terça-feira, 25 de abril de 2023

Cravos

 

Cravos derrubados pelo vento dos tempos.

Cravos que outrora foram erguidos em nome da liberdade.

Que foram amados, saboreados em paz… num início idílico, que não volta mais.

Tal com os teus beijos que acabaram caídos no meu chão… desperdício para quem ama demais.

Fica a cor vermelha da tua face e o tom rosado dos lábios queridos, para lembrar o tempo dos cravos erguidos.

Fica a liberdade maior, a esperança da amizade que perdura e a certeza de uma imensa ternura.

Amigos e 25 de abril, sempre!

domingo, 9 de abril de 2023

A Gaiola

 


Lembro-me que havia sobre o parapeito da varanda, da casa branca debruado a azul cobalto, junto ao mar, uma gaiola de ferro forjado, já a pedir pintura nova.

A porta da gaiola estava aberta. Lá fora despontava mais um dia de Primavera suave e solarengo, daqueles dias em que apetece voar. Em que a felicidade sonha ser uma nuvem branca, que flutua sobre o mar até se afastar no horizonte . Em que a tristeza também sonha, mas acorda e empalidece quando percebe que lhe é difícil acompanhar o ritmo da nuvem da felicidade. 

Há uma brisa contrária que lhe dificulta o caminho. Não obstante, tenta manter o ritmo e fazer companhia à felicidade - porque alegrias e tristezas vivem juntas há muito e fazem falta ao equilíbrio do universo, basta aceitá-las como normais e embrulhá-las em afecto. 

Não foi por falta de empenho ou por incompetência que a tristeza ficou para trás: ela sabe voar, nadar e amar com a mesma força e vontade de que dispõe a alegre nuvemzinha voadora. E quer muito que o vento mude e voltar a ser feliz, esforçando-se por correr no lado amigo da nuvem  branca. Levar-lhe luz e paz. Sorrisos, muitos sorrisos … muito afecto e bondade que evitem a negrura das chuvas possíveis… 

Sim, porque haverá sempre dias de Inverno. O que importa é proteger, com humanidade, todos seres e aconchegar as tristezas. 
A Primavera é assim mesmo - imprevisível, com sol e aguaceiros, calor e resfriados, desastres e alegrias …


Voltei a pensar na gaiola e lembrei-me da história da Bela, para quem o amor era uma gaiola de porta sempre aberta, recordei o seu lema de que devemos ser pássaros livres: se a porta está aberta, quem gosta fica. E quem não está bem, parte, vai embora, voa com a liberdade transparente e o desígnio inalienável de definir o seu destino. 

O tempo  aquecia, o Verão viria em breve e com ele a esperança de que na gaiola os inquilinos-pássaros saltassem do seu ninho de palha e voassem. Voassem para onde lhes desse na gana, em círculo ou a direito, sobre a terra ou à borda do mar, e pousassem para descansar nas migalhas das esplanadas ou nos telhados do casario. São pássaros e livres. 

Nessa altura, ensonada, eu estava um pouco longe da gaiola, acabava de acordar, a neblina matinal ainda me turvava o olhar e o pensamento esse enrolava-se nas caraminholas do costume, o que acarreta um juízo pouco racional, algo nebuloso sobre a realidade dita normal. Quando olho mais de perto para a gaiola, meio sonâmbula, vejo  dois montinhos de palha - um ligeiramente  corado em tons rosa, talvez folhas de alguma planta de textura rosada tenham sido colhidas amorosamente pelo bico da pássara para seu ninho. Estranhamente, ao lado e separado por alguns centímetros de distância havia outro monte de palhinhas, estas levemente coloridas de azul, folhas de cor pouco comum na natureza. Mas enfim, há tanta estranheza por ai… intrigou-me, aguçou-me a curiosidade saber que o casalito de pardais não se aninhava juntinho numa qualquer palhunça amarelada ou castanha. 
E pensei : estás a ser muito bota de elástico. Pois se ele há homens de saias e mulheres de cabelo verde, por aí… e já ninguém liga! Porque não podem os pássaros ter camitas separadas e coloridas?!
Qual a função? De que lado poêm os ovos a chocar ? Enfim, isso deve ser indiferente…
Mas o que me intrigou mesmo foi a cor azul da palha … o rosa encontra-se por aí… mas aquele azul-cueca donde viria? Quase-quase o tom do Viagra, numa mistura de azul ultramarino com branco. No pressuposto de que o pardal não roubara as palhas a um pintor de ar livre, distraído das suas pinceladas entornadas… de onde viria o azul? 

