quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Estremoz, Verão de 1965


“Corre o tempo velozmente
Como a água da corrente
Nós também da mesma sorte
Correndo vamos para a morte”
Inscrito na estátua do Gadanha

O lugar onde tudo acontece é o Rossio e seus arredores. Um pequeno mundo que, naquele tempo, nos parecia tão grande, país governado pelo calor, pelo ritmo dos dias cansativos de quartel e pelas noites felizes nas esplanadas. Rossio, de um branco aberto pelo sol, de espaços amplos, de casas antigas que escondiam frescura, de igrejas guardadoras de segredos...

No meio do Alentejo que abrasava, a cidade era um nicho de conforto antigo, um lugar claro e alegre, sossegado à hora da sesta e vivo ao anoitecer. Mais adiante, para além do casco antigo e dos bairros populares nas portas da cidade, ficavam os olivais e as searas entremeadas de chaparros, que plasmavam a sua sombra no meio do chão que ardia.

Mas é cá dentro, no trapézio de casas brancas, simples ou apalaçadas, pinceladas de varandas de ferro forjado e de janelas de guilhotina que tudo acontece, no Rossio que se entorta num dos topos e se estende para outro largo onde nasce o mar…frente a um convento, que é afinal quartel.

Um mar imaginário chamado Gadanha, um mar chamado Marília. Porque me pareceu um imenso lago de prazer a primeira vez que o vi, porque foi também essa a primeira vez que a vi, azul como o mar, azul no olhar e Marília de seu nome. Tinha de ser!

Marília, sentada ao sol na berma daquele tanque arraçado de lago que me parecia o mar… Marília descalça com os pés roçando a água, saia um pouco alevantada, porque os salpicos dos seus pés inquietos lhe molhavam as pernas quentes de juventude e de Verão, as pernas mesmo assim razoavelmente compostas que eu entrevia nas pregas do vestido azul de flores. As pernas que eu pressentia quentes e frescas naquele lugar de fronteira entre Alentejo e o mar.

Á hora da sesta, o silêncio era o principal habitante do lugar, o chap-chap dos pés de Marília a única música que eu ouvia. Eu tinha escapado do quartel, por uma meia hora de folga, simpatia do comandante - provavelmente porque o exercício intenso daqueles dias de preparação do batalhão que havia de seguir para Angola lhe exigia uma sesta (e a nós também). Naquela saída rápida aproveitada para comprar tabaco, vim só e apeteceu-me absorver melhor o espírito do lugar, olhar em redor, com o meu sentir e silêncio, distante da galhofa das saídas em grupo com os camaradas do batalhão, conforme já tinha acontecido nos poucos dias que levava de tirocínio em Estremoz.

Num grupo vivia-se o grupo, as piadas, os copos, a noite do Rossio, ar de (quase) estância balnear. A cidade parecia esquecida do seu papel de antecâmara para a guerra. Vivíamos o presente porque ele era belo e alegre, porque o Alentejo nos acolhia na sua brancura de dias quentes e nas suas horas de fresco espairecimento noturno. Ali e agora, naquele Verão em Estremoz, nós eramos jovens e sentíamo-nos fortes, da guerra pouco sabíamos, o mais importante era a aventura que pressentíamos em Africa, espaço de exotismo imaginado, o fascínio pela viagem, pelo descobrir…

Sentíamo-nos uns heróis antes de tempo, íamos descobrir outro mundo, aterrador talvez (vinham notícias da guerra e dos seus perigos, se bem que um pouco adoçadas pelo discurso do regime…). Vínhamos do conforto da família, do labor nos campos ou nas fábricas, íamos ser homens num outro mundo, eramos gente finalmente! Gente de vinte anos, mas agora sim, pessoas verdadeiras, integradas numa tribo diferente.

Em grupo, eu era mais um. A sós, seguindo a pé pela sombra das casas, eu era eu.

E foi esse eu novo e orgulhoso do seu novo lugar, que atravessou o Rossio, olhando lá no alto o castelo com a sua torre de menagem e o imponente paço real.  Foi esse eu - subitamente crescido e diferente do rapazinho que saíra do Porto, ajudante de contabilista sem jeito nem preceito, armado em militar - que atravessou o largo do Gadanha, a passo firme, e de repente se esbarrou na borda do lago atraído por uma visão azul.

Marília molhava os pés no mar, o único que o seu Alentejo lhe dava.

Marília, cabeça descoberta desafiando o sol sem chapéu, basta cabeleira de cabelos ondulados castanho-ouro pelas costas do vestido azul.

