quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Valsa




Abre a alma à poesia,
à alegria, à música que arrepia...
Dança...
Dança porque o corpo pede, porque algo chama por ele.
Segue os sons que a matéria engole sem querer nem pedir.
Dança, porque dançar é movimento, o que nos faz girar na vida, sejam os rápidos ou lentos movimentos a caminho do trabalho, os pesados caminhos com o saco das compras, os passos estremunhados de um acordar cansado…
Tudo o que é movimento é vida.
Mas o melhor de tudo é dançar com música e fazer amor com amor… porque também se faz muito amor só com movimentos desapaixonados.

É magia, dançar assim.
É raridade amar como se dança.

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Quando o telefone toca...



Quando o telefone toca, eu sei que do lado de lá do fio há uma voz de silêncio, que tudo diz...
Diz o que eu não ouço, mas sinto, diz aquilo que sei, sem precisar de palavras, nem de sons, nem de música.
O som do silêncio vem cheio de maravilhas não ditas.
É um espaço habitado por boas coisas, carregado de amizade e intenso de sentimento.
É o vazio mais cheio que conheço e que amo!

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Ambição



Da vida não quero muito. 
Quero apenas saber que tentei tudo o que quis, 
tive tudo o que pude, 
amei tudo o que valia 
e perdi apenas o que, no fundo, nunca foi meu.

Pablo Neruda






quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Esquecida...




Perdeste a cueca no fundo daquela cama,
Deixaste a pantufa arrumadinha,
Do pijama, nem rasto… saltou voando no meio do repasto…

Pensei, pobre coitada, coitadinha…
Pobre de quem se abre, pensando que assim se ama.

Achei tudo isso um despautério, de uma inutilidade cruel.
Fazer de conta que ali havia, como que um leito de mel.

De que serve tentar mostrar que se é,
a quem não quer saber quem é ou não é?

De que serve molhar os lençóis de mágoas e de lágrimas, travestidas de húmidos prazeres?
Melhor seria, dares ao corpo outro uso, outros afazeres.

Para quê sentir com o coração, o que à carne pertence reconhecer?
Pôr o sexo no meio do peito, suspirando ais em vez de gritar uis!
Mudar o sentido das coisas, não é natural, é fingir
É como cantar calada, ou descer a subir.


O Pateta Alegre


Ser doido-alegre, que maior ventura!
Morrer vivendo p'ra além da verdade.
É tão feliz quem goza tal loucura
Que nem na morte crê, que felicidade!

Encara, rindo, a vida que o tortura,
Sem ver na esmola, a falsa caridade,
Que bem no fundo é só vaidade pura,
Se acaso houver pureza na vaidade.

Já que não tenho, tal como preciso,
A felicidade que esse doido tem
De ver no purgatório um paraíso...

Direi, ao contemplar o seu sorriso,
Ai quem me dera ser doido também
P'ra suportar melhor quem tem juízo.
Antonio Aleixo

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Para onde foi o elefante voador?


O elefante voador continua...






Era um dia de nevoeiro, tudo branco à volta, o mar estava onde não se via e o céu tinha a sua mesma cor. Cor de nada, cor de água condensada, cor de chuva que não o é ainda... 

Um dia daqueles em que apetece ficar quieto, hibernar num ninho confortável e nosso, um dia de recolhimento e paz, fora do buliço do sol que acende os sentidos e convida ao trabalho. Um dia assim pode ser bom ou ser mau! Tudo depende do tempo que faz dentro de nós e, mais ainda, da companhia, de haver quem olhe o nevoeiro com os nossos olhos... de ter quem ame o espaço e o tempo em sintonia... 

Meti a cabeça numa greta de janela, só para confirmar que era mesmo uma massa opaca de água em estado incerto o que me esperava lá fora, que nem valia a pena olhar o céu, muito menos sair de casa. Que o quentinho do sofá era o lugar da felicidade, daquele pequeno nico de realidade que nos é dado saborear, porque felicidade não existe (está provado cientificamente), mas existem momentos felizes. 

Estava preparada para aceitar esse niquinho de prazer dentro de portas, resguardada do nevoeiro. Veio-me à memória uma qualquer história de cinema com final feliz: uma sala acolhedora, uma tv tremeluzente e, no fim, a imagem suave e translúcida de uma manta macia, abrigando um velho casal, vendo um velho filme...

