sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Inspiração pandémica


 Inspiração pandémica é coisa que não me assalta. 

Um amigo pediu-me inspiração, novos escritos, criatividade, emoções derramadas sobre o papel... talvez para espantar os tempos vazios dos meus (pouquíssimos) leitores, ocupar-lhes as tardes cinzentas deste Inverno pandémico que vivemos. 

Pensava ele, quicá, que o estado de guerra sanitária em que vivemos e as carradas de perturbações que isso envolve seria motivo suficiente para despoletar o "estado de rotura interior", de extase ou de inflamação de que um escritor precisa para se lançar sofregamente à escrita. 

Ora, eu não sou escritora e o meu processo criativo - quer ele ocorra na escrita ou em tarefas manuais que exigem maior ou menor imaginação, como pintar ou bordar - surge de "repentes" inexplicáveis...

A imaginação e a urgência da minha escrita surgem mais de dentro do que de fora. ´

Não é muito influenciada pelo que se passa na sociedade, na política, no mundo dos outros que me ficam longe. Claramente, não sirvo para comentadora política nem para historiadora.

As minhas "crises" criativas vêem do caos, das perturbações interiores, das raivas, dos fantasmas, das inseguranças, dos medos. 

Mais raramente podem surgir do amor, da paixão, da doçura da vida que me abraça nas rotinas amigas e agradáveis... É pena, porque se eu fosse escrever sobre tudo o que tenho de bom, sobre as alegrias que vivo, sobre aquilo que conquistei e de que usufruo no presente, teria muito que dizer. E seria mais agradável.

Sou uma pessoa com sorte! Sorte essa que não proveio do destino abstrato, mas que foi a conjugação de factores benditos: nasci do lado certo do Mundo, numa família acertada com a sua civilização e valores, tive acesso à educação, à sáude e ao conforto material básico de uma classe média ocidental. 

Tive a BASE e essa base que me foi oferecida pelo destino, que ganhei à nascença, foi muito importante. 

Não foi sorte, foi apenas a prenda de vida que me calhou na rifa.

A partir daí, julgo que o que ganhei foi meu! Já não foi sorte, foi construído por mim. O que sou e o que tenho é da minha responsabilidade e, evidentemente, também o resultado das interajudas que fui obtendo, da parte de tanta gente que comigo se cruzou, ao longo da minha já longa vida.

Tenho o que conquistei, com paixão, trabalho, esforço, cedências, alegrias... e, por vezes, com pouca inteligência e falta de sentido prático, renunciando a algumas coisas a favor dos outros ou de valores "discutíveis". Mas não me arrependo. 

O arrependimento é aliás um sentimento inútil! Depois de acontecido, não há como voltar atrás. O caminho é sempre em frente, carregando nós os erros (com leveza) porque eles orientam uma melhoria contínua.

Tive sorte e tive jeito (trabalho é igual a jeito, sempre, quer se trate e um artesão ou de trabalhador intelectual). Há uns com mais jeito dos que os outros. Há uns mais preguiçosos ou distraídos, outros mais obcecados e produtivos, outros mais aldrabões ou imaginativos. Tudo isso é trabalho, percursos diferentes de produzir algo, de bom ou mau, para si ou para os outros. 

Desta miscelânea de gentes e feitios, vem o resultado: há quem some mais conquistas na vida do que outros, apesar de ter tido condições idênticas à partida.

Somos todos diferentes, em resumo. Também o processo criativo de cada um é diferente, uma parte é fruto dos "talentos" de cada qual (aqui também há os bons talentos e o talento para a asneira, a corrupção, o crime, etc.), outra parte provem daquilo que cada um faz com esses talentos, ou seja o seu jeito/trabalho próprio.

Tudo isto vem com o próposito de explicar que o meu processo criativo é diferente e que, realmente, a pandemia e o confinamento me inspiram pouco a escrever, porque é algo que vem de fora. 

Já o medo vem de dentro. E neste momento, tenho muito medo porque me sinto mal. Mal, não por mim, mas por quem me é próximo e sofre. Mal, porque não tenho jeito nem talento para lidar com a morte, com a doença, com muitas trivialidades práticas do dia-a-dia, que muita gente é capaz de suportar.

O meu mal tal como a minha inspiração vêm de dentro e impelem-me a escrever.

O medo é um dos piores sentimentos porque nos tolhem os movimentos e criam fantasmas que nem a escrita afasta. 

Vivi os últimos anos rodeada de bruxas e de medos... fui ultrapassando, acalmando angústias, aos poucos, apesar dos sonos ainda não terem regularizado por completo...

Vivi também conquistas maravilhosas - a liberdade foi uma delas. No fundo, só tenho razões para estar feliz - tenho afetos vários à minha volta, em especial os filhos, cujas alegrias superam as preocupações de mãe. Sempre assim foi, foram fáceis de criar e cresceram autónomos e equilibrados, espero que felizes também... mas isso é coisa que uma mãe nunca tem a certeza.

A felicidade e a saúde dos filhos é o que mais deseja, mas tem sempre apreensões e dúvidas sobre como se sentem!

