domingo, 23 de abril de 2017

Surpreendente Vitória




Surpreendente pela sua simplicidade e pelo desconcerto da sua trivialidade…
Surpreendente foi a história vivida por aquela família angolana branca, a de mais habituada a viver num lugar de surpresas e de magias, a quem já quase nada podia surpreender.

Os Almeida eram angolanos há várias gerações, filhos e netos de colonos portugueses, mas sentiam-se verdadeiramente angolanos pois era ali o seu lugar, onde nasceram e sempre viveram. Uma parte da família havia mudado as suas vidas para Portugal depois da independência, uns logo a seguir, outros mais tarde, conforme as profissões, os estudos ou as relações familiares o ditaram. Os que ficaram em Angola passaram a guerra, criaram negócios, filhos … enfim, seguiram os seus destinos numa terra que era a sua.
Naquele mês de setembro, ao fim da tarde, uma pequena excursão à Nossa Senhora de Muxima, trazia de regresso a Luanda, quatro Almeidas – dois irmãos, o Zé e o Manel, a mulher do mais velho e o Bruno, sobrinho, filho de um outro irmão que regressara a Portugal. Os dois irmãos eram brancos, a mulher mestiça clara e Bruno, de alma e de coração pretos, mas tão louro, de olhos azuis e altíssimo, mais parecia um europeu nórdico do que ter sangue português .

O Santuário de Muxima é um lugar muito especial e antigo de culto mariano católico, assimilado de forma surpreendente pelos povos locais, provavelmente sem nada de semelhante em África. Uma igreja pequena, branca, igual a tantas outras que se podem encontrar nas aldeias portuguesas, encima um morro sobranceiro ao rio Kwanza, com uma vista aberta sobre as curvas do rio e sobre um espaço verde, imenso e livre. 
A multidão de fiéis que atrai nas festas anuais e nas peregrinações coletivas ou individuais, durante todo o ano, transcende em muito a âmbito da difusão cristã naquelas paragens. Os africanos vivem essa devoção de forma intensa, como algo de sagrado, com um sentido místico que reúne numa só crença elementos próximos da bruxaria e do oculto, das crenças tribais e da fé católica. Essa ligação ao divino, o desejo de transcendência tão própria do ser humano, em todas as culturas, é aqui vivida na devoção à Senhora do Muxima. O povo acredita nos seus poderes milagrosos, capaz de lhes trazer felicidade, proteção e cura para todos os males…


A vila existe desde o início da colonização portuguesa de Angola. No século XVI, foi aí construído um forte que servia também como presídio, no topo da colina e mais abaixo uma igreja dedicada a Nossa Senhora da Conceição, a que se juntou uma pequena povoação. 
É impressionante a multidão de devotos que atrai, em especial nas festas anuais, a procissão que segue os tradicionais costumes: andor com imagem, flores, acompanhantes e sua parafernália, em tudo igual a qualquer romaria portuguesa, com exceção da cor da pele dos fiéis.

Muxima, em quimbundo, quer dizer coração e era sempre com o coração cheio que a família voltava de mais um passeio ao Santuário.

O Land Rover dos Almeida seguia pela estrada de terra vermelha quase a direito em direção ao mar, numa paisagem plana ponteada de embondeiros. A hora era de calor, apesar de a tarde já ir a meio, mas o carro tinha a refrigeração necessária para fazer da viagem uma agradável experiência, um passeio de cento e tal quilómetros até à capital.
Não havia mais viajantes naquela estrada, a época não era a das grandes peregrinações, seguiam sozinhos na imensidão daquela paisagem maravilhosa, adivinhando que lá para o fim da viagem, com o cair do dia, seriam brindados com um pôr-de-sol magnífico sobre o horizonte.

Entretanto, nesta paz em movimento, surge algo de inesperado – uma operação stop! 
À beira da estrada uma equipa policial, um homem e uma mulher devidamente fardados, ao lado uma mesa debaixo de um mini-toldo de lona gasta, para protecção do sol, fazia de secretária ao posto de controlo improvisado.

