O elefante voador continua...
Era um dia de nevoeiro, tudo branco à volta, o mar estava onde não se via e o céu tinha a sua mesma cor. Cor de nada, cor de água condensada, cor de chuva que não o é ainda...
Um dia daqueles em que apetece ficar quieto, hibernar num ninho confortável e nosso, um dia de recolhimento e paz, fora do buliço do sol que acende os sentidos e convida ao trabalho. Um dia assim pode ser bom ou ser mau! Tudo depende do tempo que faz dentro de nós e, mais ainda, da companhia, de haver quem olhe o nevoeiro com os nossos olhos... de ter quem ame o espaço e o tempo em sintonia...
Meti a cabeça numa greta de janela, só para confirmar que era mesmo uma massa opaca de água em estado incerto o que me esperava lá fora, que nem valia a pena olhar o céu, muito menos sair de casa. Que o quentinho do sofá era o lugar da felicidade, daquele pequeno nico de realidade que nos é dado saborear, porque felicidade não existe (está provado cientificamente), mas existem momentos felizes.
Estava preparada para aceitar esse niquinho de prazer dentro de portas, resguardada do nevoeiro. Veio-me à memória uma qualquer história de cinema com final feliz: uma sala acolhedora, uma tv tremeluzente e, no fim, a imagem suave e translúcida de uma manta macia, abrigando um velho casal, vendo um velho filme...
Enquanto espreitava o nevoeiro, que pensava oco e pacífico, reparei uma leve sombra para lá do horizonte, na zona em que o céu pega com o mar e se confundem, numa cor sem limites nem precisão.
Algo me dizia que uma coisa estranha furava a névoa do meu conforto.
Seria um barco? Seria um pescador corajoso que se aventurara naquele dia tempestuoso e regressava a terra? A mancha era indistinta... redonda... não era embarcação, nem pescador, não se mexia, mantinha-se flutuando no ar, algures no meio dos elementos que a natureza fundira de cinzento-água. Então percebi. Percebi, mesmo fechando a janela e voltando à segurança e conforto do sofá, percebi que quem pairava na bruma era o elefante voador.
Lá estava ele, o querido elefante romântico, pairando feliz sobre os amores terrenos e os males do mundo a partir da sua nuvem cor-de-rosa (hoje um pouco pardacenta ou mesmo invisível)!
Voltei a questionar: o que será que ele faz ali, naquele lugar nevoento e sem pousar os pés no chão? Será que este feliz elefante voador chegará ao seu destino? Ou continuará a pairar nos céus a fazer figura de dumb?
Vi-o esbatido pelo nevoeiro, que lhe amolecia as supostas asas invisiveis, aquelas que lhe permitiram subir às alturas, as asas da fantasia, capazes de o transportar através do Atlântico e de o fazer mudar de continente, suficientes de o pôr a flutuar na ilusão do amor cinéfilo, romanesco ou oportunístico.
Era ele, sim, o querido elefante aventureiro, inteligente e bom, fiel ao príncipio de que o melhor do mundo são os amigos. Aquele para quem o prazer advém de amar toda a gente, em dar e em dar-se (a uns mais do que a outros, evidentemente).
Não que essa mania da dádiva fosse uma forma de altruísmo, era mais um canal de auto promoção.
Ele tinha chegado a um lugar bem etéreo, onde esperava a sua vez de descer sobre a terra, para tentar encantar mais um ser.
Acreditava que a bondade e os bons sentimentos hão de prevalecer no mundo dos homens e que toda a dádiva terá a sua paga. Queria muito um homem por amigo... não queria um rato, um mero rato Timóteo, não! Ao contrário do Dumbo, este é um elefante normal que não gosta e tem medo de ratos...
Quer aconchegar, com o seu corpanzil quente e fofo, um qualquer humano que se deixe amar, que goste de colar a pele à sua, ciente de que o afeto de um elefante é um bem, que voa para todo o lado: nas nuvens da fantasia, no calor do sexo ou na doçura de um afago, no alimento do estômago ou no da alma, tudo coisas tão precisas e desejadas...
Nesse entretanto em que o vislumbrei, não voava, jazia dormente na sua nuvem, espesso, soturno, insonso, esbatido pela fraca luz, confundido nas gotas de água iguais que o enchiam de humidade e de lágrimas.
Coitadinho do elefante voador - pensa o homem comum, que o vê perdido nos ares - é um desgraçado, uma vítima da sorte, um estúpido obsessivo amoroso... digno de dó.
O elefantinho, contudo, sabia bem o valor dessa postura, dessa aparente vitimização em relação ao objeto amado, procurando
sempre a sua pena e, consequentemente, a sua atenção.
Uma obsessão comandava o seu destino, a de garantir um lugar presente na vida do seu objeto/humano/amado, qualquer que fosse o caminho que tivesse que percorrer para lá chegar: ou na fofura dos lençóis terrenos ou na quentura da nuvem cor de rosa do andar de cima, lugar celeste onde tudo vê e tudo pensa dominar.