Tenho amigos e tenho conforto material. Logo devo sorrir... sorrir aos outros que gostam de mim por isso mesmo, porque rio muito e, dependendo do ambiente em que estou, também falo muito. Sei que transmito energia, uma energia - que criei para mim própria para alimentar a minha auto-estima - e que, como devo produzir em excesso, há sempre sobras para oferecer aos outros.

A minha extroversão e pseudo-dinamismo é um truque inventado para o meu bem, para compensar alguma queda para o pessimismo, para afastar os fantasmas...

É deste equilibrio entre a alegria inventada para meu recreio (e dos outros) e o pessimismo ditado pela forma racional e realista com que olho para as dificuldades, que se constrói o meu equilibrio interior.

E quando as doses de produção de optimismo e de pessimismo não estão certas, a balança pende para um dos lados e é preciso compensar.

A escrita é o peso que coloco do lado da balança que mais precisa de acerto.




domingo, 3 de janeiro de 2021

Paz e Rotina

 Rotina, horas certas para cada coisa, as mesmas coisas feitas às horas certas.

Tão bom, quanto seguro. Tão mau, quanto tem de chato, descriativo... 


A Paz é daquelas coisas com que todos concordam e apreciam, mas raramente abunda na quantidade desejada. Exceto nos concursos de Miss Universo, para onde todas aquelas belezas maravilhosas transportam carradas de paz, vindas diretamente dos respetivos países. Parece que combinam entre si - vindas dos países pobres ou ricos, dos países que estão guerra ou daqueles onde impera a corrupção, dos países de velha cultura, a par dos de grandes inovações, progresso e tecnologia... todos parecem ambicionar e encomendar às suas belissimas representantes um apelo de Paz, como se esse "El dorado" fosse ainda mais importante que a beleza, que ali se disputa.

A Paz, mundo maravilhoso de harmonia e felicidade, não existe. Se pensarmos bem até cheira um pouco a pasmaceira... se ela nos amolecer por dentro... Porque entre a paz mundial tão desejada e nobre e a paz individual vai uma grande diferença. A paz interior, adormece ...

A paz interior pode matar a criatividade e a alegria, o desafio de viver, o grito de orgulho de quem supera dificuldades e sorri... Tão dificil articular valores e projetos, quanto saber dosear a paz e não cair na rotina. 

A rotina é feiosa, pouco desejada, mas lá no fundo é um lugar de conforto e de segurança. Descansa a alma saber que tudo fica igual, hoje igual a ontem, a casa no mesmo sitio, o marido original, a roupa nova igual à velha, que se gastou de rota e foi substuida por trapo idêntico, talvez mais moderno mas com idêntica funcionalidade. A rotina é prática e normal, como se a normalidade fosse a onda mais certa para surfar a vida. Igual, igual... pacificamente neutra, conhecida, Sem riscos, para além dos acidentes exteriores a que todos estamos sujeitos - uma doença, uma morte, um emprego que se perde, um filho que nasce, um novo amor ... Quebras na rotina que nos fazem despertar - para o bem ou para o mal - são o que nos fazem sentir gente!

Porque só na mudança se acorda.

Porque queremos uma pacífica rotina de sossego e de amor eterno, quando sabemos que não existe? Viver na mudança, cansa. Viver sem paz, viver em permanente sobressalto interior desgasta (e por vezes deprime). No entanto, é nestes altos e baixos que nos revelamos. É sabendo que a paz nem sempre é o estado permanente e perfeito, que procuramos inovar, provocar, chatear o próximo, encontrar lugar para quesílias e pequenos ódios, intrigas e invejas... que quebram a paz. 


As rotinas boas não duram sempre, porque alguém ou circunstâncias exteriores nos vêm importunar... e nós reagimos às provocações e estamos naturalmente disponiveis para a guerra...quando nos tocam nos pontos sensíveis.

O que pode quebrar esta paz? Os fantasmas interiores ou as bruxas exteriores?

Todos, todos ao mesmo tempo são capazes de provocar a guerra, a guerra fria, latente que espreita o mundo da politica e o mundo pessoal, da mente em ebulição.

No meio da paz e da rotina surgem nuvens negras, cinzentas, rosa... ou podem até chover lágrimas. Não é o caso de hoje. Hoje acendo uma vela imaginária à boa rotina de uma lareira quentinha. Brindo com champanhe à vida. E apetece-me oferecer uma rosa, cor de rosa amor a quem não me ama.

Hoje estou em "in the moode" miss qualquer coisa, feliz por uma paz que não é minha, mas faz de conta. Afastando probleminhas que rolam da minha cabeça para fora... como se fossem pérolas de um colar valioso que se quebrou e derramou as suas pequenas bolinhas, pelo chão... saltitantes... 

No fim de contas olhando para as pérolas rolantes no chão de mármore, fazendo plic ploc... assalta-me a dúvida: 

Será que o probleminha redondo era verdadeiro ou falso? Tal como as pérolas... nunca saberemos.