A mulher-polícia levanta o braço, manda parar a viatura e avança. Imponente na sua forma roliça e no modo com empinava o rosto, toda ela era redonda e grande, a única coisa pequena era o “quico” da farda, um boné demasiado pequeno para a sua cara e que destoava do conjunto largo de todo seu corpo, bem africano, bem maternal. As ancas largas, as calças que franziam na cintura com o cinto apertado, o corpo que parecia explodir na sua rotundidade primitiva. Lembrava uma Vénus paleolítica, mas com braços e pernas, surpreendente pela leveza com que balançava as suas nádegas a caminho dos viajantes parados.

O condutor abre a janela à primeira ordem da senhora agente, que grita com voz forte:
- Documentos!
Certamente, pensando tratar-se de estrangeiros repetiu e reformulou a ordem:
- Passaportes!
Os quatro angolanos apresentaram rapidamente os seus passaportes de capa preta (por acaso viajam com eles, em vez dos bilhetes de identidade…).
Tamanha prontidão tirou o impacto à investida da autoridade, que exigiu mais:
- E tem visto?
- A senhora agente tem passaporte? – responde o Zé com uma pergunta.
- Claro que sim … (via-se mesmo que não, no olhar um pouco vacilante da senhora).
- Então o seu passaporte é angolano. E tem visto para circular em Angola?
- Bem, está tudo bem … disse a agente, com um ar de quem não estava muito a par das formalidades de controlo de estrangeiros.
Logo em seguida, baixando o tom de voz, já com a cara dentro da janela do jeep, disse para o condutor, de modo a que o colega polícia parado na berma não a pudesse ouvir:
- Dão-me boleia para Luanda? Sussurrou ela, boca quase fechada.
- Com certeza que sim, pode vir connosco, há lugar para mais um no banco de trás, será um prazer – sorri o Bruno de guedelha loura, debruçado da sua janela.
Vai daí, surpreendentemente, a senhora agente sobe a voz, cresce em autoridade e diz alto, de forma a ser ouvida pelo colega:
- Então vamos para Luanda! E já, e eu vou à frente.
Ninguém ripostou, o Manel saiu do banco da frente para dar lugar à autoridade. A cena podia fazer crer que era ela quem os conduzia, quiçá os levava detidos ou para serem ouvidos… talvez numa esquadra, num qualquer posto de controlo de estrangeiros com passaportes pretos dados a gente com cara de brancos, a gente que anda por aí irregular, sem visto para circular na sua própria pátria. Talvez pudesse parecer surpreendente, mas a verdade é que ela não parecia saber que os passaportes portugueses eram de capa grená e os angolanos são pretos. Nem isso era importante para o caso, como veremos.
O camarada polícia ficou em terra, convencido da determinação da colega que tinha seguido no cumprimento do dever.
Já preparados para o pior, para mais complicações burocráticas, pagamentos por fora, exigências estranhas, paragens algures no meio do caminho ou à chegada a Luanda, o Zé Almeida arranca e põe-se em marcha. Mentalmente, ia antecipando como se iria desenrascar do imaginado contratempo policial, da possível tentativa de suborno ou sabia-se lá de quê mais...

Mas mal assentou o seu triunfal traseiro no banco da frente, a senhora agente exclamou:
 - Porra! Táva a ver que nha vinha boléia. Faz dus horas no alcatrão e nada. Os    mininos em casa sem comê e a comida nhã tá feita…

Foi a gargalhada geral e o alívio dos passageiros. Perguntaram-lhe o nome.
- Vitória - respondeu pronta, de peito inchado, abanando o corpo maternal e redondo, aconchegando melhor as duas gloriosas bolas do seu glorioso rabo no banco da frente, alargando o sorriso à dimensão das ancas e completando orgulhosa a informação. O nome tinha sido ideia do pai por causa das quedas de água, que ficavam para lá do deserto da Namíbia, um lugar bem longe para o interior, onde havia coisas tão surpreendentes como um rio que terminava no meio da terra sem chegar ao mar, nem servir de alimento a outro rio. O Okavango que por magia desaparece no deserto, um grande delta sem mar, que desfaz a sua grandiosidade no nada… Também por causa de Angola, por sua vitória e sua independência, para filha não esquecer o que pai viu e viveu.