Enquanto espreitava o nevoeiro, que pensava oco e pacífico, reparei uma leve sombra para lá do horizonte, na zona em que o céu pega com o mar e se confundem, numa cor sem limites nem precisão. 

Algo me dizia que uma coisa estranha furava a névoa do meu conforto. 

Seria um barco? Seria um pescador corajoso que se aventurara naquele dia tempestuoso e regressava a terra? A mancha era indistinta... redonda... não era embarcação, nem pescador, não se mexia, mantinha-se flutuando no ar, algures no meio dos elementos que a natureza fundira de cinzento-água. Então percebi. Percebi, mesmo fechando a janela e voltando à segurança e conforto do sofá, percebi que quem pairava na bruma era o elefante voador.

Lá estava ele, o querido elefante romântico, pairando feliz sobre os amores terrenos e os males do mundo a partir da sua nuvem cor-de-rosa (hoje um pouco pardacenta ou mesmo invisível)!

Voltei a questionar: o que será que ele faz ali, naquele lugar nevoento e sem pousar os pés no chão? Será que este feliz elefante voador chegará ao seu destino? Ou continuará a pairar nos céus a fazer figura de dumb?

Vi-o esbatido pelo nevoeiro, que lhe amolecia as supostas asas invisiveis, aquelas que lhe permitiram subir às alturas, as asas da fantasia, capazes de o transportar através do Atlântico e de o fazer mudar de continente, suficientes de o pôr a flutuar na ilusão do amor cinéfilo, romanesco ou oportunístico. 
Era ele, sim, o querido elefante aventureiro, inteligente e bom, fiel ao príncipio de que o melhor do mundo são os amigos. Aquele para quem o prazer advém de amar toda a gente, em dar e em dar-se (a uns mais do que a outros, evidentemente). 

Não que essa mania da dádiva fosse uma forma de altruísmo, era mais um canal de auto promoção. 

Ele tinha chegado a um lugar bem etéreo, onde esperava a sua vez de descer sobre a terra, para tentar encantar mais um ser. 
Acreditava que a bondade e os bons sentimentos hão de prevalecer no mundo dos homens e que toda a dádiva terá a sua paga. Queria muito um homem por amigo... não queria um rato, um mero rato Timóteo, não! Ao contrário do Dumbo, este é um elefante normal que não gosta e tem medo de ratos...
Quer aconchegar, com o seu corpanzil quente e fofo, um qualquer humano que se deixe amar, que goste de colar a pele à sua, ciente de que o afeto de um elefante é um bem, que voa para todo o lado: nas nuvens da fantasia, no calor do sexo ou na doçura de um afago, no alimento do estômago ou no da alma, tudo coisas tão precisas e desejadas...

Nesse entretanto em que o vislumbrei, não voava, jazia dormente na sua nuvem, espesso, soturno, insonso, esbatido pela fraca luz, confundido nas gotas de água iguais que o enchiam de humidade e de lágrimas.

Coitadinho do elefante voador - pensa o homem comum, que o vê perdido nos ares - é um desgraçado, uma vítima da sorte, um estúpido  obsessivo amoroso... digno de dó.


O elefantinho, contudo, sabia bem o valor dessa postura, dessa aparente  vitimização em relação ao objeto amado, procurando sempre a sua pena e, consequentemente, a sua atenção.

Uma obsessão comandava o seu destino, a de garantir um lugar presente na vida do seu objeto/humano/amado, qualquer que fosse o caminho que tivesse que percorrer para lá chegar: ou na fofura dos lençóis terrenos ou na quentura da nuvem cor de rosa do andar de cima, lugar celeste onde tudo vê e tudo pensa dominar.

A obsessão  transformara-se em dependência amorosa e criara uma permanente sensação de excitação, de satisfação moral e de poder.
Esta estranha figura voadora sofria de um tipo de amor - natural de quem não sabe amar saudavelmente e que procura ser amado - que era um meio de auto afirmação. 

O elefantinho tinha bons amigos na terra, era um fofo! Mas isso não lhe chegava - precisava de voar, de se elevar nos céus para que os seus compinchas o achassem superior, para que o reconhecessem como algo maior, mais perto do sonho, mais perto do céu dos seus desejos, mais perto do castelo do princípe encantado

Achava que assim, elevado e omnipresente, poderia modificar o olhar dos outros sobre si - afinal ele era um elefante-maravilhas, sabia amar, longe da matéria e introduzir-se no pensamento dos homens e dos bichos comuns, modificando a sua visão dos factos. 
Era capaz de coisas prodigiossas, dignas de espanto: tal como mudar os outros pela sua transcêndencia e originalidade. Era capaz de se tornar humano na cama e espírito presente nos céus.

