“Corre
o tempo velozmente
Como
a água da corrente
Nós
também da mesma sorte
Correndo
vamos para a morte”
Inscrito na estátua do Gadanha
O lugar onde tudo acontece é o
Rossio e seus arredores. Um pequeno mundo que, naquele tempo, nos parecia tão grande,
país governado pelo calor, pelo ritmo dos dias cansativos de quartel e pelas noites
felizes nas esplanadas. Rossio, de um branco aberto pelo sol, de espaços
amplos, de casas antigas que escondiam frescura, de igrejas guardadoras de
segredos...
No meio do Alentejo que abrasava,
a cidade era um nicho de conforto antigo, um lugar claro e alegre, sossegado à
hora da sesta e vivo ao anoitecer. Mais adiante, para além do casco antigo e
dos bairros populares nas portas da cidade, ficavam os olivais e as searas
entremeadas de chaparros, que plasmavam a sua sombra no meio do chão que ardia.
Mas é cá dentro, no trapézio
de casas brancas, simples ou apalaçadas, pinceladas de varandas de ferro
forjado e de janelas de guilhotina que tudo acontece, no Rossio que se entorta num
dos topos e se estende para outro largo onde nasce o mar…frente a um convento,
que é afinal quartel.
Um mar imaginário chamado Gadanha,
um mar chamado Marília. Porque me pareceu um imenso lago de prazer a primeira
vez que o vi, porque foi também essa a primeira vez que a vi, azul como o mar,
azul no olhar e Marília de seu nome. Tinha de ser!
Marília, sentada ao sol na
berma daquele tanque arraçado de lago que me parecia o mar… Marília descalça
com os pés roçando a água, saia um pouco alevantada, porque os salpicos dos seus
pés inquietos lhe molhavam as pernas quentes de juventude e de Verão, as pernas
mesmo assim razoavelmente compostas que eu entrevia nas pregas do vestido azul
de flores. As pernas que eu pressentia quentes e frescas naquele lugar de
fronteira entre Alentejo e o mar.
Á hora da sesta, o silêncio
era o principal habitante do lugar, o chap-chap dos pés de Marília a única
música que eu ouvia. Eu tinha escapado do quartel, por uma meia hora de folga,
simpatia do comandante - provavelmente porque o exercício intenso daqueles dias
de preparação do batalhão que havia de seguir para Angola lhe exigia uma sesta
(e a nós também). Naquela saída rápida aproveitada para comprar tabaco, vim só
e apeteceu-me absorver melhor o espírito do lugar, olhar em redor, com o meu
sentir e silêncio, distante da galhofa das saídas em grupo com os camaradas do
batalhão, conforme já tinha acontecido nos poucos dias que levava de tirocínio
em Estremoz.
Num grupo vivia-se o grupo, as
piadas, os copos, a noite do Rossio, ar de (quase) estância balnear. A cidade parecia
esquecida do seu papel de antecâmara para a guerra. Vivíamos o presente porque
ele era belo e alegre, porque o Alentejo nos acolhia na sua brancura de dias
quentes e nas suas horas de fresco espairecimento noturno. Ali e agora, naquele
Verão em Estremoz, nós eramos jovens e sentíamo-nos fortes, da guerra pouco sabíamos,
o mais importante era a aventura que pressentíamos em Africa, espaço de
exotismo imaginado, o fascínio pela viagem, pelo descobrir…
Sentíamo-nos uns heróis antes
de tempo, íamos descobrir outro mundo, aterrador talvez (vinham notícias da
guerra e dos seus perigos, se bem que um pouco adoçadas pelo discurso do regime…).
Vínhamos do conforto da família, do labor nos campos ou nas fábricas, íamos ser
homens num outro mundo, eramos gente finalmente! Gente de vinte anos, mas agora
sim, pessoas verdadeiras, integradas numa tribo diferente.
Em grupo, eu era mais um. A
sós, seguindo a pé pela sombra das casas, eu era eu.
E foi esse eu novo e orgulhoso
do seu novo lugar, que atravessou o Rossio, olhando lá no alto o castelo com a
sua torre de menagem e o imponente paço real. Foi esse eu - subitamente crescido e diferente
do rapazinho que saíra do Porto, ajudante de contabilista sem jeito nem
preceito, armado em militar - que atravessou o largo do Gadanha, a passo firme,
e de repente se esbarrou na borda do lago atraído por uma visão azul.
Marília molhava os pés no mar,
o único que o seu Alentejo lhe dava.
Marília, cabeça descoberta
desafiando o sol sem chapéu, basta cabeleira de cabelos ondulados castanho-ouro
pelas costas do vestido azul.
Marília, nome e cor de mar… que
se voltou quando as minhas botas de cavaleiro-aprendiz acordaram a calçada, que
se virou e derreteu sobre mim um olhar azul gigante, tão grande quanto o lago
me pareceu. Tão grande quanto o meu desejo de mergulhar nele e de ficar quieto naquele
Alentejo fugidio, a caminho de Angola.
Marília que voltei a encontrar
nas esplanadas da noite, com quem acertei conversas intermináveis, nas quais
nos fomos descobrindo.
Marília que beijei sob o arco
das casas da bateria, um recanto fresco junto à Ermida do Santo Cristo, numa
manhã de sábado, quando a apanhei de cesto no braço, a caminho do mercado.
Ofereci-lhe uma bilha pequena de barro local, decorada com pedrinhas brancas em
forma de coração.
Marília, eu vou-me embora,
deixa-me escrever-te. Quero roubar-te uma morada e um beijo. Quero levar-te
nesse beijo e guardar o seu calor, na memória do teu azul e do teu-meu Alentejo.
Levo-te na memória, para em África não me sentir tão só, para que uma carta me
acenda a centelha, para que tu te lembres de mim e eu de ti… na bilha, na água
no lago e no beijo debaixo do arco.
Levo um beijo de despedida ou
talvez mais de partida, um beijo de bagagem, que me dê alimento e alento, que
me acompanhe no medo das emboscadas ou na solidão do mato.
Porque o teu beijo sabia
a vida e a esperança, era a prova de que a guerra não era um fim, mas uma
passagem para a vida adiante. Havia tanto para viver, tanto mar, tanto amor,
tanta coisa que ainda desconhecia, eu que vinha de uma juventude triste e
escura. Havia tanta liberdade na África anunciada, tanto aconchego no olhar
azul desta manhã, que seria a primeira de um mundo-mulher, o prenúncio e a
prova de que valia a pena viver, para voltar a sentir a emoção de um pèzinho de
molho no Gadanha e de um beijo debaixo do arco....