E em chegando ao destino, pediu que a deixassem no supermercado, saltou do carro, partiu apressada, havia compras a fazer e a janta para dar… abanando as ancas pesadas com a ligeireza e a pressa de qualquer mãe do mundo que tem crias para alimentar, seja no musseque, na tribo do Bengo ou em Queluz de Baixo. Uma Vitória, uma vitória surpreendente entre tantas mães vitoriosas cuja vida diária é uma surpresa e uma reinvenção permanentes.

terça-feira, 4 de abril de 2017

O Lençol

O Lençol


Houve um tempo de transição, como são todos os tempos em que se mudam padrões de comportamento e de valores. Um tempo de transição entre o antes e o depois, fiquemos pelo durante ... Um tempo que não faz muito – talvez 30 ou 40 anos – mas que parece longe, quase cómico pela forma como hoje olhamos a mudança.

A turma dos ginjas, sessentas para cima, reunia habitualmente à 4ª feira no café da esplanada do Jardim da Estrela, se fosse Verão, ou na primeira tasca da Calçada, a maior parte do ano. Portugal só é país de esplanadas o ano inteiro, para os turistas. Mas estes maduros já acusavam o frio, a humidade, a bronquite e demais argumentos para preferirem estar dentro de portas. Tinham sido militares, preparados para aguentar perigos e intempéries, supostamente sem sentir frio nem calor, sem ter queixas nem dores. Mas estavam cada vez mais esquecidos das regras do aguentar-firme, amolecidos pela idade ou talvez até mais pela ideia de conforto, porque realmente não eram velhos.
Todas as quartas havia histórias antigas para contar e para rir, depois de esgotada a primeira meia hora de “análise-da-conjuntura-política”. Ficava bem mostrarem-se a par da atualidade, comentarem o último telejornal, mesa redonda ou artigo de opinião. Depressa se fartavam… e vinham as histórias. Havia uma recorrente, que sempre acarretava uma banhada de riso. Não se percebia porquê. Afinal era coisa simples que se contava depressa e todos já a tinham ouvido muitas vezes. O que mantinha a “juventude” da história, o que continuava a espicaçar a imaginação, disfarçada de gozo e de galhofa, era que este regresso ao passado contado na terceira pessoa trazia para cada um deles, individualmente, recordações mais íntimas e pessoais.

O Apolinário era o personagem principal. Claro que o Apolinário não fazia parte do grupo, vivia no Norte e raramente o viam, mas era estimado como mais um de entre eles. O Apolinário tinha sido um camarada de armas dos primeiros tempos de preparação militar, todos muitos novos como eram no tempo em que os mancebos iam à guerra, dezoito, vinte anos, ainda em fase de instrução – curta e intensa porque urgia partir.
Nesses tempos de camaradagem genuína, em que tudo se partilhava, as vivências de cada um eram postas na mesma mesa em que se dividiam os tremoços e se pousavam as cervejas. Á volta, contava-se o fim-de-semana na terra, os êxitos masculinos nas betesgas da cidade, sabe-se lá se verdadeiros ou inventados, aventuras várias, pouco vividas e originais porque as suas vidas eram curtas e na maior parte dos casos pouco interessantes. Se é que existe o conceito de vida pouco interessante. Mesmo as vidas em que o traço mais saliente é a falta de aventura, a ingenuidade, a monotonia ou a parolice podem ser motivo de interesse, depende da perspetiva de quem vê.
Como em todos os grupos, havia de tudo: uns mais vividos, atrevidos e armados em progressistas; outros mais calmos e sem alardear aventuras; outros sinceramente bem-comportados, conscientes de que o seu papel salvador passava por cumprir as tradições.
Os mais conservadores eram, em regra, mais propensos a ser objeto de gozo. Os outros, mesmo que não fossem muito espevitados, mantinham uma certa reserva e inteligentemente mostravam algum modernismo, abertura de espírito e liberalismo, sobretudo em matérias sexuais, tão fortes e apetecidas naquela idade e naquela época de transição e mudança.