E quanto mais pensava, quanto mais se focava num amor vazio de objeto, quanto mais se enchia de nada e se elevava nos ares, rodeado de tudo o que há de mais bonito: cestos de flores, résticas de luas, flocos de nuvens cor de rosa, lençóis revoltos, tachos de amor, doces de leite, beijos de ar... mais o elefante engordava de nada e leve ficava... cada vez mais longe da vulgar matéria de que é feita a vida comum. 

Quanto em espírito se tornava, mais o seu corpo era impálpavel. Apesar de continuar visível e redondo, flutuava mais e mais longe, esvaía-se para além do universo e subia, subia ... a caminho da solidão.

Subia como um balão de hélio que fatalmente se perderá  no espaço...

Voava rumo ao sofrimento, que queria evitar, julgando-se protegido pela elevação das coisas do espírito. Sem saber, tornara-se mais só. 

Por vezes, tentava agarrar-se à carne como veículo de transmissão do seu espírito: um beijo para abrir um sentimento (tal como existem facas próprias para abrir as ostras, tão fechadas), um encosto de pele para cendalha de fogo fátuo, uma humidade aberta para perdição maior e, quiçá, introdução de um compromisso verdadeiro. Pequenas concessões terrenas visando um objetivo espiritual e transcendente: despido de corpo, molhado de concupiscência e vestido de romantismo (o que dá um colorido diferente à nudez).

Lutava contra a ansiedade e a solidão, querendo amar demais, querendo ser admiravelmente melhor que todos, pedalando numa roda de fantasia que não o deixava sair do mesmo lugar e o fazia distante dos seres amáveis. 
Querendo ser melhor e diferente, perdera o norte e o sul,  vagueava na estratoesfera  sem gravidade, à distância do chão onde vivem os elefantes normais e felizes e também os infelizes. 

E assim afastou-se do mundo real, onde há tristes e contentes, amantes e desamados, gente que anda a pé, a cavalo ou de bicicleta, só ou acompanhada... mas que não voa!

Essa era uma peça de fição, que teimava em desempenhar num palco só seu, mas não tinha jeito, coitado! Ele sabê-lo-ia, se parasse para pensar. Mas este elefante não pensava muito, ou pensava torto, talvez... achava que pedalar e amar, voar e cantar seriam suficientes para atingir a felicidade. Perdera-se na nuvem e afastara-se da realidade e já ia tão longe que nem o seu amor fantasiado, nem a sua bicicleta voadora, nem os seus amigos terrenos, nem a sombra da sua tromba no chão... se viam.

The show must go on... continuava a representar essa cena sem fim, de uma fição impossível de realizar, sem espetadores que lhe dessem o espelho da sua maravilhosa atuação.


E assim, vogando para o Além, acordou um dia num lugar que não era mundo, no palco de um velho teatro abandonado... sem gente, nem aplausos.

Um lugar onde nunca tinha atuado um elefante... e que até os homens desprezavam e evitavam, um lugar de morte... de solidão... de fim da fantasia que habitara aquele palco, tal como ela tinha habitado a sua vida. 
Uma vida que não tinha sido muito real, porque tentara sempre imitar os modelos teatrais, a fição sonhada...
Uma vida que se evaporara na neblina, do mesmo modo que se extingue a fama das estrelas outrora brilhantes de um qualquer palco...

O elefante sonhador acordou para a realidade da ruína, quando esta já era o fim da fama. 
Perdeu-se no espaço, ao diluir-se no éter, voando para além do nevoeiro, chegou ao fundo das trevas lá de baixo. 
Sendo que, no universo alargado não existe o "de baixo" e o "de cima", nem o norte e o sul, nem o céu e a terra. 
Existe, apenas, o espaço galático e vazio, onde tudo é redondo e oco, sem contornos, envolto em nevoeiro polvilhado de estrelas e de pó de nada, um lugar onde nada importa: nem os elefantes, nem os homens, nem o amor, nem a sopa de batatas... 
Apenas, a inexistência existe!