvez 30 ou 40 anos – mas que parece longe, quase cómico pela forma como
hoje olhamos a mudança.
A turma dos ginjas, sessentas para cima, reunia habitualmente à 4ª feira no café da esplanada do Jardim da Estrela, se fosse Verão, ou na primeira tasca da Calçada, a maior parte do ano. Portugal só é país de esplanadas o ano inteiro, para os turistas. Mas estes maduros já acusavam o frio, a humidade, a bronquite e demais argumentos para preferirem estar dentro de portas. Tinham sido militares, preparados para aguentar perigos e intempéries, supostamente sem sentir frio nem calor, sem ter queixas nem dores. Mas estavam cada vez mais esquecidos das regras do aguentar-firme, amolecidos pela idade ou talvez até mais pela ideia de conforto, porque realmente não eram velhos.
Todas as quartas havia histórias antigas para contar e
para rir, depois de esgotada a primeira meia hora de
“análise-da-conjuntura-política”. Ficava bem mostrarem-se a par da atualidade,
comentarem o último telejornal, mesa redonda ou artigo de opinião. Depressa se
fartavam… e vinham as histórias. Havia uma recorrente, que sempre acarretava
uma banhada de riso. Não se percebia porquê. Afinal era coisa simples que se
contava depressa e todos já a tinham ouvido muitas vezes. O que mantinha a
“juventude” da história, o que continuava a espicaçar a imaginação, disfarçada
de gozo e de galhofa, era que este regresso ao passado contado na terceira
pessoa trazia para cada um deles, individualmente, recordações mais íntimas e
pessoais.
O Apolinário era o personagem principal. Claro que o
Apolinário não fazia parte do grupo, vivia no Norte e raramente o viam, mas era
estimado como mais um de entre eles. O Apolinário tinha sido um camarada de
armas dos primeiros tempos de preparação militar, todos muitos novos como eram
no tempo em que os mancebos iam à guerra, dezoito, vinte anos, ainda em fase de
instrução – curta e intensa porque urgia partir.
Nesses tempos de camaradagem genuína, em que tudo se
partilhava, as vivências de cada um eram postas na mesma mesa em que se
dividiam os tremoços e se pousavam as cervejas. Á volta, contava-se o
fim-de-semana na terra, os êxitos masculinos nas betesgas da cidade, sabe-se lá
se verdadeiros ou inventados, aventuras várias, pouco vividas e originais
porque as suas vidas eram curtas e na maior parte dos casos pouco interessantes.
Se é que existe o conceito de vida pouco interessante. Mesmo as vidas em que o
traço mais saliente é a falta de aventura, a ingenuidade, a monotonia ou a
parolice podem ser motivo de interesse, depende da perspetiva de quem vê.
Como em todos os grupos, havia de tudo: uns mais
vividos, atrevidos e armados em progressistas; outros mais calmos e sem
alardear aventuras; outros sinceramente bem-comportados, conscientes de que o
seu papel salvador passava por cumprir as tradições.
Os mais conservadores eram, em regra, mais propensos a
ser objeto de gozo. Os outros, mesmo que não fossem muito espevitados,
mantinham uma certa reserva e inteligentemente mostravam algum modernismo,
abertura de espírito e liberalismo, sobretudo em matérias sexuais, tão fortes e
apetecidas naquela idade e naquela época de transição e mudança.
Ora o nosso Apolinário era verdadeira e convictamente um rapaz sério, nunca pensou que os seus relatos pudessem ser vistos como bacocos pelos seus camaradas. Um dia em que, descontraidamente, contava o seu fim-de-semana na terra, o Apolinário descaiu-se com esta:
- Estive com a Conceição, vocês sabem a minha
namorada, em casa dela, estava de cama, deitei-me ao seu lado e estivemos ver
televisão. Porreiro, o Zip-Zip! Viram o programa? Viram àquela rábula do
Solnado? O que nos rimos.