Marília, nome e cor de mar… que se voltou quando as minhas botas de cavaleiro-aprendiz acordaram a calçada, que se virou e derreteu sobre mim um olhar azul gigante, tão grande quanto o lago me pareceu. Tão grande quanto o meu desejo de mergulhar nele e de ficar quieto naquele Alentejo fugidio, a caminho de Angola.

Marília que voltei a encontrar nas esplanadas da noite, com quem acertei conversas intermináveis, nas quais nos fomos descobrindo.

Marília que beijei sob o arco das casas da bateria, um recanto fresco junto à Ermida do Santo Cristo, numa manhã de sábado, quando a apanhei de cesto no braço, a caminho do mercado. Ofereci-lhe uma bilha pequena de barro local, decorada com pedrinhas brancas em forma de coração.

Marília, eu vou-me embora, deixa-me escrever-te. Quero roubar-te uma morada e um beijo. Quero levar-te nesse beijo e guardar o seu calor, na memória do teu azul e do teu-meu Alentejo. Levo-te na memória, para em África não me sentir tão só, para que uma carta me acenda a centelha, para que tu te lembres de mim e eu de ti… na bilha, na água no lago e no beijo debaixo do arco.

Levo um beijo de despedida ou talvez mais de partida, um beijo de bagagem, que me dê alimento e alento, que me acompanhe no medo das emboscadas ou na solidão do mato.
Porque o teu beijo sabia a vida e a esperança, era a prova de que a guerra não era um fim, mas uma passagem para a vida adiante. Havia tanto para viver, tanto mar, tanto amor, tanta coisa que ainda desconhecia, eu que vinha de uma juventude triste e escura. Havia tanta liberdade na África anunciada, tanto aconchego no olhar azul desta manhã, que seria a primeira de um mundo-mulher, o prenúncio e a prova de que valia a pena viver, para voltar a sentir a emoção de um pèzinho de molho no Gadanha e de um beijo debaixo do arco....

terça-feira, 2 de outubro de 2018

Noite




O mundo é feito de surpresas. É isso que nos dá a cor dos dias ... ou das noites, quando é aí que o melhor da vida ocorre.
A noite é infinita, espaço de liberdade sem horas... sem fim à vista ou então ele fica tão longe que esse tempo parece infindável.
À noite é minha, sou eu que mando nela, faço o que quero . Às vezes quero dormir mas não consigo. Porque carregar no interruptor para desligar a mente não é o mesmo que apagar a luz. A mente foge e comanda. Tem mais força que o dono, que corpo cansado ou que o bom senso que nos diz: Dorme!
É tão mal empregue o tempo de dormir, quando há tanto para aprender, viver e sonhar pela noite dentro. Tanto que fazer... e tanta paz e liberdade para o concretizar como melhor aprouver.
Pode-se ler poesia ou escrever disparates, limpar a casa de banho ou espreitar o facebook.
E também amar, pensar com bondade em quem nos quer bem e pensar o que fazer para dar aos outros um pouco de mim... e pode-se ainda esgravatar nos recursos da imaginação tentando saber como ter compaixão/entendimento por quem nos faz mal.
Julgo que ninguém me quer verdadeiramente mal... simplesmente há quem me ignore ou tenha inveja ou me despreze. Não sei se isso acontece por egoísmo... ou por medo.
Lucidamente pensando, acho que ninguém me odeia, mas há quem gostasse de me ver noutro lugar, noutro espaço de vida e de afectos. Atrapalho, pronto! Estou a mais! Se me pudessem varrer, haveria por aí umas vassouras jeitosas. De todo o tipo: profissionais; concorrenciais e até afetivas. 
Atrapalho, pronto! 
Todos nós atrapalhamos alguém. Estamos sempre a meio de um caminho em choque com alguém. Por isso, há que saber manobrar as coisas, gerir o trânsito com arte, como se a vida fosse um bailado complexo, um equilíbrio de dança em pontas, arriscado cair e tropeçar no parceiro. 
Tentarei ser leve e flutuar sobre o corpo de baile, num papel difícil de prima ballerina invejada e admirada .
Enquanto durar o momento de glória, há que dançar sem pisar ninguém, respeitar e ter bondade para quem dança connosco.
Dançar com alegria e liberdade mesmo que o mestre-de-cerimónias nos tente tirar do enredo, nos transfira para o bas-fond, nos humilhe e deseje um desfecho infeliz, um fim... qualquer ...