sexta-feira, 13 de abril de 2018

Palavras



As palavras são bem pobres suportes para o que nos vai na alma.
Transportam mal e porcamente aquilo que queríamos transmitir mas, no fundo, há todo um mar... um mar enorme e profundo onde jaz muito do não dito.
Porque se a mensagem a transportar forem sentimentos e não factos, as palavras são frágeis canoas que vacilam e podem naufragar. Os sentimentos cavalgam a onda e afogam o verbo solitário que, cheio de boa vontade, tenta chegar ao seu destino.
Talvez seja esse o destino da palavra - a de morrer na praia, deixando na melhor das hipóteses um rasto ténue do que queria dizer... fica um traço apenas... uma névoa para o leitor perceber apenas um pouco, apenas um leve sentir, daquilo que os areais absorveram e o mar apagou.

Pobres... pobres e infelizes, incompetentes palavras que não servem de casa para o amor, nem para a amizade, nem de bandeira para sentimentos grandiosos de honra ou de heroísmo, nem de montra para a abnegação ou a solidariedade.
Sobram os actos, para cumprir essa missão.
É pelos actos, é pela honestidade e pela sinceridade com que se praticam que sabemos do outro. 
São os actos que nos fazem acreditar.
Não são as palavras, que de pouco valem para criar uma fé, não são as palavras que comportam valores, não são elas que nos provam a força e a verdade dos sentimentos. São as pessoas, o seu sentir e o seu agir.
As palavras, além de fraquinhas, são mentirosas, fantasistas e, quantas vezes, estrategicamente concebidas e tacitamente usadas para outros fins. Podem ser usadas, para o melhor ou  para o pior, com boa-fé ou por fraude deliberada. 
Em qualquer situação - nefasta ou virtuosa -, as palavras são os instrumentos, de que a mente se serve, que marcam um caminho, que seria eventualmente diferente... se fosse o nosso arbítrio a decidir...
As palavras dos outros conduzem-nos a nós; não conduzem necessariamente os sentimentos que anunciam.
E, no entanto, nós gostamos delas... das palavras! Precisamos de as ouvir, vindas dos amigos, de quem amamos ou até dos nossos inimigos... porque são elas o espelho da nossa cara miserável. Mais vale ver um rosto despenteado no nosso reflexo no olhar dos outros, do que mirar um espelho e ver uma parede... opaca... vazia... sem gente, sem opinião... 

As palavras... as palavras... o ruído que elas fazem...
É uma música de que gostamos... Tantas palavras à nossa volta, uma cabeça cheia de palavras que são mentiras, de mentiras que entram cá dentro com o passaporte legítimo de serem palavras e de terem sido escritas especialmente para nós. E também tantas palavras que são de conforto, que amamos até pela sua mentira... 



As cartas de amor são talvez a mais querida mentira de palavras, bem organizada. 
E se, por causa das palavras, perdermos o dom de saber pensar com a nossa cabeça? 
A verve dos outros, as notícias do jornal, as recebidas por correio ou no ouvido, em direto, ao telefone ou por interpostas pessoas - tudo palavras esperadas, agarradas com carinho ou com rancor... mas nossas.
Há as palavras construídas especialmente para nós e que nos deixam vaidosos - que alguém escreveu para mim, sinceras, ou talvez não, de amizade, de apreço, de incentivo, de agradecimento - como se palavras fossem iguais a sentimentos bons. 
E, contudo, quantas comportam mentira, não porque quem nos as enviou seja mentiroso, mas porque as usou para atingir o seu fim, por si, pelos seus intentos e não para nos dar consolo.
Também, há palavras genuínas de amparo, de solidariedade... de amizade e de parceria quando se vive em união de entendimento de corações, quando se partilha um projeto, um afecto ou um luto, quando algo de comum é suficientememte forte para que seja entendido e aceite... quase sem palavras. 
São casos mais raros, mas existem.
Há corações que se entendem quase sem palavras, sem ruído.

Mas a maior parte das palavras - que supostamente carregam sentimentos - são uma manifestação de interesse, não são uma declaração do apreço de um ser por outro, mas de ele por si mesmo. São uma forma linda e encapotada de egoísmo.

Logo e em conclusão, palavra e sentimento não são uma combinação séria e feliz. Mesmo que os intervenientes pensem que sim. Mesmo que eles estejam convencidos que usaram a palavra certa para transmitir um sentimento verdadeiro. Até nesses casos, podem estragar tudo. 
Por detrás de uma palavra errada pode estar um sentimento certo e verdadeiro, tal como por detrás de uma palavra certa pode estar uma mentira, um mal-entendido ou um  miserável sentir.
Quanto sentimento existe e permanece... para além da palavra!
Pode é ficar impotente e timidamentemente à espera de melhor sorte para se mostrar, para mostrar o que vale... por actos... já que as palavras não chegam...