O sol já estava a despontar e eis senão quando a pardal fêmea se abeirou da porta aberta da gaiola e foi à sua vida, voando alegremente sem par. 

No ninho azul, jazia adormecido, amolecido e sem mexer as asas ou procurar a Primavera, estava o pardal macho… quiçá morto? Não sei ! Talvez esperasse por tempos de mais calor, talvez preguiçoso aguardasse por melhores dias, por uma nova e quente Primavera, que o levasse a voar acompanhado, deixando voar livre a companheira que apesar de dormir bem no edredão de palha cor de rosa, ainda gostava  mais de voar sobre os ninhos coloridos, que uma gaiola aberta lhe ofereciam sem tristeza. 


Ela saiu, deixou a angústia na palha, voou mais leve, não esquece a gaiola porque voltará enquanto a porta estiver aberta, porque espera que um dia as palhas fiquem descoradas com o tempo, e voltem a ter o tom neutro da normalidade, lugar pacífico e aconchegante do amarelo da natureza. Sem grandes voos, sem grandes esperanças, mas convicta de que a porta se manterá aberta, porque a saída para a morte será mais fácil assim. 

Até lá a liberdade e a felicidade serão possíveis, para a pardalita rosa, se o respeito e o amor-próprio prevalecerem sobre a guerra e a miséria moral. 
Se houver bondade, compreensão e amizade… se o pardal não azular demasiado e se confundir com o céu. 


Enquanto a gaiola velha estiver aberta, a liberdade e a alegria de voar estará no horizonte de todos os pardais de bom coração. 

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Multiverso

Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo

(O filme e eu na teoria do multiverso )


Vivo num multiverso qualquer, onde forças contraditórias me atraem ou repudiam, onde amigos e inimigos me fazem viver, em simultâneo, realidades diferentes, assustadoras ou agradáveis, num caos total, num turbilhão que parece impossível de suportar. 
Contudo, esses universos aparentemente conflituantes e distintos coexistem e organizam-se num esquema complexo, que tanto me podem servir para resolver questões importantes ou salientar talentos adormecidos, como podem gerar sofrimento.

É esse lugar confuso - o multiverso - que melhor se coaduna com o meu caráter. Quero tudo e ainda mais, faço várias coisas ao mesmo tempo, tento experimentar talentos, derrotar inimigos, atrair amigos. 
Sei que o meu pior inimigo sou eu mesma e esta necessidade constante de fazer, de ir, de querer amar … faz e não faz sentido.
Sei que só eu serei capaz de fazer o esforço necessário para por os pés (flutuar!) no Universo conhecido . Um só universo, onde possa viver em paz. É aí que vivem as pessoas normais, é aí que tentam ser felizes, fazendo e vivendo uma realidade una e coesa, boa ou má, mas a delas.
Eu vivo no vento, empurrada por esse universos distintos mas interligados… em reboliço, em busca de nada, em busca de mim… de uma vida simples. A bondade chega-me.
De resto tenho quase tudo…

Preciso de gostar mais de mim, porque sem esse “conteúdo” próprio, interior e meu não tenho nada para dar aos outros.
Só a bondade me salva . E para ter bondade suficiente para dar aos outros tenho de sair da vida multifacetada em que me enrolei. Descer ao planeta onde nasci e aceitar-me como sou e com o que tenho.