Ora o nosso Apolinário era verdadeira e convictamente um rapaz sério, nunca pensou que os seus relatos pudessem ser vistos como bacocos pelos seus camaradas. Um dia em que, descontraidamente, contava o seu fim-de-semana na terra, o Apolinário descaiu-se com esta:
  - Estive com a Conceição, vocês sabem a minha namorada, em casa dela, estava   de cama, deitei-me ao seu lado e estivemos ver televisão. Porreiro, o Zip-Zip! Viram o programa? Viram àquela rábula do Solnado? O que nos rimos.
De imediato, num burburinho coletivo, a malta exclamou:
  - Na cama? Com a Conceição? Ah, ganda Apolinário, isso promete! Conta, conta…
Muito calmo, ligeiramente ruborizado, mas sem perder a compostura, o Apolinário esclareceu:
  - Nada disso que possam estar a pensar, não há mais nada a contar, foi tudo com muito respeito …
  - Então mas não estavam os dois na cama? E estavam sós? – atacaram os compinchas do grupo, secretamente lambendo os beiços, pelo antecipado picante do acontecimento.
   - Sim, claro, estávamos só nós os dois – começa o Apolinário a gaguejar, agora já menos sério, até um pouco atrapalhado. Apercebia-se que se tinha metido por um caminho por onde os outros não o deixariam voltar incólume.
  - Hum…isso cheira-me a muito avanço, ó Apolinário! A coisa aqueceu e tu não queres é contar. Como foi estar com ela? Os dois na cama…hem? – martelava outro mais atrevido.

Sem mais demora, o Apolinário recuperando da ligeira perturbação, apressa-se a defender o seu discurso. Havia que desfazer mal-entendidos, não era nada disso que ele queria dizer, havia que proteger a virgindade sagrada daquela malvadez masculina. Estes camaradas pareciam ter mentes conspurcadas pela bazófia macha. Ele estava feliz e orgulhoso por ter visto a Conceição, ao fim de 15 dias sem ir à terra, feliz por partilhar com eles uma noite inocente e bem passada e a coisa fugiu-lhe de controlo…estava a ser mal interpretado. Estavam a tentar reorientar-lhe a conversa, dando-lhe um rumo que não era verdadeiro, uma vivência que não era a sua. E vai daí, esclarece:
  - Pois…estávamos na cama, mas havia um lençol a separar-nos!

A risota foi ainda maior: Um lençol! – gritam em uníssono os camaradas.

Afinal havia um lençol, nada mais prosaico, marcadamente pouco erótico, complicativo e desnecessário naquele enredo …
Quando a coisa estava a aquecer, vem o Apolinário e mete um lençol … no discurso e no meio dos dois. Um lençol!

Até hoje não se sabe bem qual a disposição do lençol naquela cama, nem como os atores se posicionavam face ao mesmo. O certo é que o lençol veio suspender a corrente daquela história que se avizinhava prometedora, veio coartar a imaginação dos presentes e afirmar a pureza dos intervenientes camais.
A realidade é que um lençol faz toda a diferença, sobretudo se funcionar como fronteira intransponível. No entanto, nada mais frágil que um lençol como fronteira pelo decoro. Um lençol pode ser amachucado, enrolado, despedido dali, pode até voar … ou os dois voarem para debaixo dele. Tanto que pode acontecer a um lençol! Tão pouco aconteceu com o lençol da Conceição, firmemente aconchegado pelo Apolinário, sem se aconchegar a ela.
Supõe-se que ela estaria dentro e ele fora … do lençol. Pouco importa! O que os camaradas retiveram e guardaram toda a vida nas suas memórias, a ponto de o contarem e recontarem inúmeras vezes, foi que havia um lençol. Um lençol que protegia o acesso do Apolinário a prazeres maiores, um lençol que não protegia nada na sua fragilidade real mas que projetara na cabeça do Apolinário um muro de defesa dos seus valores, que era quanto bastava para que nada acontecesse de inapropriado.

Ora, foi esta noção de inapropriado que mais ficou a martelar no pensamento dos outros. Muitos já tinham ultrapassado a barreira do inapropriado, outros ainda não, alguns nunca o fariam. Poucos, contudo, teriam tido a coragem de assumir publicamente quão importante é um lençol na pureza dos princípios e nas relações com as suas namoradas, da maneira inocente e direta como fez o Apolinário.

Houve um tempo de transição, como em todos os tempos. Houve um tempo, há muito tempo, em que uns passavam a barreira do lençol e outros não: aqueles que se mantiveram valorosamente firmes nos seus princípios e acreditaram num lençol como eficaz protetor da castidade.

Há um tempo presente, em que o lençol é motivo de chacota para os mais velhos e de incompreensão para os mais novos, estes que hoje só conhecem a vida sem lençol … com outros comportamentos e valores, mas sem lençol.