quinta-feira, 6 de outubro de 2022

O Dia da Tranquilidade


Ainda não chegou o meu dia da tranquilidade. O dia quieto e parado em qua a alma se deita sossegada, à luz do sol ou no limbo da noite, em que o corpo habita feliz um espaço de rotinas doces, certas e gratificantes. Em que as contrariedades ou as tristezas, que possam surgir, encontram um fluxo de regeneração saudável e natural… integrado na fluidez da vida.

O dia da tranquilidade - que a esperança colocava no lugar da reforma - não chegou na hora devida. Puro engano pensar que seria o resultado natural da ausência de responsabilidades profissionais, que acabariam com o fim de todo um turbilhão de decisões, confusões e tarefas mais ou menos conflituantes e stressantes que o trabalho comporta. Não chegou ainda…o meu dia da tranquilidade.

Para uma alma inquieta, com vários focos de interesse, com uma corrente de vida partida em bocados que não convergem, esse dia talvez seja uma miragem.

Para cada problema resolvido, cada angústia amansada, surge outra latente, que estava guardada.

Concluídos com êxito relativo os objetivos principais, deveriam ter secado as fontes de angústia: os problemas da insegurança por não ter casa, a negociação da reforma e o encerramento responsável das atividades de 45 anos de carreira, razoavelmente conseguida, a doença e apoio aos pais, a saúde da família e o nascimento e crescimento saudável do neto, tudo foi correndo bem … a ansiedade poderia ter sido ultrapassada… mas não foi.

A minha instabilidade é interior e mais ditada pelo mundo dos afectos do que pelas questões logísticas. 

É interior mas também exterior porque não tenho lugar numa rede de afectos una e interligada, em que todos os amigos e familiares se conhecem e me conhecem, que se conjugam para me verem como eu sou e me ajudarem como podem. Vivo com um pé num ambiente, a cabeça e o coração noutros espaços… com outras pessoas que não se conhecem, nem são susceptíveis de se misturar. Vivo saltitando e escondendo os vários pedaços da minha vida, repartida, estratificada, espartilhada… por vezes oprimida pelas convenções, que me obrigam a manter separados os vários ambientes que constituem o meu mundo exterior. Vivo de mochila às costas por aí, sem pousar. A única vantagem é a liberdade de não ter de dar contas a ninguém das minhas andanças. Porque não pertenço a ninguém, nem a minha intimidade, desejos ou sofrimentos interessam aos outros … nos vários grupos em que cirando. Estou só para o melhor e para o pior.

Ninguém gosta de mim  com a seriedade e profundidade que mereço. Ninguém se importa, ninguém se esforça para, com afecto, me retirar desta prisão invisível de egoísmo, desintegração e desamor.

E é nesse interior em ebulição, um mundo de inseguranças e incertezas, carregado de nevoeiros e de medos, onde no horizonte se posicionam nuvens negras que, em qualquer altura num futuro próximo, podem virar tempestade, sem amor e sem sossego, que reside a angústia, a intranquilidade permanente. 

Não sei se alguma vez sentirei a tranquilidade dos dias iguais e seguros. 

Tudo muda à nossa volta, é assim o Mundo. 

Ora então, se a instabilidade é a regra como esperar que individualmente eu consiga ter estabilidade e paz?

As pessoas que me rodeiam vão passando, os amores também.

As relações laçam-se e deslaçam-se…

Esmorecem e são substituídas por outras. Pensa-se sempre que se muda para melhor…

Talvez sim, talvez não.

O medo permanece, sobretudo, o medo de perder os pilares de afecto em que tentamos ancorar a nossa vida. Eles vacilam, são abanados por mãos maléficas ou invejosas ou, simplesmente, são partidos, deixados cair e abandonados no chão .

Um pilar feito de fraco material deteriora-se e fica carunchosa. Mesmo de pé, já não sustenta uma alma inquieta. Que abana sempre … empurrada pela força da história pesada que carrega, esgravatada pela mão pesada que tenta afastar, arrasar, destruir quem pode ser um impecilho… para proveito próprio, esperando que a lei do maior forte prevaleça, dê a vitória a quem for mais persistente, resistente e determinado.

Perante esta realidade, incontornável, só há duas atitudes possíveis: partir ou ficar.

Partir é um grito de liberdade mas também um tiro no escuro, um futuro cheio de vazios.

Ficar é aceitar o sofrimento como estado permanente, aguentar a dor sorrindo. É perceber que nos intervalos das angústias recorrentes talvez haja breves momentos de paz  relances de felicidade pontual… raios de sol de pouca dura.

Ficar é viver um dia de cada vez, tentando absorver o máximo de coisas boas que ele comporta e aceitar uma vida miserável… sem tranquilidade.

No dia em que atingir a tranquilidade, já cá não estarei.

Talvez alguém ocupe o meu lugar e ganhe a suprema tranquilidade de descansar no lado certo da vida, junto de que quem lhe quer bem ou se deixa amar… tranquilamente.