De imediato, num burburinho coletivo, a malta
exclamou:
- Na cama? Com a Conceição? Ah, ganda Apolinário, isso
promete! Conta, conta…
Muito calmo, ligeiramente ruborizado, mas sem perder a
compostura, o Apolinário esclareceu:
- Nada disso que possam estar a pensar, não há mais
nada a contar, foi tudo com muito respeito …
- Então mas não estavam os dois na cama? E estavam
sós? – atacaram os compinchas do grupo, secretamente lambendo os beiços, pelo
antecipado picante do acontecimento.
- Sim, claro, estávamos só nós os dois – começa o
Apolinário a gaguejar, agora já menos sério, até um pouco atrapalhado.
Apercebia-se que se tinha metido por um caminho por onde os outros não o
deixariam voltar incólume.
- Hum…isso cheira-me a muito avanço, ó Apolinário! A
coisa aqueceu e tu não queres é contar. Como foi estar com ela? Os dois na
cama…hem? – martelava outro mais atrevido.
Sem mais demora, o Apolinário recuperando da ligeira
perturbação, apressa-se a defender o seu discurso. Havia que desfazer
mal-entendidos, não era nada disso que ele queria dizer, havia que proteger a
virgindade sagrada daquela malvadez masculina. Estes camaradas pareciam ter
mentes conspurcadas pela bazófia macha. Ele estava feliz e orgulhoso por ter
visto a Conceição, ao fim de 15 dias sem ir à terra, feliz por partilhar com
eles uma noite inocente e bem passada e a coisa fugiu-lhe de controlo…estava a
ser mal interpretado. Estavam a tentar reorientar-lhe a conversa, dando-lhe um
rumo que não era verdadeiro, uma vivência que não era a sua. E vai daí,
esclarece:
- Pois…estávamos na cama, mas havia um lençol a
separar-nos!
A risota foi ainda maior: Um lençol! – gritam em uníssono os camaradas.
Afinal havia um lençol, nada mais prosaico,
marcadamente pouco erótico, complicativo e desnecessário naquele enredo …
Quando a coisa estava a aquecer, vem o Apolinário e
mete um lençol … no discurso e no meio dos dois. Um lençol!
Até hoje não se sabe bem qual a disposição do lençol naquela cama, nem como os atores se posicionavam face ao mesmo. O certo é que o lençol veio suspender a corrente daquela história que se avizinhava prometedora, veio coartar a imaginação dos presentes e afirmar a pureza dos intervenientes camais.
A realidade é que um lençol faz toda a diferença,
sobretudo se funcionar como fronteira intransponível. No entanto, nada mais
frágil que um lençol como fronteira pelo decoro. Um lençol pode ser amachucado,
enrolado, despedido dali, pode até voar … ou os dois voarem para debaixo dele.
Tanto que pode acontecer a um lençol! Tão pouco aconteceu com o lençol da
Conceição, firmemente aconchegado pelo Apolinário, sem se aconchegar a ela.
Supõe-se que ela estaria dentro e ele fora … do
lençol. Pouco importa! O que os camaradas retiveram e guardaram toda a vida nas
suas memórias, a ponto de o contarem e recontarem inúmeras vezes, foi que havia
um lençol. Um lençol que protegia o acesso do Apolinário a prazeres maiores, um
lençol que não protegia nada na sua fragilidade real mas que projetara na
cabeça do Apolinário um muro de defesa dos seus valores, que era quanto bastava
para que nada acontecesse de inapropriado.
Ora, foi esta noção de inapropriado que mais ficou a martelar no pensamento dos outros. Muitos já tinham ultrapassado a barreira do inapropriado, outros ainda não, alguns nunca o fariam. Poucos, contudo, teriam tido a coragem de assumir publicamente quão importante é um lençol na pureza dos princípios e nas relações com as suas namoradas, da maneira inocente e direta como fez o Apolinário.
Houve um tempo de transição, como em todos os tempos. Houve um tempo, há muito tempo, em que uns passavam a barreira do lençol e outros não: aqueles que se mantiveram valorosamente firmes nos seus princípios e acreditaram num lençol como eficaz protetor da castidade.
Há um tempo presente, em que o lençol é motivo de chacota para os mais velhos e de incompreensão para os mais novos, estes que hoje só conhecem a vida sem lençol … com outros comportamentos e valores, mas sem lençol.
Sem comentários:
Enviar um comentário