E o sentimento, coitado, pode até morrer na praia, apagado pela onda que vem a seguir... ou pode ser roubado na praia onde se estendeu ao comprido, na alegre espuma da onda, orlado da nudez fria e envolvente do mar, na pureza do ar, do cheiro  a maresia, do sol que brilha e que despe... em silêncio e sem palavras.

Se tivesse força e descernimento, entregar-se-ia aberto inteiro ao arrebatamento do mar... sem palavras. Para que o som dos seus gestos e o silêncio do seu sentir, gritasse naquela imensidão.

Esperando  por quem venha recolher o sentimento no estado puro... sem palavras,  sem livros e sem sons, sem raciocínios nem filosofias, sem complicações ...

Apenas uma mão... ou duas, uma na outra, sem palavras... 
Um simples voar de dois corpos ou de dois espiritos, navegando dali até ao horizonte... dois seres com a ternura e sobretudo com a grande intimidade que só a amizade verdadeira comporta... sós e em silêncio, com o sentimento que tiverem para dar - não importa a quantidade nem a qualidade -  não importa que se amem muito ou pouco, importa é que seja sem palávas, só com gestos, intimidade e entreajuda. 
O que importa é que seja a corporização do sentimento verdadeiro e não a espuma da fantasia, o ruído das palavras já inventadas e repertidas, O que importa é que o ruído das palavras se vá embora, subtraída a calúnia da boca dos homens, limpa a maldade da cabeça da mulheres, varida a inveja. 
Que fique a paz e a coragem, que restem os homens e mulheres mais duras e valentes, mais sérios, amigos dos ventos  de bonança, que sobrevivam os seres que gostam de viver na profuncidade do mar, daqueles que respeitam e admiram (e temem) a profundidade do mar e se aventuram à descoberta. Que vivam os amantes da verdade, os que preferem ir ao limite do desconhecido e ficar mais rico em sabedoria, do que ficar pela espuma da praia e pelo cor de rosa alegres dos bikinis.
Há quem se vista de espuma, de conchas e de flores e tente seduzir o mar, há  quem julgue que o arco iris surgiu no horizonte apenas para seu deleite, que o luar lhe pertence como as palavras que constroi.
Da mesma maneira, que há quem lance sentimentos em posts de facebook ou em blogues como quem pendura bolas na arvore de Natal. 
Como se as palavras derramadas no mundo virtual, substituíssem sentimentos.

Nesta selva em que palavras lutam pelo seu lugar ao sol, que se batem para torrar os neurónios alheios, que o marketing nos tenta engoliar a todos, é preciso sabedoria e um modo diferente de olhar o mundo para aguentar à tona.
É preciso sobreviver e ser feliz porque a vida é curta, é preciso aguentar as palavras e os gestos, que nos fazem mal, com coragem e resistência para não desfalecer ... visto que é aqui, neste mundo, que queremos morar mais algum tempo.

É bom viver num lugar de verdade e de paz, onde seja possivel demorarmo-nos, fechar os olhos, dar a mão a quem merece a nossa confiança e prosseguir em frente... por um caminho de serenidade, onde seja possível dormir abraçado por quem nos quer bem, abraçado por quem entra em nós e traz a luz. onde se fica quente e suavemente em segurança. 
Porque as palavras mesmo poucas... devem ser boas e verdadeiras ou então que sejam más e sinceras, 
Do teatro, esse palco de fantasia oportunistica há que fugir.
Há que fugir desse mundo de fição e de fantasia travestido de verdade, bêbedo de mentira...
Há que resisitir com todas as forças, porque confundir fição como realidade é uma prisão, é dependencia e perda de liberdade.
Liberdade exige autonomia, algum dinheiro, auto-estima, realismo, e não ter medo da solidão nem do silêncio, quando tal for preciso.
É preciso austeridade nos sentimentos sérios e saber descartar a espuma das coisas fúteis, desconfiar de quem se apresenta envolta em acúcar, em promessas de carinho... 
O que é bom não precisa de marketing, nem de palavras inúteis. 
O que é genuino é discreto e reconhece-se, porque a luz interior é mais forte do que aquele holofote articial que incide sobre a artista em palco. Aquela (ou aquele actor) cujo brilho carece da exposição pública e dos seus aplausos para se sentir realizada. Que sonha e  espera ser despertada pelo beijo do príncipe encantado e se veste da fantasia das palavras, reinventando os sentimentos que estão no guião da peça ...que não lhe pertencem (talvez pertençam ao dramaturgo, mas mesmo esse perdeu-os para a mente dos outros, para quem o lê ou vê a peça).
Para o actor, só são verdadeiros os aplausos - a excelência, a virtude está na forma como usa as palavras para fingir os sentimentos ... dos outros!
Para esses - os actores deste mundo - só resta a glória das palavras ditas. Parece pouco, no entanto, quantas vezes, são suficientes para vencer na vida.
Porque a vida é um palco.
Um local onde a verdade e os sentimentos pouco importam, o que vale são as aparências, a fantasia tornada realidade.
Vamos morrer... e até mesmo a nossa passagem por aqui...vai virar aparência...não tarda nada.


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