Em frente ao mar, azul, infinito, na suavidade de uma primavera doce e solitária, penso que sou uma privilegiada - tenho saúde, dinheiro q.b. , casa e família.

Tanto que eu andei para aqui chegar. Tanto que trabalhei para conseguir a materialidade da vida que consegui, sempre virada para fora de mim - para criar e apoiar a família, para alegrar os meus amores. No entanto, tão vazia que estou.
Não amealhei no meu coração o amor-próprio suficiente para hoje estar rica e feliz. Andei no multiverso, ou fui arrastada para essa transcendência incompreensível, que do existe na ficção científica e donde terei de sair.
O universo normal deu-me muitas coisas boas; filhos, neto e amores verdadeiros… deu-me conforto, educação e algum conhecimento.
Mas não consegui fazer uma caminhada linear e tive de levantar voo para outros universos (sem querer e saber como) , universos reais e imaginários.
Nalguns, fui bem aceite e progredi. Noutros fui repudiada, caí e tive de me levantar de novo.

O mar acalma-me, porque parece sempre igual, apesar de cada onda ser diferente da anterior e as tonalidades serem tantas tantas quanto o brilho do sol ou a sombra das nuvens.
Tento ser como o mar, ir e vir sem questionar que a terra está ali à minha espera. Ou talvez não! A costa varia e o meu mar pode vir a bater numa rocha. Ainda corro o risco de me tornar em pedra. Mas se até as pedras imóveis têm olhinhos e se deslocam!


E como não sei chorar , penso que mesmo o melhor é treinar para pedra, não amolecer nem por dentro nem por fora. Ficar dura e insensível! Calhau que, à beira do precipício, fica firme ou talvez role…
Um dia certamente que rolará. 
E quando chegar, esse momento do fim, não haverá outra pedra com olhinhos para deslisar comigo pela falésia até ao mar.
Estou só… provavelmente, para sempre.
Esta viuvez súbita, com o falecido vivo ao meu lado… é coisa que vem de um outro lado: do universo intergaláctico: da bruxaria e da ficção, dos efeitos especiais fílmicos … sei lá. 
Vou mudar, treinar muito para descer ao universo onde os outros vivem, melhor ou pior.
Afinal é o único que a ciência reconhece e onde era suposto eu viver… pois será ai que terei de me estabelecer e encontrar a paz.
É um mundo novo que se abre para mim. Ao fim de quase meio século de vida, a pedra dos olhinhos rolou e fiquei afetivamente solitária… antes disso o tempo não contou: era uma criança.
Depois disso, sempre tive um pilar, que foi variando mas que era o meu sustento.
Ainda não sei viver sem comer, viver sem água e sem afecto.
Terei de me habituar . Talvez procurando um universo de aliens, desprovidos de coração, criatividade ou ambição … onde um ser vazio como eu consiga sobreviver.  Seria tudo comprado com IVA zero, claro!
Porque até aqui eu era uma mulher rica, afortunada com o melhor dos bens - a capacidade de amar e, por vezes, a sorte de ser amada. Paguei impostos altíssimos para ter essa vida de luxos. 
Acabou! 
Mas não quero virar pedinte. Seguirei em frente, carente mas digna… numa espécie de pobreza envergonhada mas sublime nos valores que não abandona. 
A bondade é tudo o que me resta para oferecer, porque já se viu que para dar afecto e amor não sirvo. Por isso, tenho de começar por ter compaixão (compassion) e bondade para comigo mesma.  

Tenho de aceitar a minha pessoa, como alguém imperfeita e sem ambições, alguém que terá de sobreviver num ambiente amoroso adverso, de coração vazio, sem um pilar de afetos e que morrerá só… Aceito que nem toda a imensa bondade disponível será útil ou terá um destino concreto, percebo que a minha capacidade de amar, de fazer alguém feliz, alguém que me queira é muita … mas poderá ficar a vogar na estratosfera, como um ser celeste, um meteoro sem préstimo.